28 Setembro 2018
A Igreja Católica nos Estados Unidos está tristemente dividida. Massimo Faggioli, teólogo e historiador da igreja e professor na professor da Villanova University, explora o cenário e alerta sobre consequências potencialmente letais.
Originalmente publicado por The Tablet, o artigo foi reproduzido por Il Sismografo, 27-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A história da Igreja Católica nos Estados Unidos da América é uma história vencedora. Aquela que era uma pequena comunidade de imigrantes e missionários pobres, minimamente tolerada e que muitas vezes era impedida de confessar sua fé livremente em um novo país, fundada por dissidentes religiosos em fuga da cristandade europeia, tornou-se a maior confissão religiosa no país. Nessa igreja, minha esposa foi acolhida como convertida ao catolicismo apenas dois anos antes de nos casarmos, e nessa igreja nossos filhos nasceram e estão crescendo.
É a Igreja que me acolheu há dez anos, quando me transferi da Europa para realizar um trabalho acadêmico em sua impressionante rede de escolas e universidades católicas - a maior do mundo.
Eu cresci em uma família católica na Itália e passei parte de minha formação acadêmica e cultural na França e na Alemanha. A partir do momento em que cheguei aos Estados Unidos, experimentei algo totalmente novo. A primeira surpresa foi o encorajamento dos meus colegas para me dedicar a um "shopping paroquial", ou seja, a passear pelas diferentes paróquias de domingo a domingo até encontrar aquela certa para mim. A ideia era que eu tinha que olhar ao redor não para encontrar uma comunidade que eu considerasse amigável e acolhedora, mas para encontrar uma paróquia em que eu iria encontrar opiniões teológicas e celebrações litúrgicas em conformidade com os meus gostos.
Era algo que eu nunca tinha pensado em fazer antes. Logo, por exemplo, descobri a enorme diferença entre a paróquia diocesana euro-americana do centro, animada por uma maravilhosa música litúrgica pré-século XX e a paróquia universitária empenhada no acolhimento das pessoas LGBT. Lembro-me de alguns anos atrás, enquanto eu passava um fim de semana em um mosteiro extremamente atento na observação da linguagem de gênero para ser a mais inclusiva possível, aconteceu de eu não ouvir a palavra "Senhor" em três dias de liturgias, sermões incluídos. Essa polarização se estende a questões sociais e políticas, onde os católicos de viés conservador têm desenvolvido um alinhamento (chocante para o católico europeu médio) que varia entre a oposição à "socialized medicine" (na linguagem da doutrina social da Igreja, o acesso universal à assistência em saúde) e à oposição ao controlo das armas e ao apoio à pena de morte.
Vários anos atrás, antes de nos mudarmos na área da Filadélfia, a nossa paróquia organizou um debate sobre a pena de morte e fiquei surpreso ao saber que o orador que defendia a proposta segundo a qual esta era parte integrante da atual doutrina católica era um teólogo católico que ensinava em uma faculdade católica local. Durante uma mesa redonda sobre o economista francês Thomas Piketty, autor de O capital no século XXI, fiquei estarrecido quando um professor de teologia e negócios de uma faculdade católica arrasou a crítica de Piketty da concentração da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez menor, como fruto de sua "inveja". Tentar reduzir a desigualdade de riqueza e renda era, ele candidamente nos disse, fundamentalmente pecaminoso. Minha mulher e eu decidimos batizar nosso segundo filho na Itália, onde cresci e nos casamos, em vez da nossa paróquia nos Estados Unidos.
A história do catolicismo nos Estados Unidos é cronologicamente mais breve e muito diferente daquela da maioria das igrejas na Europa, e pode ser lida como uma história de mudança de tensões internas e divisões. Houve um primeiro período em que imigrantes de várias culturas católicas nacionais coexistiam de forma desconfortável: os católicos irlandeses predominantes entravam em confronto com os católicos alemães, franceses, italianos e poloneses, mas essas comunidades e outras de origem europeia afirmavam a sua supremacia sobre outras expressões culturais e teológicas do catolicismo (especialmente o latim). No entanto, estavam unidas como alvo do preconceito anticatólico do establishment religioso não declarado dos Estados Unidos, isto é, o protestantismo.
Apesar das profundas divisões que surgiram dentro do catolicismo sobre a legitimidade da escravidão, no século XIX os católicos estadunidenses eram mantidos unidos pelo fato de pertencer a uma igreja que estava crescendo não só em termos demográficos, mas também em termos de influência e status social. Também se encontravam unidos em torno do aprofundamento de fidelidade ao papado: o crescimento da igreja católica dos EUA coincidiu com a "romanização" do catolicismo no século XIX.
Na Europa, a igreja se declarou sob assédio do liberalismo e da ascensão do nacionalismo, e a unidade com o Papa tornou-se um implícito silenciamento das vozes que questionavam a unidade da igreja. A americanização da igreja norte-americana seguiu uma trajetória diferente em relação ao catolicismo em outros lugares: na Europa, as nações tendiam a ser construídas à custa da igreja, enquanto os ideais e os rituais norte-americanos - como a Ação de Graças - assumiam um significado quase sagrado, e o nacionalismo (para citar Robert Bellah) assumiu muitas das características de uma "religião civil".
O século XX foi o "século norte-americano", no qual os Estados Unidos assumiram o papel cada vez mais incontestado de única superpotência global. Isso se constituiu como um dos fatores para a manutenção de um catolicismo norte-americano unido, mas as linhas de fratura em torno da atitude em relação às questões sociais, principalmente relacionada à moralidade sexual, se tornaram já visíveis nos anos 1930. No entanto, não aconteceram descontinuidades muito sérias no tecido da igreja católica até os últimos anos do século. O Concílio Vaticano II provocou um período de mudanças tumultuadas em quase toda parte da igreja global, criando um novo equilíbrio entre as diferentes sensibilidades; produziu diferentes tipos de catolicismo, geralmente descritos como "liberal-progressistas" e "tradicionalista-conservadores". Existe certo grau de proximidade nesses rótulos, que são emprestados da história política ocidental e ignoram a diversidade interna de ambas as partes.
Mas a tensão entre liberais e conservadores se desenvolveu de maneira dramática nos Estados Unidos. Conheci a mesma tensão entre os católicos mais progressistas e os mais tradicionalistas na Europa, mas só aqui nos Estados Unidos encontrei uma igreja tão dilacerada pelas chamadas "guerras culturais". Não existe só o impulso teológico para inverter as reformas dos anos 1960 e 70 (o movimento teológico pós-liberal e neoconservador), mas esse projeto agora está vinculado a uma narrativa política mais ampla e de civilização - uma narrativa que é tecnicamente partidária, no sentido de que obriga o cidadão a selecionar um partido político em um sistema eleitoral em que existem – de forma efetiva - apenas duas partes entre as quais escolher. De certo modo, um sistema bipartidário criou uma igreja bipartidária.
Isso introduziu na igreja católica dos Estados Unidos atual uma série de linhas de falhas que se edificaram sobre as falhas do século XIX (as tensões entre diferentes tribos católicas nacionais e étnicas, a divisão sobre a escravidão) e do século XX (a divisão sobre a política, a economia e a moralidade sexual): fraturas sempre presentes, mas mascaradas até relativamente pouco tempo atrás. Essa polarização dos católicos norte-americanos nos Estados Unidos tornou-se mais séria e potencialmente fatal para a unidade da igreja porque seguiu - eu diria religiosamente - a radicalização política das culturas dos dois partidos políticos sobre uma série de questões, especialmente as sociais, onde agora é muito mais complicado encontrar um meio-termo. Para aqueles católicos, como Steve Bannon e o cardeal Raymond Burke, trata-se de uma "defesa da civilização judaico-cristã" de sua destruição com uma manobra de cerco por parte das elites liberais e dos "fascistas islâmicos".
Depois, há a crise dos abusos sexuais, agora em uma fase muito diferente desde que explodiu em Boston em 2002: a velha divisão entre conservadores e liberais tornou-se mais complicada com a diminuição da credibilidade dos bispos e, em menor grau, com aquela do clero. Neste momento na vida da igreja católica estadunidense, a diferença é máxima e há uma espécie de analogia com o clima anti-establishment que elegeu Donald Trump: há aqueles que gostariam de extirpar os homossexuais do clero; quem gostaria de ver mulheres padres; quem sonha com uma igreja dirigida apenas por leigos; aqueles que defendem que os leigos nas paróquias deveriam poder contratar e demitir o pároco - e existe, evidentemente, aquela nova geração de jovens "ultramontanistas anti-romanos" que, desde os primeiros meses da eleição do Papa Francisco, defende que ele seria uma espécie de herege.
A crise dos abusos revelou a ira dos católicos norte-americanos, em toda a linha, mas também a assimetria entre os dois extremos do espectro.
Por um lado, o progressista-liberal, manifesta uma grande variedade de ideias e aspirações (e não ainda de propostas concretas) sobre a relação entre leigos e clero, o papel das mulheres na igreja (por aqueles que esperam ver em breve mulheres diaconisas - que é o meu lugar no espectro – a aqueles que esperam ver mulheres padres, até aqueles que esperam ver mulheres cardeais), o modo como as igrejas são financiadas, uma maior abertura para aqueles que estão à margem da igreja, a urgência de uma reforma radical do sistema do Vaticano: uma mistura de ideias que não leva em conta a enorme rejeição contra os pequenos passos dados pelo Papa Francisco sobre essas questões.
Do outro lado do espectro, o conservador-tradicionalista (desculpando-me novamente por esta que é uma descrição muito esquemática de um quadro muitas vezes mais variado ), a imagem parece-me muito menos confusa: o apelo incide sobre a reafirmação de um ensino claro e firme da moralidade sexual tradicional, com especial atenção aos males da homossexualidade. De um ponto de vista mais amplo, o momento cultural parece ser mais claro para direita que para esquerda: coincidir com uma transição de uma cultura católica neoconservadora e pós-liberal - menos preocupada com a moralidade sexual - para uma nova geração de católicos conservadores foi o destino do pontificado do Papa Francisco; uma cultura católica neo-tradicionalista, anti-liberal e iliberal cuja teologia é muito difícil de distinguir da Fraternidade cismática de São Pio X.
A crise dos abusos entrou numa nova fase, mas não por causa de uma nova onda de casos. O relatório do grande júri sobre a incidência de abusos do clero em seis dioceses católicas na Pensilvânia revelou-se profundamente perturbador, mas parece que as políticas implementadas pela "Dallas Charter" em 2002 funcionam. No entanto, a crise dos abusos em 2018 tornou-se parte integrante da guerra cada vez mais implacável entre as narrativas em competição sobre o futuro da Igreja nos Estados Unidos. Agora ela é um dos fatores da difusão em Roma desse tipo de catolicismo norte-americano defendido por Bannon e pelo cardeal Burke. Esse tipo de catolicismo é uma pequena minoria entre os católicos praticantes estadunidense, mas é a facção mais organizada midiaticamente, nos seminários e no mundo dos financiadores católicos.
A referência à unidade nos "Estados Unidos" seria agora tão desejável quanto real. A unidade dos Estados Unidos está mais em discussão hoje do que em qualquer outro momento desde a guerra civil de 150 anos atrás. Algo semelhante poderia ser dito sobre a igreja católica nos Estados Unidos: hoje está mais dividida do que nunca. A "santidade" da igreja é algo objetivo; não depende da santidade de seus membros. E até mesmo sua unicidade não depende da unidade de seus membros individuais. Mas dizer que "a igreja é uma" também significa que há "uma única igreja em todo o mundo, unida e não sectária". É por isso que a crise cada vez mais severa da igreja católica nos Estados Unidos não é apenas um problema para os católicos norte-americanos ou para o papa Francisco. É um problema para todos os católicos.
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Estados (Des) Unidos da América. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU