18 Mai 2013
"Liberar as coisas de ser útil é a política antropológica – não cêntrica – colocada no fluxo da constelação metafetichista", é a aposta do professor de antropologia cultural, arte e culturas digitais.
Abandonar a perspectiva filosófica clássica, reforçada por Marx, de que o ser humano é a medida de todas as coisas é apenas um dos desafios para deslocarmos a ideia antropocentrista do olhar. “A crise é do olhar, de desenvolver uma atitude e um treino para aprender a olhar, um olhar que modifica o olho, claro, talvez nesse sentido poderia aceitar a ‘crise do olho’. Mas uma crise construtivista, que pretende ir além do atual e não de ‘miopizar’ (outro péssimo neologismo) os olhos. A democracia ocidental é baseada sobre a relação entre palavra e olhar. Ágora é a praça e na praça eu posso escutar o político porque posso vê-lo”, provoca Massimo Canevacci, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A crise antropocêntrica para mim significa distribuir os olhos em cada sujeito da natureza”, complementa.
Massimo Canevacci é doutor em Letras e Filosofia pela Universidade La Sapienza – URS, na Itália, de onde é natural. Foi professor visitante na UFSC (2010-2011) e na UERJ (2012). Pesquisa etnografia, comunicação visual, arte, cultura digital. Desde março deste ano é professor visitante na IEA-USP. É autor de livros como Antropologia da comunicação visual (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001), Antropologia do cinema (São Paulo: Editora Brasiliense. 1990), Fake in China (Maceió: Edufal, 2011) e Fetichismos visuais (São Paulo: Atelier Editorial, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que medida o antropocentrismo condiciona nosso olhar sobre as imagens?
Massimo Canevacci – A filosofia clássica afirmou com Demócrito que “o homem é a medida de todas as coisas” e Marx repetiu esta citação no seu livro mais famoso. O inteiro pensamento humanista é baseado sobre este assunto. Isso foi, ainda que em parte, elemento decisivo para afirmar a centralidade do ser humano (mais o “homem”) autônomo e livre que dão os condicionamentos religiosos ou irracionalisticamente míticos.
Esta visão humanística – no contexto histórico atual – tem alguns limites. É a relação entre humanismo e antropocentrismo que precisamos focalizar melhor. Com o segundo conceito, entende-se que o centro com relação à natureza é o antropos (isto é não homem, mas homem e mulher). Esta centralidade precisa ser questionada. A natureza em geral (seja a chamada “primeira natureza”, seja a chamada “segunda natureza” – objetos, mercadorias, etc.) virou território de domínio da razão instrumental que achava a potencialidade de “extrair” coisas infinitas.
O centrismo é a tendência a centralizar sobre um elemento (étnico, sexual, esportivo, individual) em contraposição aos outros. Uma antropologia progressiva deseja criticar cada forma de centrismo. Em relação ao específico antropocentrismo, precisamos elaborar um pensamento prático, diria um treino filosófico descentrado, pelo qual cada pessoa poderia imaginar que uma floresta perdida, uma coisa banal, um objeto biográfico, uma onda do mar, o www, a obra de Michelangelo é um centro. Dessa maneira, configuramos uma constelação móvel policêntrica, polifônica e polimorfa: e o ser humano é parte desta constelação, nunca mais o centro.
IHU On-Line – É possível enxergar fora de um critério antropocêntrico e etnocêntrico?
Massimo Canevacci – Sim, é possível, mas é complicado pela resistência não somente econômica de colocar a estrutura produtiva como centro instrumental das relações com o mundo, mas também pela longa história psicocultural que imaginou (e praticou) este centrismo como a base da autoafirmação do sujeito racional. Este modelo histórico está claramente em crise.
A universidade expandida nas culturas digitais poderia elaborar uma sua filosofia antropológica e talvez um projeto pragmático para mudar o posicionamento político de cada sujeito. Vou resumir de maneira bastante sintética o que tenho pensado: uma visão, uma imaginação exata de olhar em direção de um metafetichismo, um fetichismo além do poder reificado das mercadorias ou de uma política autocentrada, poderia precursar uma visão onde o dualismo entre orgânico e inorgânico, objeto e sujeito, mercadoria e coisa, ser e natureza, tendencialmente vá a acabar. Imagino um movimento de libertação dos objetos inorgânicos que eu gosto de chamar facticidade. Liberar as coisas de ser útil é a política antropológica – não cêntrica – colocada no fluxo da constelação metafetichista.
IHU On-Line – Que diferenças percebe entre olhar e ver? Em uma sociedade imagética como a nossa, como se apresenta essa dicotomia?
Massimo Canevacci – Esta distinção é muito difícil de precisar. O vocabulário não nos ajuda muito. Eu posso olhar tudo sem ver nada. Talvez seria possível elaborar uma clareza neste dualismo que, obviamente, eu não gosto. Penso a disposição de um sujeito a um olhar passivo como maravilhosa. Passivo não significa, porém, inconsciente, subordinado, “feminilizado”. Um olhar que incluía o ver e que se oponha dicotomicamente. A comunicação visual que prolifera na frente e talvez na interioridade dos nossos olhos é a metodologia que precisamos aplicar. Uma metodologia nunca mais externa, mas interna dos corpos dos olhos. Um corpo cheio de olhos.
IHU On-Line – O senhor, em outra entrevista, considerou que o tema da “XI Semana da Imagem – Para entender as imagens: como ver o que nos olha?” é um convite a nos tornarmos olho. Como explicar essa afirmação?
Massimo Canevacci – Eu sei que a dimensão polissensorial é sempre mais constitutiva de um ser humano mais aberto e, de novo, polimorfo. Ao mesmo tempo, acho que os olhos e o olhar em geral continuam a ser muito mais importantes que o cheirar, o provar/palatar e o ouvir. A música atual (mas acho a música em geral) parece que não tem “sentido” sem vê-la no hic et nunc da sua própria elaboração. Às vezes, ver a musica é mais importante que ouvi-la. Lembro um fragmento do livro de Thomas Mann, Doctor Faustus, onde ele afirma que algumas obras musicais supremas, tipo a arte da fuga de Bach, deveria ser lida, não musicada. Mas cada clip mais banal de Vídeo Music é aceito mais pela qualidade das imagens que pelo estilo musical. Ou seja, a montagem das imagens é parte constitutiva do ritmo, mais que os instrumentos musicais ou a voz do cantor(a). Participar ao vivo na primeira fila de um concerto rock ou de uma opera de Puccini é diferente de escutar ao morto no próprio CD. O olhar fixa a música e favorece um entendimento sensorial melhor que o simples escutar.
Multissensorialidade
Quero dizer que a multissensorialidade é importante sem duvida, mas que, ao mesmo tempo, no corpo polimorfo multissensorial o olho é ainda antropologicamente dominante. Queria lembrar a análise de Freud sobre a mutação radical do Homo sapiens quando transita de uma centralidade sexual baseada no nariz à afirmação da supremacia do olhar. Homo sapiens é tal porque aprendeu a olhar nos olhos do outro o prazer do amor. O cheiro do (e no) amor é ainda importante, mas a irresistível higienização desodorada do corpo pode ser interpretada como uma declaração de subordinação ao olhar. Os olhos não podem ser higienizados ou “de-olhado”, par inventar um péssimo neologismo. Eu sou o olho que apreende continuamente o desejo intelectual de imaginar o que ainda não existe. Um olho pensante. Olhos “reflitentes”. Agora digo o seguinte: a extrema sensualidade do olho fica na sua impossibilidade de ser acariciado, beijado, penetrado. A história do olho não é só aquela de Bataille: nele – no olho – se coagula o máximo desejo de possuí-lo sem possibilidade nenhuma de conseguir este desejo. Por isso o desejo do olho continua e nunca poderia ser “de-olhado”.
Desejo
O ser humano continua a desejar porque nunca poderia possuir o limite do seu desejo: ultrapassar as pálpebras e lamber a pupila. Os cílios são os últimos guardiões. Depois a íris se expande e retrai no encontro com a luz do outro. O cristalino, o bulbo, a retina: a inteira geografia do aparado visual é uma festa extrema que se pode fixar, mas nunca beijar. É defendida por uma tênue linha de pele e justamente esta sutileza da pálpebra é a sua força. Eu queria beijar os teus olhos. Por isso te amo ainda, porque nunca consegui realizar este desejo supremo. Um escritor italiano, Pavese, escreveu uma poesia assim: verrà la morte e avrà i tuoi occhi. Os olhos do amor são imortais. Não se poderia dizer o mesmo das orelhas ou do nariz.
IHU On-Line – Dentro deste debate, poderíamos pensar em uma “crise do olho” como sentido dominante na cultura ocidental?
Massimo Canevacci – Não. A crise é do olhar, de desenvolver uma atitude e um treino para aprender a olhar, um olhar que modifica o olho, claro, talvez nesse sentido poderia aceitar a “crise do olho”. Mas uma crise construtivista, que pretende de ir além do atual e não de “miopizar” (outro péssimo neologismo) os olhos. A democracia ocidental é baseada sobre a relação entre palavra e olhar. Ágora é a praça e na praça eu posso escutar o político porque posso vê-lo. A crise antropocêntrica para mim significa distribuir os olhos em cada sujeito da natureza.
IHU On-Line – Traçando um paralelo entre técnica e cultura, como podemos pensar a multiplicação de imagens e de dispositivos de produzi-las?
Massimo Canevacci – A técnica sempre foi parte constitutiva da cultura, em cada contexto histórico diferente. Nesse sentido, a multiplicação de imagens e do sujeito que as realizam (sujeito pós-orgânico) é exatamente a visão de uma democracia menos ocidental e antropocêntrica e mais descentrada. Espero sempre que um genial inventor como Tim Berners-Lee, aquele da web e do seu uso sem controle de Estado, consiga imaginar a autogeração de imagens no corpo de cada facticidade. Imagens autogeradas são parte de um futuro mais vivível e com menos Berlusconi ou Silvio Santos, isto é, os donos de uma TV generalista e vertical que reproduz o pior do ser humano.
IHU On-Line – O que essa difusão de imagens diz sobre nossa cultura?
Massimo Canevacci – Pergunta difícil. Talvez precisamos criticar mais radicalmente o prejuízo de Platão e de muitas religiões ou da filosofia atual contra as imagens. O medo da imagem e da sua imaterialidade. Por isso, seria filosoficamente melhor imaginar as imagens material/imaterial, além do dualismo clássico que reproduz este preconceito. Em um filme “banal” (ou b-movie), Crocodile Dundee, lembro sempre uma sequência formidável. No bush australiano, uma jovem antropóloga queria fotografar o nativo (“aborígene”). Ela aponta a câmera e ele diz: “Não, não!” (Ela havia estudado os clássicos). “Ah, claro, desculpe, você acha que a imagem rouba a sua alma” – e ele responde. “Não é isso. Você tem o obturador no olho da câmera”.
Muitos filósofos e antropólogos acham ainda que a imagem captura a alma ou o coração de uma pessoa. Um pensamento mágico no sentido mais atrasado permanece vivo. Por isso, eu espero que se poderiam sempre mais selecionar as imagens no sentido de boas, interessantes, experimentais, feias, maravilhosas, preconceituosa etc. A imagens que eu gosto são aquelas que ainda não vi. E que me colocam em uma dimensão de estupor, abrindo a porosidade do meu corpo.
IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de “fetichismo visual” de seu livro Fetichismos visuais – corpos erópticos e metrópole comunicacional (2008)?
Massimo Canevacci – Talvez na perspectiva diagonal que libera a inclinação mais perturbadora: aprender a se inclinar e diagonalizar significa que nada é instintual ou natural no processo de perceber o que está acontecendo aqui e agora. Já apresentei a inclinação do meta-fetichismo, como uma possibilidade de ir além da identificação fetichismo / reificação / perversidade.
Um corpo erótico exprime a tendência de liberar o fetichismo também da tradição cristã que o identifica com condição animista, mágica, supersticiosa, etc. Aprender a favorecer a criação de imagens multissensoriais que excitam a pupila a sair de si mesma e rolar entre a tela do seminário e os olhos dos participantes, e – se via stream – também entre os olhares de um público observador ativo e cocriador.
IHU On-Line – Em termos metodológicos, que alternativas podem ser postas às análises acadêmicas que se debruçam sobre os estudos das imagens?
Massimo Canevacci – O conceito-chave – que influencia e mistura valores declarados em sentido progressivo, métodos etnográficos descentrados, teorias críticas experimentais – é autorrepresentação. Nessa visão, o etnógrafo ou comunicador em geral estão legitimados para interpretar o outro – através da comunicação visual ou composições performáticas – apenas quando estão disponíveis para se deixar interpretar pelo outro. Esta dialógica e este desafio apresentam uma epistemologia transitiva da representação. Assim, método etnográfico indisciplinado, teoria crítica experimental, autorrepresentação polifônica e sujeitos transitivos configuram a pesquisa em forma de constelação móvel. Emerge uma etnografia ubíqua baseada sobre tensões sincréticas e polifônicas de verificar empiricamente entre identidades flutuantes, fetichismos visuais, culturas digitais. A metrópole muda e o trítico comunicação / cultura / consumo é sempre mais determinante na experienza quotidiana em particular das culturas juvenis e se insere nos fluxos contemporâneos da autorrepresentação, praticados nos interstícios transurbanos e nas redes sociais digitais.
Cidadania transitiva
Nesse contexto, uma deslocante cidadania transitiva – participada na metrópole comunicacional em conexão com identidades flutuantes – apresenta uma crítica política horizontal sobre a divisão comunicacional do trabalho: uma crítica pragmática além do poder vertical de “quem representa quem”. Este movimento transitivo se manifesta em direção de espontâneas narrativas descentradas, performances urbanas, fluxos digitais, exata mistura de arte, publicidade, design, arquitetura, cinema, música, moda, esporte. Por isso entre “quem representa” e “quem é representado” há um nó linguístico específico, relativo ao que chamo “divisão comunicacional do trabalho”, que precisa ser enfrentado nos métodos e nas pragmáticas. Entre quem tem o poder de enquadrar o outro e quem deveria continuar a ser enquadrado – para ser um eterno panorama humano –, ossificou-se uma hierarquia da visão, que é parte de uma lógica dominante a ser posta em crise na sua presumida objetividade.
As novas subjetividades que estão se afirmando como “outras” têm a vantagem de poder usar as tecnologias digitais que favorecem esta descentralização com um efeito de ruptura não comparável com o analógico. Facilidade de uso, redução dos preços, aceleração das linguagens, descentralização de ideação, editing, consumo. A divisão comunicacional do trabalho entre quem narra e quem é narrado – entre auto e heterorrepresentação – penetra na contradição emergente entre produção das tecnologias digitais e uso destas mesmas tecnologias por sujeitos ubíquos com autônomas visões do mundo. Sincretismos culturais, pluralidades de sujeitos, polifonias de linguagens: esta é a premissa valorativa e metodológica das representações transitivas que apoia criatividades indisciplinadas. Enfim, estou trabalhando sobre o “estupor metodológico”, mas quero falar na próxima entrevista sobre esta “maravilha”.
IHU On-Line – Existem fronteiras para pensar distintamente os fenômenos sociais e comunicacionais ou a contemporaneidade é marcada pela indistinção das áreas de conhecimento?
Massimo Canevacci – A pergunta explicita o problema. São as fronteiras, os espaços mais significativos da pesquisa atual. São as fronteiras clássicas, que são cruzadas sempre mais pela subjetividade diaspórica, que não conseguem ficar paradas no seu território nativo, nas suas raízes obscuras e inflexíveis, e por isso desafia as regras e clandestinamente cruza a linha. Mas também as fronteiras digitais ou espistemológicas, aquelas que desejam favorecer a indisciplina como desafio de uma universidade compartimentalizada que não pode continuar a sobreviver entre faculdade, departamentos, currículos delimitados e cerrados como prisão. Os centros das pesquisas são sempre mais culturas, individualidades, identidades, que decidem movimentar o seu próprio estatuto, cruzar e mesclar – sincretizar – as fronteiras culturais e ainda mais políticas. Olhar a linha da fronteira significa indisciplinar e inclinar as áreas e os modelos de conhecimento. E tentar de descobrir além de, às vezes, praticar o que ainda não é imobilizado pelo conceito.
Nota: A fonte da imagem que ilustra esta entrevista é http://migre.me/eAY4W
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A palavra e o olhar. Uma relação que está na base da democracia ocidental. Entrevista especial com Massimo Canevacci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU