19 Outubro 2018
"Ainda é muito cedo para dizer se o motim de Burke e Bannon contra Francisco é apenas uma reação marginal ou algo muito mais significativo. Mas dada a atual instabilidade política na Itália e em todo o Ocidente, e as profundas hostilidades dentro da Igreja americana, ninguém deve ser complacente com a ameaça que eles representam", escreve Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, 18-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
A oposição Católica ao Papa Francisco está sediada nos Estados Unidos. É uma minoria, mas muito bem organizada dentro da Igreja dos EUA. Seu principal órgão intelectual é First Things, e seu líder episcopal, o arcebispo Chaput. Além dos jornalistas católicos simpatizantes que espalharam o "testemunho" do Arcebispo Viganò em 27 de agosto, há também aqueles que tomam seu partido mais abertamente, como o Cardeal Raymond Burke e Stephen Bannon, antigo estrategista chefe de Donald Trump. Burke e Bannon estão colaborando em uma nova organização de direita Católica em Roma, o Instituto Dignitatis Humanae. Bannon é um de seus líderes; Burke é presidente do quadro de conselheiros. O Instituto foi descrito por seus fundadores como "uma escola para o ocidente judaico-cristão."
A crescente influência destes conservadores americanos em Roma tem algo a ver com a formação de um novo governo xenófobo e populista na Itália, do qual Bannon e Burke são entusiastas. E a estima é mútua: algumas semanas atrás, o Cardeal Burke foi convidado por membros da nova elite política para falar no Senado italiano. Mas o Instituto Dignitatis Humanae é também uma reação contra o pontificado de Francisco, e a afirmação de uma noção particular da relação entre a cidade de Roma e a Igreja Católica. Esta última tentativa dos tradicionalistas católicos para 'capturar' Roma em prol de sua causa, nos lembra as duas maiores crises do papado no século XX. Ambas começaram na França: a Action Française na década de 1920 e a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X nos anos 1970-80.
Em discurso proferido durante uma audiência no seminário francês em Roma no dia 09 de abril de 1927, Pio XI falou sobre a Action Française em termos de "uma estranha romanidade e um catolicismo ainda mais estranho". Apenas alguns meses antes, em 26 de dezembro de 1926, Pio XI havia condenado formalmente a Action Française, sanção que durou até 1939, e colocou o jornal do movimento e os escritos de seu líder, Charles Maurras, no index oficial de livros proibidos do Vaticano. Claro, ninguém deseja ou espera que Francisco coloque o First Things, EWTN, Breitbart News num novo index de censura (o velho index deixou de existir em 1966). Mas certamente "uma estranha romanidade” faz parte da direita católica americana mobilizada contra Francisco.
Há algumas semelhanças marcantes entre a década de 1920 e o momento atual. A Action Française era uma forma de galicanismo, ou nacionalismo eclesial. Sua noção de catolicismo era mais política e tribal do que mística. Como disse o filósofo Étienne Gilson, "eles estão muito interessados em Roma, mas não têm interesse em Jerusalém". Para a Action Française, o que importava era a Igreja como uma instituição de poder político, não o Evangelho. É por isso que eles poderiam, simultaneamente, celebrar a soberania de Roma e criticar um Papa cujos ensinamentos eles achavam inconvenientes. (Para ser justo, deve-se notar que, assim como o movimento de direita representado por Burke e Bannon não engloba todos os católicos conservadores nos Estados Unidos, a Action Française não representava todo o espectro do catolicismo conservador na França. Alguns monarquistas católicos não confiavam em Maurras, assim como alguns católicos americanos doutrinariamente conservadores consideram Bannon um oportunista). A condenação da Action Française feita em 1926 por Pio XI tinha mais a ver com ideologia política do movimento do que com a sua mensagem teológica. Em todo o caso, a condenação teve o efeito pretendido. Após 1926, ela ruiu. Alguns de seus intelectuais deixaram a Igreja, enquanto outros tiveram uma conversão intelectual e filosófica que os conduziu de volta à plena comunhão com Roma.
50 anos depois da Action Française, o caso do Arcebispo Marcel Lefebvre e sua Fraternidade de São Pio X foi um pouco diferente. Na visão de Lefebvre, Roma havia sido traída pelo Concílio Vaticano II. Ele tinha sua própria bagagem política: havia sido bispo na África colonial francesa e sentia nostalgia do regime de Vichy. Mas suas diferenças com o Vaticano eram teológicas e não políticas, ao contrário de Maurras. O Papa Paulo VI foi inflexível na defesa das reformas litúrgicas do Concílio, e Lefebvre acreditava que essas reformas destruiriam a Igreja.
Há semelhanças importantes entre os dois episódios do século XX e a onda atual da oposição de direita americana ao Papa Francisco. Uma delas é o esmaecimento da distinção entre teologia e política. A oposição a Francisco começa criticando algumas questões morais (o casamento e a família, a homossexualidade, a pena de morte), mas rapidamente se expande para incluir críticas aos ensinamentos do Papa sobre a economia, o meio ambiente e a imigração. Para Bannon e sua turma, a política sempre vem em primeiro lugar.
Mas há também diferenças significativas entre a oposição Católica americana a Francisco e seus precursores franceses. O clero católico e intelectuais que tomavam Charles Maurras e Marcel Lefebvre como líderes, tinham um forte senso do que Roma representava. Para o novo "galicanismo americano" do século XX, o significado de Roma é em grande parte simbólico. Alguns tradicionalistas americanos atribuíram-se a tarefa de salvar Roma de sua decadência típica do velho mundo. Eles estão tomando a mesma linha de argumentação usada por neoconservadores no início dos anos 2000, retratando a Europa como uma civilização fracassada (assombrada pelo multiculturalismo, pela crise demográfica, e pelo secularismo). A este encargo, os tradicionalistas americanos acrescentariam que a Europa — e, acima de tudo, a Alemanha — é também o centro de uma teologia fracassada, dos teólogos do Concílio Vaticano II aos cardeais Lehmann e Kasper.
Outra grande diferença: nos anos 1920 e 1970, o Islã não era uma grande preocupação para os críticos de Roma. Desde 11 de setembro de 2001, no entanto, pessoas como Bannon têm incitado o pânico sobre um conflito mundial entre o Islã e o Ocidente. Mesmo assim, o Vaticano manteve seu compromisso com o diálogo inter-religioso e rejeitou todos os esforços para transformar a guerra contra o terrorismo noutra cruzada.
Paralelamente à divisão entre os neotradicionalistas americanos e o Vaticano, há também, uma divisão dentro a Igreja americana. Será que a primeira divisão continuará depois que este pontificado terminar? Certamente, a separação dentro do catolicismo americano não desaparecerá após o próximo conclave.
Finalmente, vale lembrar que a vitória dos papas sobre Maurras e Lefebvre foi tanto política como eclesial. Os tradicionalistas nunca foram capazes de convencer a maioria dos católicos franceses, ou mesmo trazer um número significativo de bispos franceses para o movimento. A situação atual no Episcopado dos EUA é nesse sentido muito mais perigosa, com vários bispos norte-americanos sinalizando abertamente sua desconfiança do Papa Francisco. Politicamente, o monarquismo da Action Française e mais tarde os tradicionalistas de Lefebvre não conseguiram atrair mais do que uma minoria insignificante dos franceses. Ainda é muito cedo para dizer se o motim de Burke e Bannon contra Francisco é apenas uma reação marginal ou algo muito mais significativo. Mas dada a atual instabilidade política na Itália e em todo o Ocidente, e as profundas hostilidades dentro da Igreja americana, ninguém deve ser complacente com a ameaça que eles representam.
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Roma de quem? Burke, Bannon e a Cidade Eterna. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU