08 Setembro 2019
Em “Capital e ideologia”, o economista francês derruba as narrativas do liberalismo.
O liberalismo voltará sobre suas raízes teológicas e um exército de evangelizadores liberal-populistas sairá outra vez com capa e espada para demolir a impecável demonstração sobre a semente das desigualdades que o economista francês Thomas Piketty publica nesses dias na França. Trata-se de Capital e Ideologia, o segundo livro que Piketty publica depois do monumental êxito que teve seu primeiro trabalho, O Capital no Século XXI, o qual circulou no mundo com mais de dois milhões e meio de exemplares. Como o anterior, o novo livro do economista francês não preserva espaço, pelo contrário, os estende. São mil e duzentas páginas em que o postulado central consiste em demonstrar que “a desigualdade é ideológica e política” e não “econômica ou tecnológica”, que as desigualdades jamais são “naturais”, mas sim edificadas por uma ideologia que cria as categorias divisórias: mercado, salários, capital, dívida, trabalhadores mais ou menos capacitados, cotizações da bolsa de valores, paraísos fiscais, ricos, pobres, clérigos, nobreza, competitividade nacional ou internacional.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 06-09-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Se trata de construções sociais e históricas que dependem integralmente do sistema legal, fiscal, educativo e político que se escolhe implementar e das categorias que se criam”. Piketty derruba dois dos mitos mais espalhados pela direita: o primeiro postula que as desigualdades se explicam em muitos casos por causas “naturais”; o segundo recorre à existência histórica de supostas “leis fundamentais”. Em nenhum caso. Thomas Piketty oferece nessa mastodôntica pesquisa um olhar novo sobre o processo da desigualdade, assim como uma história com perfil mundial das desigualdades e as ideologias que as promovem.
A tão famosa crença como publicitado na Argentina sobre o caráter incontestável do sistema econômico liberal (“o mundo nos apoia”) se esfumaça nas páginas de Capital e Ideologia como arena entre os dedos. Não é certo. Não existe, alega o economista, nenhum determinismo, menos ainda uma organização social com o mandato “eterno”. A permanência ou não da cultura do capital depende da mobilização política e ideológica, de que se imaginem outras formas de gestão em que as desigualdades deixariam de existir e o capital, assim, já estaria mais concentrado em um punhado de poderosos. O livro de Thomas Piketty é um elixir em tempos de horizontes tapados e retóricas repetitivas. O economista sustenta inclusive propor a ideia de um “novo socialismo participativo”, de uma propriedade “social” pactuada mediante a cogestão ou também uma “propriedade temporal”. Não há tampouco, para Piketty, nenhum fatalismo histórico, mas sim uma assombrosa série de ações e coincidências que autorizam as mudanças.
Nada está decidido de antemão, recorda o autor, tanto mais que as relações de força que se estabelecem preocupam a ordem material: “são sobretudo intelectuais e ideológicas. Dito de outra forma, as ideias e as ideologias contam na história porque permitem imaginar permanentemente e estruturar novos mundos e sociedades diferentes”. Piketty fustiga esse pensamento conservador marcadamente tendencioso e sempre disposto a “neutralizar as desigualdades”, dotando-as de “fundamentos naturais e objetivos”. Ou seja, como a desigualdade é um processo natural, não há maneira de erradicá-la. E se tentar, é, finalmente, todo o sistema que corre perigo. Essa falácia é a que preside todas as narrativas do liberalismo contemporâneo: não há vida fora do sistema. Se sair, haverá somente fome. Falso. Ainda, em sua análise histórica da desigualdade, o economista francês destaca que “em seu conjunto, as diversas rupturas e processos revolucionários e políticos que permitiram reduzir e transformar as desigualdades do passado foram um imenso êxito, ao tempo que desembocaram na criação de nossas instituições mais valiosas, aquelas que, precisamente, permitiram que a ideia de progresso humano se tornasse uma realidade”.
Com essa prova histórica, Piketty abre uma janela para mostrar outra paisagem e, de quebra, romper uma das narrativas mais extenuantes dos conservadores: aquela que tapa todos os futuros repetindo que nenhum outro modelo é possível. A esse propósito, o autor escreve: “as desigualdades atuais e as instituições presentes não são as únicas possíveis, apesar do que possam pensar os conservadores: ambas estão também chamadas a se transformar e a se reinventar permanentemente”. Uma vez mais, nada está jogado de antemão, nada é “um fundamento” imóvel. Essa rocha indeslocável é a base sobre a qual se apoia o rico para seguir sendo mais rico, e o pobre sempre pobre. É a nudez de todo o repertório capitalista: se o rico é menos rico, o pobre será mais pobre. Piketty apresenta a desigualdade como um objeto de grande plasticidade que é perfeitamente possível modelar, e, justamente, assim fizeram as ideologias: “seguindo os fios dessa história – escreve – se constata que sempre existiram e existirão alternativas. Em todos os níveis de desenvolvimento, existem múltiplas maneiras de estruturar um sistema econômico, social e político, de definir as relações de propriedade, organizar um regime fiscal ou educativo, tratar um problema de dívida pública ou privada, de regular as relações entre as distintas comunidades humanas... Existem vários caminhos possíveis capazes de organizar uma sociedade e as relações de poder e de propriedade dentro dela”.
Piketty proclama que “o progresso humano existe, porém é frágil porque, a todo momento, pode se chocar contra os desvios da desigualdade e da identidade do mundo (...) O progresso humano existe, porém é um combate”. Original, fundamentado e rigoroso, com um enfoque radicalmente histórico que toma inclusive em conta a literatura, Capital e Ideologia chega em melhor momento, justo nesse ponto em que somente pareceria haver diagnósticos e poucas conjecturas para desenhar outro mundo. Nunca o liberalismo havia inundado tanto o espírito humano com sua mensagem unidirecional. Como o macrismo na Argentina, seu recado em todos os lados é o mesmo: ou se suicidam conosco, ou morrerão de fome. Piketty desarma com uma precisão de relojoeiro essa ideia destilada em 99% dos meios de comunicação do mundo. O autor chama essa tendência de “a ideologia proprietarista”. A crença globalizada consiste em repetir que qualquer iniciativa de justiça social equivale a ir “direto para a instabilidade política e o caos permanente, o que terminará por se voltar contra os mais modestos. A resposta proprietarista intransigente consiste em que não há que correr esse risco, e que essa Caixa de Pandora da redistribuição da propriedade nunca se deve abrir”. Ao contrário, argumenta Piketty, não somente há que abri-la, mas sim que a história nos prova que foi aberta em muitos momentos e que, graças a esses momentos, se construiu o progresso humano.
O ensaio se propõe precisamente a essa meta: “convencer o leitor de que podemos nos apoiar nas lições da história para definir uma norma de justiça e de igualdade exigentes em matéria de regulação e partilha da propriedade mais além da simples sacralização do passado”. Como em O Capital no Século XXI, Piketty não formula rupturas revolucionárias, mas sim propõe uma forma radical de reorganização. Não é um livro para reforçar convicções, nem um enésimo e indigesto paralelepípedo pseudoprogressista cheio de diagnósticos acertados e vazio de alentos futuros. Capital e Ideologia é um livro para respirar, como uma janela aberta para um mundo onde, de repente, não há só um modelo possível, mas sim infinitas possibilidades.
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Para Thomas Piketty a desigualdade é ideológica e política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU