25 Fevereiro 2023
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 1º Domingo da Quaresma, 26-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tempo da Quaresma é tempo de prova, de luta, de resistência às tentações que nos cercam, é um caminho no deserto orientado para o dom de Deus, para o encontro com ele.
Por isso, no primeiro domingo deste tempo litúrgico, é revelada a nós a realidade da tentação sofrida por cada ser humano, sofrida pelo próprio Jesus, também ele “filho de Adão” (Lc 3, 38).
Significativamente, a Carta aos Hebreus nos revela que “Jesus mesmo foi posto à prova (pepeirasménos) em todas as coisas como nós, sem cair no pecado” (Hb 4,15). Assim, venceu as tentações, mas não ficou isento delas, porque, em sua humanidade verdadeira e concreta, havia a fragilidade, a fraqueza da “carne” (sárx).
Os Evangelhos não têm medo de nos apresentar um Jesus tentado pelo demônio, pelo adversário, Satanás, potência que induz o ser humano ao mal, ou seja, a contradizer a vontade de Deus: isso ocorre para Jesus no deserto, logo após o batismo e, depois, muitas outras vezes durante sua missão e, por fim, na cruz.
O Evangelho segundo Marcos atesta que, depois que Jesus recebeu a imersão no Jordão por João Batista, “logo o Espírito o impeliu para o deserto, onde permaneceu quarenta dias, tentado por Satanás” (Mc 1,12-13): continuamente tentado!
Com base nesse testemunho, Mateus e Lucas (cf. Lc 4,1-13) tentam nos dar uma descrição, uma narração do que ocorreu, uma encenação dos eventos vividos interiormente por Jesus – poderíamos dizer no fundo de seu coração e, portanto, de sua consciência –, das provas que envolviam toda a sua pessoa, corpo e espírito.
Para Mateus e Lucas, as tentações podem ser resumidas em três momentos, em três ataques de Satanás. Instruídos pelas ciências humanas, hoje sabemos ler essas três provas como resistência às três libidines fundamentais que nos habitam: libido amandi, libido dominandi e libido possidendi.
São as tentações a que a humanidade inteira está sujeita, como bem expressa o livro do Gênesis quando diz que o ser humano “viu que a árvore” que não devia ser comida “era boa para comer, apetitosa à vista e desejável para obter poder” (Gn 3,6). Quando nós, humanos, entramos em relação com as realidades deste mundo, sentimos forças, necessidades, desejos que se desencadeiam em nós e que, se não forem dominados, nos impedem de reconhecer a presença dos outros e de Deus, fonte de todo dom.
Jesus também, homem como nós – e não deveríamos nos escandalizar com isso, nem duvidar de sua identidade como Filho de Deus, Palavra feito carne (cf. Jo 1,14) –, não esteve isento das tentações, não as afastou, mas as atravessou, medindo-se com elas e assim vencendo Satanás com sua vontade e com a força da palavra de Deus. Sem esquecer que, no relato de Mateus, há também a alusão ao povo de Israel, que, saído da imersão no Mar Vermelho, percorre o caminho no deserto, ritmado por três eventos, por três tentações (cf. Ex 16; 17; 32), nas quais o povo sucumbe, caindo em pecado.
Jesus, cheio do Espírito Santo (cf. Mt 3,16), é conduzido pelo mesmo Espírito ao deserto, e eis que a tentação se manifesta, quando a fome se faz sentir depois de 40 dias de jejum: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães”. Se ele é verdadeiramente Filho de Deus, como foi definido pela voz que veio do céu durante o batismo (cf. Mt 3,17), então – sugere-lhe o tentador – pode escapar à condição humana que assumiu e saciar a sua fome não como todo ser humano, obtendo o alimento com o esforço e o trabalho, mas simplesmente recorrendo a seu poder.
Não é por acaso que a tentação primeira e, portanto, primordial diz respeito ao comer, à dimensão da oralidade. Nesse campo, o homem e a mulher foram tentados e caíram (cf. Gn 3,1-7), porque aqui está em jogo o amor egoísta por nós mesmos, a philautía. Transformar magicamente as pedras em pão para escapar da fome é um sonho de onipotência: o ser humano faminto é tentado a não reconhecer mais os outros, a não pensar na partilha, na solidariedade, na comunhão. Existir para si mesmo: essa é a tentação radical que leva a ignorar os outros e a não reconhecer mais o dom de Deus.
Essa primeira tentação também pode ser lida em um nível político. Jesus é tentado a transformar as pedras em pão para realizar uma ação prodigiosa aos olhos da humanidade: se ele é o Salvador, poderá extinguir a fome do mundo de forma radical e imediata, poderá ser reconhecido e aclamado como libertador.
Não por acaso, em outro lugar, a multidão estará disposta a fazê-lo rei se ele lhe der pão (cf. Jo 6,11-15.26). A esse respeito, é bom lembrar a releitura dessa tentação feita por Fiodor Dostoiévski, na “Lenda do Grande Inquisidor”: “Vês estas pedras no deserto nu e ardente? Transforma-as em pão, e a humanidade te seguirá como um rebanho dócil e agradecido”.
Não, Jesus é o Filho de Deus que, ao fazer-se homem, despojou-se de suas prerrogativas divinas e permanece sempre fiel a essa sua condição. Por isso, não faz o milagre, mas responde ao demônio: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’ (Dt 8,3)”. Desse modo, ele afirma que a fome de pão é indiscutível, mas a fome da palavra de Deus é ainda mais vital, mais essencial do que satisfazer o desejo de comida. Há aqui o testemunho da fé de Jesus na palavra de Deus, de sua obediência pontual ao Pai, de sua resistência à tentação até à vitória.
Segue-se a segunda tentação: “O diabo colocou-o sobre a parte mais alta do Templo” de Jerusalém, a cidade santa para onde todos os filhos de Israel sobem e se reúnem. Jesus está no início de sua missão: o que pode inaugurá-la de forma mais eficaz do que um sinal, um milagre, uma autoexaltação pública diante de todos? Se ele se jogar do alto do templo e, como Filho de Deus, for milagrosamente segurado e sustentado pelos anjos, então a revelação de sua identidade se imporá a todos, e ele será aclamado como o Messias de Deus. Mostre quem é, revele que é Deus no meio de seu povo, pois esta é a pergunta dos incrédulos de todos os tempos: “Deus está no meio de nós, sim ou não?” (Ex 17,7).
Essa tentação que Jesus sente surgir dentro de si será despertada muitas vezes pelos seus ouvintes: “Mostra-nos um sinal do céu e acreditaremos!” (cf. Mt 12,38; 16,1; 24,3). Há aqui a sugestão de ser Messias segundo as imagens e os pensamentos humanos, mas Jesus escolheu ser um Messias ao contrário: fraco, pobre, humilhado, rejeitado; um Messias servo, não um senhor poderoso!
No templo, lugar da religião, ocorre a tentação suprema: se Jesus é Filho de Deus, então não conhecerá a morte, não será tocado por ela. Para fazer com que essa miragem brilhe a seus olhos, o demônio recorre à citação da Escritura (cf. Sl 91,11-12), distorcendo-a e instrumentalizando-a contra Deus. A promessa de proteção anunciada por Deus ao fiel no salmo deve se realizar como epifania de poder do Messias, como isenção para ele do sofrimento e da morte, como onipotência...
Mas Jesus, que veio para dar sua vida por amor de todos nós, humanos (cf. Mt 20,28), que veio na pobreza e na humildade do servo de Deus, não pode aceitar essa sugestão, que desfiguraria a imagem de Deus e então, referindo-se à palavra de Deus, joga na cara do demônio o “está escrito”: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Dt 6, 16).
Não se põe Deus à prova, mas se aceita ser posto à prova. Enquanto estiver no meio nós, Jesus quer permanecer muito humano, sem poderes divinos, e por isso permanecerá fiel ao Pai até o fim, sem nunca ceder à tentação de negar ou mitigar sua condição humana, assumida para compartilhá-la conosco, para existir conosco, para conhecer a nossa fraqueza e apresentá-la como sua ao Pai.
Por fim, vem a terceira e última tentação: derrotada a libido dominandi, entra em ação a libido possidendi. Desta vez, Jesus é levado pelo diabo a um alto monte, de onde contempla a terra e tudo o que ela contém, toda sua riqueza, os reinos nas mãos dos governantes deste mundo, a glória que eles ostentam.
Na verdade, Jesus é um Rei, o Rei dos Judeus, é o Messias, o Rei ungido, o líder de seu povo, e, portanto, riqueza e glória também pertencem a ele. Ele pode possuí-las, mas com uma condição: deve adorar o demônio, o príncipe deste mundo. Cabe a Jesus escolher: ou tornar-se um servo de Satanás ou permanecer um servo de Deus. De um lado, honra, poder, glória, riquezas; do outro, pobreza, serviço, humildade.
No Evangelho segundo Lucas, o demônio completa essa tentação com mais uma palavra: “Todas as riquezas deste mundo me foram dadas, e as dou a quem quero” (cf. Lc 4,6). Sim, quem tem nas mãos as riquezas deste mundo é o demônio, e, portanto, quem acumula riquezas, mesmo que para bons fins, e não as reparte, não as enfraquece da arrogância inerente a elas, quer goste ou não, é um administrador de Satanás!
Nessa recusa de Jesus, está contida toda a assunção da pobreza como lógica de abaixamento, de humildade: “Aquele que era rico fez-se pobre por nós” (cf. 2Cor 8,9), “aquele que estava na condição de Deus, despojou-se até se tornar escravo” (cf. Fl 2,6-7). Sabemos o que Jesus pôde dizer logo após passar por essa tentação: “Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mt 6,24). É por isso que a palavra de Deus invocada por Jesus como mandamento radical e definitivo é: “Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto” (Dt 6, 13).
Desse modo, Jesus também nos deixa um rastro a seguir quando somos tentados. Quando surge a tentação, não se deve entrar em diálogo com Satanás, não se deve demorar na escuta da sedução, talvez confiando nas próprias forças. Não, é preciso apenas recorrer à palavra de Deus, invocar o Senhor, não ceder a nenhum diálogo com o mal, mas afastar o tentador com a força de Deus.
É assim Jesus expulsa o demônio (“Vai-te embora, Satanás!”), como vencedor do mal e das tentações; e faz isso passando por eles, para poder “ter compaixão, sofrer conosco (simpathêsai) as nossas fraquezas” (Hb 4,15). Exatamente como lemos na vida de Antônio, o pai dos monges.
Exausto pela luta vitoriosa contra as tentações, ele vê o Senhor em um raio de luz e lhe pergunta: “Onde estavas? Por que não apareceste desde o início para pôr fim aos meus sofrimentos?”. E ouviu a resposta: “Antônio, eu estava aqui lutando contigo”.
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O diabo nos induz à tentação. Comentário do monge Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU