13 Janeiro 2023
Soube da morte de Bento XVI no dia 31 de dezembro, enquanto estava lendo o mais recente e esplêndido livro de Enzo Bianchi, “Cosa c’è di là. Inno alla vita” [O que tem lá. Hino à vida], publicado pela editora Il Mulino. Coincidência? Não sei.
O certo é que Enzo Bianchi estava ligado a Ratzinger por um sentimento de admiração, embora não compartilhasse algumas escolhas de seu pontificado. Depois, na segunda-feira, dia 2, li sua recordação sensível e gentil no jornal La Repubblica e pensei em telefonar para ele. Ele ficou feliz em responder às perguntas.
A reportagem é de Davide D’Alessandro, publicada em L’HuffPost.it, 05-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode me dizer algo sobre a emoção que sentiu no dia da renúncia de Bento XVI e a que sentiu diante da notícia de sua morte?
No dia da renúncia, eu não as esperava, mas tinha certeza de que estavam perto. Conhecendo-o, ele jamais continuaria em condições de doença. Quando eu o vi quase sendo arrastado pelos acompanhantes, pensei que apresentaria sua renúncia. Ele sempre teorizou sobre o serviço, sempre esteve longe da santificação da autoridade, do poder. Nisso, ele era extremamente radical. A humildade era sua força. Sua pessoa importava pouco, ele se descentrava. Na última vez que o encontrei, conversamos justamente sobre a arte de se descentrar. No dia 31 de dezembro, senti pesar, mas a perda era esperada. Ele estava se apagando como uma vela. A vida tem limites intransponíveis, e todos devemos aceitá-los. Soltar as garras da vida é essencial como pessoas e como cristãos.
Podemos dizer que a renúncia representou uma morte simbólica, antes da segunda e definitiva?
Certamente, ele morreu duas vezes. Primeiro para o ministério, depois para a vida. E em ambos os casos o fez com grande dignidade, confiando-se à consciência e à oração. Aquelas palavras finais, “Senhor, te amo”, são a síntese de uma vida extraordinariamente bem vivida.
“Jesus não desceu da cruz”, disse João Paulo II, descartando a ideia da renúncia. Bento XVI, ao invés disso, desceu. Foi também por isso que ele foi menos amado do que seu antecessor?
Acho que um certo “titanismo” fazia parte do caráter do papa polonês, mas não devemos dizer que seja sempre motivo de exemplaridade. Eu sentia a distância do heroísmo de quem queria permanecer obstinadamente na cruz. É preciso pensar naquilo que se pode dar à Igreja. Se não se pode dar, é preciso recuar, dar um passo para trás. Além disso, Wojtyla era muito amado fora da Igreja, mas não dentro, como se pensa. Seu pontificado foi contraditório. “Santo súbito” por parte do povo e de alguns espíritos seculares que viam a afirmação de sua forte ação política, mas, dentro da Igreja, evidenciava-se o fato de ele não ter favorecido coerentemente o desenvolvimento do Concílio Vaticano II. Ratzinger foi pouco amado porque, acima de tudo, era um professor universitário, muito gentil, mas distante. Não se entregava facilmente nem às pessoas nem aos aplausos. Os aplausos o incomodavam. Para um grande teólogo, muito refinado, é mais simples entrar na ágora dos intelectuais do que no coração das pessoas. Ele expressou posições muito nítidas e claras em um momento de grande fluidez para a teologia e para a fé. A sua grandeza será redescoberta quando lermos com atenção as suas homilias. Ali está a substância daquilo que vai permanecer.
O que significa a escolha do nome Bento, o fundador do monaquismo ocidental?
Ratzinger foi um homem de oração, de vida monástica até mesmo no meio das pessoas. Ele parecia um monge que saía da cela, ia para o escritório cumprir seu dever e voltava para a cela. Inspirando-se em Bento, padroeiro da Europa, tinha uma visão preocupada com ela e sempre considerou que a Europa poderia e deveria ter uma função no mundo da civilização e de recordação dos valores da civilização cristã. Ratzinger é o último papa europeu, com o destino da Europa no coração. O Papa Francisco, como vemos, escolhe as periferias do mundo, mas ainda não fez viagens pastorais aos grandes centros europeus. Ele não sente a Europa como Bento XVI a sentia.
Você sabe bem o que é um mosteiro e, no mosteiro, teve a oportunidade de encontrá-lo e de passear com ele pelos jardins vaticanos. Como ele vivia a condição de papa emérito?
Bem. Ele havia interrogado longamente a própria consciência, encarnava uma refinada teologia da consciência humana que poucos têm na Igreja Católica. Para ele, vigorava o primado da consciência. Tornou Newman santo, ele que lembrava que, mesmo como católico, posso ouvir o papa, mas obedeço apenas à minha consciência. Ratzinger repetiu essa frase pelo menos dez vezes. Era “cutucado” pela consciência. Ouviu a consciência e a seguiu. Era muito sereno, embora às vezes sofresse por alguns caminhos que a Igreja estava tomando depois dele.
Quais foram os pontos fortes e fracos de seu papado?
O ponto forte, sua teologia como primado da razão. Reivindicava que a religião se defrontasse, se abrisse. A religião sem razão, disse ele mais de uma vez, corre o risco de ser fanatismo, intolerância e violência. Pensemos em Regensburg e no quanto isso lhe custou. Como elemento de fraqueza, eu diria que ele absolutamente não era feito para agir como pastor, não possuía as armas necessárias para ser pastor de uma Igreja plural. Era inadequado em relação aos tempos que a Igreja vivia. Renunciou também por isso.
Teremos novamente dois papas?
Acho muito provável. A idade se prolongou, mas as forças desaparecem antes. O Papa Francisco também caminha com dificuldade, é obrigado a recorrer a uma cadeira de rodas. Para desempenhar um ministério amplo, são necessárias notáveis forças físicas, psíquicas e espirituais, que, depois dos 80 anos, declinam para todos. Estou certo de que o Papa Francisco, no caso de uma grave impossibilidade de seguir em frente, não hesitará em renunciar. A figura sacra do papa que chega até a morte acabou. O povo não precisa mais de heroísmos e de titanismos para considerá-lo necessário à Igreja.
O cardeal Bagnasco já desejou que Ratzinger seja reconhecido como Doutor da Igreja. Muitos fiéis gostariam que ele fosse “santo súbito”. Concorda?
Não é justo tornar ninguém “santo súbito”. Cometeram-se erros ao proclamar santos muito rapidamente, e seria preciso abandonar este automatismo: primeiro papa e depois santo. Também existem pessoas admiráveis e veneráveis sem o selo da santidade. Em relação ao Doutor da Igreja, vamos devagar também. Doutores são os grandes Padres. Eu seria mais cauteloso.
Progressista e conservador são palavras desgastadas pela nossa política local. Fazem sentido dentro das dinâmicas eclesiásticas?
Não podemos ser rotulados, mas é verdade que um papa se distingue pelo impulso ao mundo, e outro, pela ausência de coragem profética. Nos ambientes eclesiásticos, o conservador é associado ao sábio; o progressista, ao profeta. Profeta foi João XXIII; conservador, João Paulo II.
Em seu último livro, você escreve que sempre buscou a eternidade. Como Ratzinger...
Absolutamente sim. No entanto, acrescentaria que o papa tinha uma fé na eternidade muito maior e mais sólida do que eu.
Aprende-se a viver aprendendo a morrer?
Isso mesmo. É uma das grandes reflexões que fizemos durante o passeio pelos jardins vaticanos. Ele me disse que, vivendo, entramos na eternidade, vivendo já hoje a vida eterna em Jesus Cristo.
Existe uma palavra pessoal do papa emérito dirigida a você de forma confidencial, uma palavra que você carrega em seu coração?
Sim, algumas palavras. Assim que a caminhada acabou, descendo os degraus, eu parei em um banco para escrevê-las em uma folha. Era um homem bom, manso, tinha um grande respeito pelas pessoas. Teve respeito por mim, mesmo sabendo de algumas de minhas discordâncias.
Você se lembra de uma delas?
Quando ele concedeu a liberdade de celebrar a missa com rito pré-conciliar a todos os padres, eu escrevi no La Repubblica que obedecia, mas não concordava.
Como Newman… Obviamente, não é possível saber o que você transcreveu naquela folha...
Obviamente não.
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Adeus ao último papa europeu. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU