"A agência coletiva parece relegada ao segundo plano em nome de prognósticos e diagnósticos acerca do desenvolvimento tecnológico propriamente dito", constata o cientista político
Se, por um lado, o aceleracionismo de esquerda tem riscos e limites ao depositar sua confiança no desenvolvimento tecnológico para garantir avanços e transformações sociais, por outro, esta corrente teórico-política tem o “mérito” de “chacoalhar” a esquerda tradicional, “resignada, acomodada, ordeira, ou seja, uma esquerda que se adequou à ordem e desistiu de qualquer tipo de imaginação política e, no limite, concebeu a ideia de que a sua única tarefa possível é administrar o capitalismo”, resume Rodrigo Santaella na apresentação das principais ideias que marcam o pensamento conhecido como aceleracionismo de esquerda.
Na videoconferência intitulada O problema do aceleracionismo de esquerda, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador comenta os desafios da esquerda no campo da imaginação política. “Uma das palavras mais fortes no campo da esquerda é ‘resistência’ e dificilmente conseguimos passar da resistência a algum outro tipo de produção de novidade e de alternativa. Para enfrentar as ameaças fascistas, não basta defender as instituições e os modos de vida liberal. Para enfrentar o fascismo, é preciso oferecer um projeto alternativo diferente, imaginar um futuro diferente e oferecer essa imaginação como projeto. Ou seja, voltar a se orientar para o futuro e trazer isso de forma firme para o debate público e político”, enfatiza.
Segundo ele, por um lado, a esquerda tradicional padece da não compreensão do desenvolvimento capitalista tecnológico e, por outro, os aceleracionistas são reféns do determinismo tecnológico. “O determinismo tecnológico, que é sintoma de uma visão equivocada sobre tecnologia, é o principal problema do aceleracionismo de esquerda e de qualquer aceleracionismo. O que parece faltar aí é uma reflexão mais detida sobre a relação entre tecnologia e sociedade. O elemento básico dessa discussão, que não traz nenhuma novidade, é o contrário: as tecnologias não são neutras”. A evidência disso, pontua, é que “o desenvolvimento tecnológico que tivemos até aqui foi orientado pelo e para o capitalismo”.
A seguir, publicamos a conferência de Rodrigo Santaella no formato de entrevista.
Rodrigo Santaella (Foto: Reprodução Jangada Online)
Rodrigo Santaella é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (Universidade Federal do Ceará). Realizou, entre 2007 e 2008, estudos durante um ano na Universidad Nacional de La Plata, Argentina, focados principalmente em história social e política da América Latina. Atualmente, realiza pesquisa pós-doutoral na LUT University, em Lappeenranta, Finlândia, com projetos relacionados à planificação econômica, tecnologia e transição digital verde. É membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas das Universidade Estadual do Ceará.
IHU – O que é o aceleracionismo de esquerda?
Rodrigo Santaella – O aceleracionismo de esquerda é uma corrente de pensamento e intervenção política que compreende que, em vez de frear ou resistir aos avanços tecnológicos do capitalismo, é necessário, ao contrário, acelerá-los. O aceleracionismo de esquerda defende a libertação das forças construtivas tecnológicas geradas pelo capitalismo do próprio capital, como se o capital estivesse impedindo-as de atingir seu ápice, de colocá-las a serviço do bem-estar das pessoas. É como se o capital estivesse produzindo condições tecnológicas para que todos vivessem outro tipo de vida, mas a própria dinâmica do capital proporciona amarras que seguram essas condições. Os aceleracionistas de esquerda querem acelerar ao máximo o desenvolvimento tecnológico para que ele atravesse o próprio capitalismo por dentro, chegando a outro tipo de sociedade.
IHU – Quais são as origens deste pensamento?
Rodrigo Santaella – As origens filosóficas e teóricas do aceleracionismo estão em maio de 68, no pós-estruturalismo francês que, a partir do espírito do tempo contra a burocratização, estava muito preocupado com a liberdade, a libido e o desejo. Isto é, em construir um sujeito desejante, que não fosse preso a amarras. Era uma esquerda libertária, desejante, contestadora do formato rígido dos partidos, dos sindicatos estabelecidos e crítica do que estava se tornando a União Soviética.
Deleuze, Guattari e Lyotard estavam discutindo, em 1974, que o problema do capitalismo não é que ele desterritorialize. Ao contrário, é que ele não faz isso de modo suficiente. É preciso desteritorializar ainda mais, ou seja, atravessar o capitalismo e produzir ainda mais desejo e potência. A ideia de acelerar está presente no pensamento do estruturalismo francês e pode ser considerada a primeira onda do que é o aceleracionismo de esquerda. De certa forma, isso tem a ver com uma herança marxista ou com uma heresia marxista. Marx pensa o capitalismo como produzindo condições materiais melhores do que os modos de produção anteriores e criando, com isso, condições para sua própria superação. Mas ele é mais complexo e nuançado do que isso em relação às tendências da tecnologia.
Podemos pensar em três linhas de pensamento diferentes do Marx relacionadas à maquinaria e à tecnologia. A primeira e a mais importante é a ideia de que as máquinas vão sendo cada vez mais importantes no processo produtivo e o trabalho humano vai perdendo importância. Isso faz com que haja uma crise na produção de valor na medida em que só o trabalho humano produz valor. Então a maquinaria contribui para a crise do valor e para a acentuação das contradições do capitalismo.
As duas outras linhas menores têm como pressuposto que as máquinas podem se transformar, sendo autônomas dos trabalhadores. De um lado, está a ideia de que o capital se desenvolve tanto que passa a funcionar de forma quase automatizada e os trabalhadores vão se tornando supérfluos. Essa situação parece uma vitória do capital em relação ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, é uma “vitória de Pirro” porque, quando o capital se desfaz do trabalho, ele não consegue mais produzir valor. A automação subverteria o capital, abolindo o trabalho e o valor e isso geraria uma crise terminal do capitalismo. Os aceleracionistas usam desta vertente do Marx.
Por outro lado, Marx tem uma reflexão em que as máquinas também se tornam autônomas dos trabalhadores, mas isso gera uma dominação total das máquinas sobre os trabalhadores e um processo no qual as máquinas e o capital, de uma forma quase distópica, se emancipam do status do trabalho. Não é o trabalho que se emancipa do capital, mas o capital que parece se emancipar do trabalho. É uma vertente mais pessimista.
IHU – O que é e como surge o aceleracionismo de direita?
Rodrigo Santaella – Depois da primeira onda pós-68, surgiu a segunda onda do aceleracionismo na Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética, na Universidade de Warwick, no Reino Unido. Esse grupo foi liderado por Nick Land e Sadie Plant. Para Land, o capitalismo é uma máquina gigantesca de fluxos de produção de vida, constância e processos que flui de forma que não controlamos. Nesse sentido, os seres humanos não são mais importantes que as máquinas e não controlam nada nesse processo. Segundo ele, para que a máquina siga seu curso, é preciso libertá-la das amarras dos seres humanos e, portanto, libertar o capital. Acelerar, para Land, é “deixar a coisa fluir” sem se interessar muito com o elemento humano. Não cabe a nós tentar construir uma alternativa porque somos parte de uma engrenagem muito maior que nos move. Na visão dele, é preciso viver esse caos e aproveitar essa viagem rumo ao desconhecido, à distopia, ao caos. Land é o fundador e representante do que se convencionou chamar de aceleracionismo de direita. Ele é a inspiração de alguns dos bilionários que investem em neurotecnologia, startup e Inteligência Artificial, como Elon Musk.
Dentro da Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética surgiu outra vertente de aceleracionismo a partir de Mark Fisher, discípulo de Land, que se afastou politicamente do pensamento do mestre e pensou um outro tipo de aceleracionismo, segundo o qual é preciso libertar os fluxos proporcionados pelo capital dos limites do próprio capital, definindo um aceleracionismo prometeico de esquerda que caminha para a construção de um outro tipo de sociedade. A ideia é que o capitalismo neoliberal bloqueia as possibilidades de desenvolvimento humano proporcionadas pelo próprio capital e, portanto, temos que empurrá-lo para frente o máximo possível.
IHU – Qual é o problema que o aceleracionismo se propõe a resolver no campo da esquerda?
Rodrigo Santaella – Do ponto de vista político, este problema tem três dimensões. A primeira, do ponto de vista dos aceleracionistas, é que a esquerda tradicional não compreende as mudanças contemporâneas do capitalismo, sobretudo as mudanças relacionadas à tecnologia. Mas há outros dois problemas profundos: a esquerda não tem mais projeto de futuro e não consegue sair de alternativas locais, muito pontuais. Os aceleracionistas estão tentando dialogar com esses problemas políticos, portanto, com uma esquerda que é resignada, acomodada, ordeira, ou seja, uma esquerda que se adequou à ordem e desistiu de qualquer tipo de imaginação política e, no limite, concebeu a ideia de que a sua única tarefa possível é administrar o capitalismo.
Historicamente, a esquerda sempre foi orientada ao futuro, a imaginar outros modelos de sociedade, a pensar outros futuros possíveis, enquanto a direita sempre foi reacionária, tradicionalista e resistente às mudanças. A direita se segurava no passado e a esquerda apontava para o futuro. Com o avanço do neoliberalismo isso se inverteu de forma curiosa: a esquerda parece hoje se apegar muito mais às tradições e ao passado, enquanto a direita propõe futuros – ainda que distópicos e caóticos –, propõe alternativas e tem uma capacidade de imaginação política por vezes superior. Os aceleracionistas dizem que a esquerda está combatendo as políticas locais, ou seja, fazendo política como reação ao autoritarismo stalinista e aos partidos tradicionais, priorizando o local, o imediato, o voluntarismo. O problema é que ela não tem uma estratégia para conquistar o poder e apresentar uma proposta alternativa.
O principal mérito do aceleracionismo de esquerda é chacoalhar as perspectivas de uma esquerda que se adequou à ordem e aos localismos, de uma esquerda que se acostumou a resistir. Uma das palavras mais fortes no campo da esquerda é “resistência” e dificilmente conseguimos passar da resistência a algum outro tipo de produção de novidade e de alternativa. A provocação do aceleracionismo de esquerda é muito importante porque critica uma esquerda que se acostumou a defender as instituições capitalistas neoliberais contra o avanço fascista. Para enfrentar as ameaças fascistas não basta defender as instituições e os modos de vida liberal. Para enfrentar o fascismo, é preciso oferecer um projeto alternativo diferente, imaginar um futuro diferente e oferecer essa imaginação como projeto. Ou seja, voltar a se orientar para o futuro e trazer isso de forma firme para o debate público e político. O aceleracionismo tenta fazer isso com a esquerda e esse é o seu principal mérito. Os aceleracionistas propõem que tenhamos a ousadia de sonhar futuros diferentes, que voltemos a falar em sociedades alternativas, no fim do capitalismo, e isso chacoalha a política de forma interessante porque eles não estão repetindo as coisas de 80, 100 anos atrás nem estão limitados a soluções locais e à administração do capitalismo.
IHU – Que soluções eles propõem?
Rodrigo Santaella – A literatura do aceleracionismo de esquerda é bastante larga e vou mencionar alguns aspectos que sintetizam algumas ideias. Uma delas é a do pós-trabalho, isto é, a automação tende a eliminar o trabalho humano. Os aceleracionistas partem desse pressuposto. Isso gera, para a esquerda, uma tendência de resistir a essa possibilidade no sentido de sustentar os postos de trabalho. Um exemplo é a máquina que substitui o cobrador de ônibus. A esquerda defende o emprego do cobrador de ônibus. A tendência da esquerda é resistir e defender o paradigma dos postos de trabalho, que é o que garante sobrevivência para as pessoas. Mas a ideia do pós-trabalho dos aceleracionistas é inverter esse quadro, ou seja, em vez de resistir contra a automação, ao contrário, deve-se empurrar a automação para frente, para que ela, de fato, substitua todos os trabalhos e para que possamos defender, de fato, o fim do trabalho como um todo.
Neste paradigma, surge a pergunta: como as pessoas se sustentam sem trabalho? Com renda básica universal para todo mundo. No livro Inventing the future: postcapitalism and a world without work, Nick Srnicek e Alex Williams apresentam uma proposta sistematizada. As pautas imediatas para construir essa reforma têm a ver com a redução da jornada de trabalho, renda básica universal e o trabalho para uma mudança cultural.
Outro livro importante nesta corrente é Comunismo de luxo totalmente automatizado, de Aaron Bastani. A partir de um diagnóstico de como as tecnologias desenvolvidas no capitalismo criam condições materiais para uma sociedade sem trabalho, sem classe e com abundância, ele propõe uma organização social. Segundo ele, a diferença entre o nosso momento atual para as revoluções comunistas e socialistas do século XX é que agora as condições materiais para a mudança existem, enquanto antes, não existiam. Ele diz que a tecnologia já proporciona condições para abundância de energia, por exemplo, porque em apenas 90 minutos a Terra é esquentada pelo sol com energia igual ao que a humanidade consome em um ano inteiro.
Com isso, ele está dizendo que o sol já provê energia necessária para a humanidade se sustentar com tranquilidade. Basta acelerar a tecnologia para desenvolver o uso da energia solar e isso vai resolver o problema energético da humanidade. Ele também fala sobre produção de carne sintética, sem maus-tratos aos animais, sobre mineração de asteroides para produzir matéria-prima, sobre biotecnologia para resolver problemas de saúde. Como todas essas tecnologias são baseadas em informação e automação, a tendência é que no curso o tempo, o custo dessas tecnologias, vá tendendo a zero. Ou seja, elas serão produzidas em abundância. A única lógica que produz escassez é a do capitalismo. No momento em que a abundância for evidente, o capitalismo será superado.
Outra tendência interessante é a discussão sobre planificação econômica e democrática, que é clássica no campo da esquerda e do socialismo desde as revoluções do século XX. A ideia é mais ou menos a seguinte: no capitalismo, o que coordena as relações sociais, a produção e distribuição de mercadorias é o mercado porque, segundo Hayek, um dos pais teóricos do neoliberalismo, o mercado é a forma mais eficaz de produzir informação sobre o que as pessoas querem e, portanto, de produzir informações sobre o que se deve produzir. Segundo essa visão, o capitalismo é a forma mais eficaz porque produz informação de forma espontânea e descentralizada, portanto, democrática. Qualquer alternativa que centralize a produção, prevendo ou supondo o que as pessoas vão demandar, é menos democrática e menos eficiente pela falta de informações concretas sobre o que as pessoas querem de fato.
Este debate foi importante nos anos 1920, 1930; é o debate do chamado cálculo socialista: é possível planificar, planejar a produção de mercadorias? É possível prever e entender a demanda das pessoas e planejá-la a partir disso? É possível orientar a demanda de cima para baixo, com um plano estatal, por exemplo? Os socialistas dizem que isso é possível e têm formas diferentes de argumentar. Os liberais capitalistas afirmam não ser possível, seja porque é logicamente impossível, como afirma Milton Friedman, seja porque não existe nenhum tipo de tecnologia possível no presente para fazer isso, como justifica Hayek.
Dos anos 1920 para cá, houve uma mudança brutal na capacidade de processamento e armazenamento de dados. A ideia do big data, da plataformização articulando tudo, dos algoritmos processando informações a partir de uma quantidade cada vez maior de dados, gerando o que se conhece como Inteligência Artificial – IA, muda o cenário tecnológico.
Em The people's Republic of Walmart: How the world's biggest corporations are laying the foundation for socialism, os aceleracionistas Leigh Phillips e Michal Rozworski defendem a tese de que se o Walmart e a Amazon, que são duas gigantescas corporações capitalistas, fossem países, teriam PIBs maiores do que vários países – e elas têm todo o seu processo produtivo planificado internamente, usando tecnologias. Inclusive, elas têm um processo de previsão das demandas dos seus consumidores. O sucesso do processo de planificação no capitalismo mostra que, tecnicamente, ele é possível. Portanto, podemos transplantá-lo para o modelo estatal sem buscar lucro e com democracia, para, usando a mesma técnica, produzir um resultado de planificação econômica nas sociedades como um todo. Esta é uma tese forte e interessante, que gerou muito debate dentro e fora do aceleracionismo.
A discussão da planificação está bastante vigente hoje e alguns autores propõem sistemas de planificação em várias tendências, mas com esta base comum: a tecnologia contemporânea proporciona outro patamar para este debate e é possível pensar em outras formas de coordenação das relações sociais, de coordenação da produção e de coordenação da distribuição, que não sejam as do mercado. Essas propostas tentam resolver aquele problema colocado pelo aceleracionismo de esquerda com relação à esquerda tradicional, de que ela não tem projeto de futuro, não tem imaginação política e se acomodou.
IHU – Quais os limites do aceleracionismo de esquerda? Que riscos este tipo de corrente de pensamento implica?
Rodrigo Santaella – Vou mencionar dois aspectos. O primeiro problema do aceleracionismo de esquerda poderia ser resumido com a palavra “eurocentrismo”, embora implique mais coisas. É preciso analisar o capitalismo a partir da sua vanguarda, isto é, onde estão as fronteiras de desenvolvimento, a tecnologia de ponta. Para entender o capitalismo, é preciso olhar para as suas tendências, mas não dá para fazer isso sem entender e levar em consideração todas as contra tendências. O capitalismo e suas tendências são pensados, pelos aceleracionistas, a partir do centro, e algumas das conclusões ou pressupostos que esses autores compartilham advém dessa especificidade. Existem dois problemas nisso. De um lado, falta de reconhecimento das diferentes dinâmicas geográficas do capital. O capital, na busca por eternizar processos de acumulação primitiva, pode destruir deliberadamente aquilo que construiu para começar do zero, por exemplo, através de guerras, mas também pode encontrar lugares novos para se desenvolver, ainda não explorados, como novas fronteiras agrícolas, com ataques à natureza e exploração do trabalho humano.
Uma parte importante do que está por trás das tecnologias envolve trabalho humano precário, concentrado no Sul global. Pensem, por exemplo, nas fazendas de cliques, na mineração manual de dados, na regulação de conteúdos. Além disso, a tendência de automação total é questionada por vários autores, para os quais ela não vai se confirmar a médio e longo prazo por conta das contra tendências. Enquanto existir exército industrial de reserva, enquanto for mais barato para setores do capital explorar o trabalho humano, não haverá automação completa. Não considerar essas contra tendências é não compreender o panorama do que está acontecendo.
O segundo problema do eurocentrismo tem a ver com a ideia de um projeto iluminista de ode à modernidade que não considera um elemento importante do iluminismo e da modernidade: o seu caráter colonial. Essa discussão não é essencialista no sentido de que os autores são europeus e, por isso, não merecem nosso crédito. Não é isso. A questão é que os pressupostos eurocêntricos geram problemas teóricos e políticos. Por exemplo: dentro da chave iluminista de ode às tecnologias, existe a ode à revolução verde, destacando seu papel na criação de condições materiais para alimentar o mundo inteiro e usando isso como exemplo de como a tecnologia pode resolver os problemas, exaltando, inclusive, o uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos como parte importante desse processo.
A revolução verde, sabemos muito bem disso, é justamente o exemplo mais nítido de um tipo de desenvolvimento tecnológico absolutamente interessado política e economicamente para usar insumos em tecnologias sobrantes da Segunda Guerra Mundial, que tem consequências altamente negativas e que ainda não foram totalmente compreendidas e explicadas. Inclusive, na Europa, a regulação sobre limitação para agrotóxicos é muito maior do que no Brasil.
Então, quando um autor se propõe a oferecer e imaginar um futuro diferente, mas faz uma ode à revolução verde, ignorando toda a discussão popular dos movimentos sociais do campo, da soberania alimentar, da via campesina, da agroecologia, mostra-se os riscos e limites desse paradigma. O eurocentrismo tem dificuldade de enxergar contra tendências e esse é um limite importante. O segundo limite – e o mais orgânico – é que, no fim das contas, os aceleracionistas têm uma ideia equivocada sobre tecnologia, a percepção de que a tecnologia é neutra. Por mais que eles afirmem que é preciso vontade política e organização, existe neles uma presunção de que as tecnologias são neutras ou podem ser facilmente refuncionalizadas. Há, portanto, um determinismo e celebracionismo tecnológico. A tecnofilia não consegue entender os limites para refuncionalização ou reapropriação subversiva do corpo técnico do capitalismo. Existem limites para reaproveitar essas tecnologias para outros fins. Além disso, a tecnofilia tende a cair de novo na ideia de dominar a natureza, de criar a tecnologia para dominar a natureza. O exemplo da revolução verde é bastante elucidativo e, em tempos de crise socioambiental profunda, como nós todos estamos vivendo, esse é um erro fatal.
Por fim, tem um problema importante de agência e de conformação dos agentes coletivos de transformação. Muitas vezes, a despeito dos esforços dos aceleracionistas falarem sobre isso, a agência coletiva parece relegada ao segundo plano em nome de prognósticos e diagnósticos acerca do desenvolvimento tecnológico propriamente dito.
O determinismo tecnológico, que é sintoma de uma visão equivocada sobre tecnologia, é o principal problema do aceleracionismo de esquerda e de qualquer aceleracionismo. O que parece faltar aí é uma reflexão mais detida sobre a relação entre tecnologia e sociedade. O elemento básico dessa discussão, que não traz nenhuma novidade, é o contrário: as tecnologias não são neutras. A Escola de Frankfurt fala sobre isso. O construtivismo discute como as tecnologias são desenvolvidas a partir de inúmeras possibilidades que vão se fechando com escolhas que têm a ver com as relações sociais. Essas escolhas têm uma dimensão de classe importantíssima. Quer dizer, as tecnologias carregam em si mesmas condicionantes muito importantes relacionados aos interesses que mobilizam e moveram o seu desenvolvimento.
Em cada tecnologia está embutido um conjunto de interesses sintetizado e, portanto, o desenvolvimento tecnológico que tivemos até aqui foi orientado pelo e para o capitalismo. As escolhas feitas entre as inúmeras possibilidades de desenvolvimento tecnológico foram feitas com essa orientação. Os problemas a serem resolvidos eram colocados por esta orientação. Tem uma dimensão de classe fundamental aí. Nesse sentido não basta uma apropriação dessas tecnologias. Não é possível fazer isso simplesmente.
O segundo elemento importante com relação a isso é a visão equivocada de que ser humano e técnica são duas coisas diferentes. A discussão não pode acontecer nos termos de como a tecnologia nos impacta e cria condições de transformar o mundo. Não existe tecnologia contemporânea fora do capitalismo e não existe tecnologia contemporânea fora do que é o ser humano contemporâneo. O ser humano é técnica. Há uma imbricação entre ser humano e técnica desde sempre. O artifício sempre foi parte do ser humano. Nós nos desenvolvemos, do ponto de vista social e biológico, a partir dos artifícios que fomos dominando, desenvolvendo, aprendendo. Assim foi desde o martelo até quando inventamos a escrita, que permite a possibilidade de guardar uma parte das informações que estão na nossa cabeça em um papel, o que, sucessivamente, permite que tenhamos mais espaço para pensar em outras coisas. Nós somos técnica.
IHU – Para onde podemos ir, compreendendo esses limites?
Rodrigo Santaella – O cenário é bastante complexo e talvez seja possível encontrar brechas. Estrategicamente não se trata simplesmente de tentar encontrar outros usos para as tecnologias contemporâneas, mas outra forma de relação entre o ser humano e a técnica e, sobretudo, outros caminhos de desenvolvimento tecnológico, utilizando, claro, o conhecimento e a experiência que temos hoje.
Ninguém vai destruir o mundo e começar do zero. Vamos utilizar o conhecimento técnico e a experiência para tentar caminhar em uma direção diferente. Nessa luta entre os que querem manter o status quo e os que querem transformá-lo através da tecnologia, estamos muito atrás. Em 1995, falava-se que existia uma guerra tecnológica em curso, mas só um lado estava armado: o das grandes corporações. De 1995 para cá, tudo está dominado pelas grandes corporações: big data, desenvolvimento algorítmico, IA, neurotecnologia. A esquerda, de certa forma, dominou tecnologias, as utiliza para seus fins e hoje parece que os dois lados dessa guerra estão armados, mas um tem “bombas nucleares” e outro tem “estilingue”. Um exemplo concreto disso é a disputa das redes sociais, que se tornou um mecanismo de comunicação. A direita percebeu isso primeiro e ocupou este espaço. A partir disso, a esquerda entendeu que tem que disputar as redes sociais. Mas nós só conseguimos disputar as redes sociais se entrarmos na lógica imposta por ela e, portanto, pelas corporações que são as donas dessas redes.
Os algoritmos projetados por essas corporações têm objetivos de manter nossa atenção, pegar nossos dados, manter nossa fidelidade, nos colocar em um ambiente plataformizado em que estamos fornecendo dados e interagindo de mil formas diferentes, das quais não temos sequer consciência. Portanto, são esses algoritmos, projetados com esses fins, que definem os marcos da disputa das redes sociais. Para disputar esse espaço, as pessoas têm que se adequar.
Como disse, somos técnica e nos transformamos ao longo desse processo de adequação. E aí vejam: melancolia, vício, vaidade, ansiedade, depressão, comparação constante com os outros, sensação constante de atraso, de perda, de estar ficando para trás, tudo isso tem a ver com a vida que levamos, mas também tem a ver com a relação que estabelecemos com essas redes e aparelhos. Nós estamos nos tornando uma máquina de produzir e consumir conteúdos o tempo todo. É o que querem de nós, sem dúvida.
O debate sobre fake news, desinformação e o uso das redes sociais para a política da extrema-direita é um debate fundamental, mas não é o único debate importante. O debate sobre o conteúdo do que é postado e o percentual de pessoas que esse conteúdo atinge não é o único debate importante. É fundamental também pensar no que nós estamos nos tornando nesse processo. Nós estamos nos adaptando, nos adequando e nos tornando piores e mais submissos a essa lógica nesta disputa. Esse é um exemplo que ilustra muito bem os limites da ideia do aceleracionismo porque todos nós vivemos isso no nosso dia a dia de forma diferente. Queremos acelerar as redes sociais na forma como estão agora? Queremos acelerar nossas relações com as redes sociais? É possível construir outro modelo de rede dentro desse mesmo sistema? Parece que não. A questão que emerge é como criamos uma experiência social diferente que, incentivada por quem quer que seja, sejam experiências pontuais que gerem condições para novos modelos de redes sociais. Trata-se de uma abordagem materialista da técnica, não determinista, mas que compreenda que o conteúdo social da tecnologia – assim como toda a dimensão social no capitalismo – é determinado pela economia e pela política, com a economia cumprindo um papel fundamental nessa relação.
A abordagem materialista da técnica, que percebe que a tecnologia não é neutra, faz com que olhemos para o cenário e sejamos bem menos otimistas que os aceleracionistas. A inércia no que diz respeito às tendências que estamos discutindo caminha muito mais provavelmente para a direção de uma emancipação cada vez maior do capital em relação ao trabalho, como Marx dizia, do que o contrário. Deixando as coisas como estão, estamos caminhando para a emancipação do capital em relação ao trabalho, para tragédias socioambientais e para o caos social que estamos vivendo. Imagine se acelerarmos esse processo.
IHU – Qual é o desafio diante deste quadro?
Rodrigo Santaella – O grande desafio é desviar esse caminho e encontrar usos e concepções de tecnologias que contribuam para a alteração geral da correlação de forças. Mas isso não é simples porque não há desenvolvimento tecnológico que, por si só, caminhe para superar o capitalismo. O puro e simples desenvolvimento tecnológico no capitalismo será sempre capitalista e, atualmente, está nos levando para a tragédia. O que existe é a possibilidade de, de forma imbricada, construir caminhos alternativos de organização social. De onde partir? Da luta política e de experiências concretas. Precisamos fazer uma curva acentuada para mudar o caminho, freando e acelerando.
Como decidir o que vai ser freado e o que será acelerado? Aí está a importância do planejamento, da planificação em diferentes escalas. Não me parece que haja motivos racionais para otimismo. Mas, por outro lado, não há outro caminho a não ser lutar. Lembrando Gramsci, precisamos ter o pessimismo da razão, olhar a realidade como ela é, e ter o otimismo da vontade. Precisamos contar com o randômico, com o aleatório. Quando olhamos em nossa volta, parece que não conseguimos encontrar alternativas de mudanças e parece que estamos caminhando para o caos, mas a realidade é muito mais complexa do que aquilo que conseguimos compreender com a nossa razão. Existem um randomismo e uma complexidade que não alcançamos. Cabe a nós, com o otimismo da vontade, tentar jogar elementos nessa complexidade para que surjam novas condições e, a partir delas, caminharmos para um desenvolvimento tecnológico em outra direção. Se apenas administrarmos o capitalismo, a inércia, seguramente, vai nos levar ao colapso. Sobre esse ponto os aceleracionistas de esquerda estão certos. Esta, talvez, seja a principal lição que temos a aprender com eles.