05 Dezembro 2018
A eleição de Jair Bolsonaro é descrita fora do Brasil como parte de um fenômeno global de fortalecimento de políticos de direita que se autointitulam nacionalistas, conservadores e, em muitos casos, são acusados de autoritarismo e falta de atenção ao pleito de grupos vulneráveis como mulheres, negros, indígenas, refugiados e LGBTs.
A entrevista é de Ricardo Senra, publicada por BBC News Brasil, 04-12-2018.
Mas, a vitória do candidato do PSL também é narrada como resposta dos eleitores a sucessivos escândalos de corrupção e revéses econômicos enfrentados por governos e partidos social-democratas ou de esquerda, que após terem comandado uma série de países do Ocidente a partir dos anos 2000, colecionam derrotas nas urnas nos últimos anos.
O símbolo maior dessa onda conservadora, que também conta com o ministro do interior italiano Matteo Salvini, o primeiro-ministro da Hungria Viktor Orban e o presidente dos EUA Donald Trump, é o estrategista Steve Bannon, responsável pela campanha vitoriosa do presidente americano e criador do chamado "movimento", uma organização global que pretende eleger e aproximar populistas de direita.
Já o grupo que se opõe a essa tendência ganhou corpo na última semana, quando, ao lado do socialista americano Bernie Sanders e do petista Fernando Haddad, o ex-ministro de finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, lançou uma frente Internacional Progressista que ganhou manchetes nos principais jornais do mundo. O movimento promete reunir políticos que se opõem a cortes de programas sociais, apoiam órgãos multilaterais como a ONU, o Mercosul ou a União Europeia e defendem medidas de combate à mudanças climáticas, como o Acordo de Paris.
No último sábado, durante um dos eventos de lançamento da frente internacional na New School, em Nova York, Varoufakis conversou com exclusividade com a BBC News Brasil sobre a nova articulação internacional e suas impressões sobre o futuro presidente brasileiro.
"Quando alguém celebra as piores características do passado brasileiro, incluindo a tortura, a única coisa a se dizer a esta pessoa é: 'No pasarán'", disse, em referência ao clássico slogan anti-fascista surgido na primeira Guerra Mundial e popularizado pelos comunistas durante a guerra civil espanhola.
Para Varoufakis, o amplo apoio que Bolsonaro recebeu de empresários e investidores no Brasil o distingue dos demais líderes conservadores internacionais. "Na Europa e nos EUA, o capital industrial e os bancos não caíram de amores pelos fascistas atuais (...) Eles se alinharam com Hillary Clinton, Angela Merkel, Emmanuel Macron. Exceto pelo Brasil. No momento em que isso começar a se espalhar pela Itália, pela Alemanha, pela França, nós estaremos acabados. A não ser que nos oponhamos."
Pouco depois de sair de um encontro na Universidade de Colúmbia com 200 ativistas que fundaram uma "Rede Nacional pela Democracia no Brasil", em apoio a movimentos sociais, universidades e conquistas sociais dos governos petistas, Fernando Haddad dividiu palanque com Varoufakis e disse que se sente "como um judeu nos anos 30", diante do antipetismo inflado pelo rival na disputa presidencial.
"Estamos todos de acordo que esta onda conservadora representa um risco efetivo para os direitos em geral, dos civis aos ambientais, passando pelos politicos e sociais, e que, diante dela, também precisamos nos organizar", disse Haddad à BBC News Brasil.
Varoufakis ganhou fama internacional durante o colapso econômico enfrentado pela Grécia em 2015, quando o país, após sussessivos empréstimos internacionais, quase saiu da zona do Euro por não conseguir honrar compromissos com credores europeus. O carismático "economista motoqueiro" articulava uma renegociação da dívida, endossada pela população em um plebiscito, mas renunciou após o governo aceitar duras medidas de austeridade impostas para o pagamento dos empréstimos.
O que teria feito diferente? "Eu não teria confiado em meu primeiro-ministro", disse Varoufakis à BBC News Brasil, em meio a uma longa auto-crítica sobre "erros infindáveis" que atribui à esquerda, que preferiria brigar entre si "em vez de lutar contra o capitalismo".
Esta frente progressista internacional é uma resposta ao chamado "movimento" de Steve Bannon? Começa daí?
Não começa daí. Steve Bannon é um dos nossos alvos. Mas a esquerda sempre foi considerada internacionalista. Lembre-se: "trabalhadores do mundo, uni-vos" [trecho do Manifesto Comunista]. Isso não é novidade. Em algum lugar do caminho, nós nos esquecemos disso e tentamos associar nacionalismo ou paroquialismo com a esquerda. É uma mistura que nunca funciona, uma contradição em termos.
Falando como economista, político e cidadão, 2008 foi um momento na História. E, assim como depois de 1929 as análises anteriores não faziam mais sentido, o mundo mudou drasticamente depois de 2008. O modelo pós-guerra se tornou tóxico e insustentável e, como espécie, nós estamos experimentando um fenômeno muito estranho na última década. O antigo sistema morreu e o novo ainda não nasceu.
E, claro, há a emergência de monstros políticos em todos os lugares. Steve Bannon é apenas um sintoma. Começamos com o DIEM-25, o movimento europeísta internacionalista, em 2016, bem antes de alguém saber algo sobre Steve Bannon vindo para a Europa. E, claro, se você tem uma agenda internacionalista, então não pode parar na Europa, tem que cooperar com os outros.
Dado que o futuro do mundo dependerá do que acontece no triângulo entre a União Europeia, os EUA e a China, se formos coerentes, não podemos nos dar ao luxo de ficar na Europa. Por isso que também fizemos uma chamada aberta com Bernie Sanders e outros para trazer à cena um novo contrato sustentável internacional. Para que a Europa possa se tornar civilizada novamente, para que os EUA possam acabar com essa espiral em direção a uma combinação de autoritarismo e fracasso, e que em todas as partes do mundo que estão sendo agora tomadas pelo nacionalismo internacional, seja na Índia de (Narendra) Modi (primeiro-ministro), ou com Bolsonaro no Brasil, a esperança possa voltar.
Bannon, como sabe, pretende eleger presidentes, primeiros-ministros, congressistas. É este seu plano? Como a internacional vai funcionar na prática?
Bom, nós temos que ser ambiciosos. Se não ganharmos eleições, não vamos conquistar nada. Mas nós não somos Bannon por duas razões. Primeiro, nós não temos o dinheiro que esses caras têm. Hoje, estes postos são comprados, especialmente nos Estados Unidos.
Como comprados?
O financiamento de campanha neste país tornou a democracia impossível. Mas não só aqui. Olhando para a Europa, veja Emmanuel Macron. A história de sucesso dele parte das dezenas de milhões de euros que o permitiram tocar uma campanha e vencer do nada. Nós não temos dinheiro.
E, em segundo lugar, algo bem mais importante. Nós não estamos interessados em investir em derrotar a raiva e a frustração com autoritarismo. E não é nada fácil agir assim. Os fascistas e nacionalistas têm um trabalho bem simples pela frente: tudo o que precisam é ir até multidões de pessoas descontentes, cujos filhos estão indo morar fora e cujas perspectivas são piores que as das gerações anteriores, e dizer a eles: "É tudo culpa dos estrangeiros. Tirem os estrangeiros e tudo vai ficar bem."
É fácil agir assim, mas nós não estamos interessados em soluções fáceis e desumanas como estas.
O Brasil costuma ficar de fora deste tipo de articulação internacional. Por que decidiu chamar Fernando Haddad?
Depois de 2008, que eu insisto ter sido o 1929 da nossa geração, o mesmo processo deu espaço para o crescimento de figuras e forças políticas fascistas. Mas há uma diferença entre agora e os anos 1930.
Na Europa e nos Estados Unidos, o capital industrial e os bancos não caíram de amores pelos fascistas atuais. Eles não se alinharam com eles. Eles se alinharam com Hillary Clinton, Angela Merkel, Emmanuel Macron, e por aí vai.
Exceto pelo Brasil. No Brasil, os interesses da oligarquia se alinharam com os fascistas. Agora, no momento em que isso começar a se espalhar pela Itália, pela Alemanha, pela França, nós estaremos acabados. A não ser que nos oponhamos.
Então, o Brasil se tornou o prenúncio de um futuro distópico.
Se Bolsonaro estivesse aqui para debater, se vocês tivessem oportunidade de conversar, o que diria a ele?
Bem… (longa pausa). Nada. Absolutamente nada. Porque Bolsonaro é insignificante. Ele é só um braço de um novo movimento fascista de uma oligarquia privilegiada e de um cartel de interesses. Ele está fazendo seu trabalho e nós vamos fazer o nosso.
Quando alguém celebra as piores características do passado brasileiro, incluindo a tortura, a única coisa a se dizer a esta pessoa é: "No pasarán".
Você disse que a esquerda deveria se reinventar…
Eu nunca usei esta palavra. Eu a odeio.
Bom, seu discurso trouxe muitas autocríticas e falou sobre a importância de novos caminhos.
É claro. Mas reinventar é algo que, você sabe, as pessoas do marketing usam. Nós reinventamos um produto. Eu não gosto dessa linguagem.
Literalmente, você disse que…
Nós precisamos ter autocrítica. Precisamos aceitar que falhamos.
Você se refere a que erros? Onde a esquerda erra?
Por onde você quer que eu comece? Há vários erros.
Nosso autoritarismo, a forma como, desde o início, a partir de 1917, nós temos nos colocado uns contra os outros e indo em direção ao autoritarismo, e criado campos de concentração para nossos camaradas. O arquipélago de gulags (antigos campos soviéticos de trabalhos forçados para criminosos e presos politicos) foi um erro.
O fato de muitos marxistas estarem bem mais interessados em brigar com outros marxistas em vez de com o capitalismo. A maneira como falhamos em estender a narrativa de libertação e emancipação para mulheres e minorias, apesar de sempre dizermos que estamos fazendo isso, mas não na realidade. Basta olhar para o equilíbrio de gênero do partido comunista chinês. A lista não tem fim.
Mas também filosoficamente, se preferir. O fato de termos abandonado o conceito de liberdade e abraçado o conceito de igualdade, perdendo as raízes emancipadoras da tradição marxista e terminando em um conceito frouxo de igualdade.
A esquerda esteve em voga há até pouco tempo. Boa parte da América do Sul era governada por politicos considerados progressistas. Os Estados Unidos tinham Barack Obama, que está 'a esquerda se comparado com Donald Trump. O que mudou?
Obama não estava na esquerda. Obama trabalhou para trazer Wall Street de volta a seus momentos de glória, usando a esperança que ele cultivou nas pessoas contra ele próprio.
Ok, América Latina. Sim. E fizeram um trabalho excelente, um trabalho significativo em redistribuir a renda. Mas eles não fizeram nada para redistribuir a riqueza.
Os fluxos de renda são muito fluidos. Muito arriscados. Foi preciso apenas a China parar de comprar tanto quanto comprava para a "onda rosa" morrer (o termo "pink wave", em inglês, se refere aos governos de esquerda eleitos na América Latina no início do século 21).
Então, a não ser que a esquerda encontre formas de mudar a distribuição de direitos de propriedade, não é revolução. É um revés temporário para a oligarquia. E aí a oligarquia volta para se vingar.
Você diz que China influenciou o apogeu e a queda dos governos de esquerda.
Ela gerou enormes fluxos financeiros para a América Latina, comprando produtos de exportação como se fossem pão quente.
Então, você tem populações frustradas há décadas, populações que estavam olhando para a esquerda em busca de uma trégua, e a esquerda começa a dar braçadas no momento em que os cofres do Estado estavam se enchendo de dólares por causa das importações chinesas.
Lula é um ótimo exemplo de como usar este dinheiro de forma muito esperta para tirar milhões da pobreza, o que é fantástico. Mas, no momento em que a China para de comprar, o cofre fica vazio.
E tem algo bem interessante que também acontece. Enquanto o dinheiro estava vindo da China, outro dinheiro estava vindo de Wall Street, tentando tomar vantagem das oportunidades especulativas em países que estavam crescendo.
Na hora em que a China começou a cortar suas importações de Brasil, Argentina, Peru, Chile e outros, o dinheiro americano e do ocidente parou de novo de circular. É uma combinação de rendas reduzidas e fluxos financeiros de saída.
Donald Trump também critica a dependência da China. Qual é a diferença?
Não, eu estou criticando a esquerda por ter estacionado em apenas redistribuir a renda que estava vindo e não ter se concentrado em redistribuir a propriedade e a riqueza. Não tem comparação com Trump.
Além dos erros da esquerda na América Latina, também queria ouvir sobre a sua experiência na Grécia: o que faria de diferente hoje?
Eu não teria confiado em (Alexis) Tsipras (então primeiro-ministro da Grécia durante a gestão de Varoufakis no ministério das finanças do país).
Eu não teria confiado em meu primeiro-ministro. Essencialmente isso. Se soubesse que não poderia confiar nele, eu não teria trabalhado como um cão para conseguir um interregno com os credores: quatro meses de ampliação em nossos contratos de empréstimos, durante os quais poderíamos negociar com boa fé. Eu consegui essa extensão de 4 meses achando que teria o apoio do meu primeiro-ministro e que usaria este tempo para nos preparar para o choque no caso de eles não se sensibilizarem. Mas, ao contrário, ele usou estes quatro meses para se render.
Mas você acha que teria conseguido conquistar o apoio da União Europeia naquela situação?
Eu não conseguiria. Eu nunca esperei este apoio. Eu queria que eles fizessem uma escolha muito simples: nos tirar da Zona do Euro ou nos dar uma reestruturação da dívida. E eles nunca nos dariam isso enquanto sentissem que poderíamos nos entregar.
Eu não queria abandonar o euro, mas não estava preparado para aceitar continuar sem a reestruturação da dívida. Meu maior erro foi achar que meu primeiro-ministro estaria ao meu lado.
A direita populista e os nacionalistas, os fascistas, como você descreve, estão sendo eleitos pela população. Por que eles estão conquistando este apoio?
Sim. E eles também foram eleitos nos anos 1920 e 1930. Mussolini tinha a maioria dos Italianos com ele, da mesma forma que (Matteo) Salvini (ministro do interior) tem hoje.
Quando o capitalismo entra em uma crise financeira e os custos desta crise são transferidos para os ombros de muitos, por meio de austeridade para a maioria e socialismo para os banqueiros, uma enorme insatisfação começa a acontecer. E a base deste descontentamento é o fertilizante que gera populistas e racistas. É assim por toda parte, e em qualquer época, seja no entre-guerras ou não.
E como a esquerda poderá recuperar protagonismo?
Nós precisamos aprender a lição que (Franklin) Roosevelt (presidente dos EUA entre 1933 e 1945) nos ensinou com o New Deal. Em outras palavras, precisamos de um projeto que é muito mais progressista que o New Deal, mais inclusivo, porque o New Deal foi algo exclusivamente patriarcal, mas que tinha uma grande ideia central: como usar, como pegar o dinheiro privado que está ocioso e usá-lo para o bem público.
Precisamos deste New Deal para o meio-ambiente, para as comunidades mundo afora e, para isso, precisamos ser internacionalistas. Por isso criamos a Internacional Progressista.
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‘Esquerdas na América Latina distribuíram renda mas falharam em não distribuir riqueza’. Entrevista com Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU