Para o pesquisador, onde vivem as populações empobrecidas e marginalizadas o regime militar continua, mas trocou o verde-oliva dos milicos pela farda das polícias militares
A história do Brasil pode ser contada por muitos e diferentes ângulos. Em todas elas, porém, a violência é um traço marcante de nossa sociabilidade. E o mito da nacionalidade não é destituído de uma “história de barbárie, de massacres, de extermínio” como aponta Lucas Pedretti, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“As polícias não aceitam qualquer tipo de controle externo e elas demandam dois elementos centrais: autonomia e impunidade. Apesar da violência policial ser uma marca que antecede o golpe de 1964, a ditadura produziu algumas mudanças importantes na arquitetura institucional da segurança pública no Brasil”, explica o pesquisador.
Mais ainda, apesar da Nova República ter quase 34 anos, cujo marco são as eleições de 1989, a transição da ditadura civil-militar para uma democracia de fato nunca ocorreu. “A transição ficou inacabada porque nossa ordem política organizada sob a égide da Constituição de 1988 foi incapaz de estabelecer algo básico para qualquer regime democrático: o controle político e civil sobre as forças de segurança do Estado”, assevera.
Mas não é somente a transição que ficou inacabada, é a própria democracia. “A democracia brasileira existente sob a Constituição de 1988 produz e reproduz, cotidianamente, as condições – jurídicas, institucionais, discursivas – para que essa barbárie permaneça. Como já disse, a sociedade brasileira escolhe diariamente legitimar, demandar e celebrar o racismo e a violência policial”, sublinha.
Lucas Pedretti (Foto: Acervo pessoal)
Lucas Pedretti Lima é doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Mestre em História Social da Cultura e graduado em História pela PUC-Rio, leciona História no ensino básico da rede pública de Maricá. Colabora com a Comissão da Memória e da Verdade da UFRJ. Foi pesquisador da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), onde ficou responsável pelas pesquisas sobre a ditadura nas favelas cariocas e as violações de direitos humanos perpetradas pelo regime contra a população negra no Estado. Edita o portal História da Ditadura. É autor do livro A transição inacabada: violência de Estado e Direitos Humanos na redemocratização (Companhia das Letras, 2024).
O artigo foi publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 23-04-2024.
IHU – Muito se fala, e há muito tempo, sobre a militarização das polícias. Mas, pensando mais amplamente, o que explica a militarização da sociedade brasileira? Por que isso ocorre?
Lucas Pedretti – Para pensar nesta questão, acho que é importante iniciar estabelecendo uma premissa fundamental: a história do Brasil é profundamente violenta. Falar sobre isso é importante porque até hoje algumas narrativas sobre a identidade nacional tentam vender a ideia de que nosso país seria pacífico, que as relações raciais aqui teriam sido harmoniosas, que nossa história é uma história sem sangue. Na verdade, por trás desses mitos da nacionalidade está uma história de barbárie, de massacres, de extermínio. O genocídio indígena da colonização e a escravização negra são as marcas fundamentais de nossa história. E essa violência, em última instância, cumpriu o papel de garantir a manutenção de uma certa estrutura social e econômica que permite a reprodução dos níveis brutais de desigualdade social com que o Brasil convive.
É nessa perspectiva que devemos pensar a história da constituição das nossas forças de segurança – pensando tanto as polícias quanto as Forças Armadas. São agências marcadas pelo racismo institucional e voltadas prioritariamente para o combate de inimigos internos – entendidos aqui como todo e qualquer grupo que questiona ou ameaça essa ordem social e política. Pensando em uma história de longo prazo, é essa a perspectiva que nos permite compreender essa militarização.
IHU – A resistência de parte das Polícias Militares ao uso de câmeras nos uniformes, especialmente em estados onde os governadores são pusilânimes na implementação, como São Paulo e Goiás, é indicativo de que o modus operandi da ditadura militar ainda vigora no Brasil?
Lucas Pedretti – Sem dúvida. Porque essa recusa é mais um sinal inequívoco de que as polícias não aceitam qualquer tipo de controle externo e que elas demandam dois elementos centrais: autonomia e impunidade. Apesar da violência policial ser uma marca que antecede o golpe de 1964, a ditadura produziu algumas mudanças importantes na arquitetura institucional da segurança pública no Brasil, que levaram à exacerbação exatamente desses dois pontos – da autonomia das forças policiais e da garantia de não responsabilização para os agentes que cometessem crimes. Isso se deu por meio de instrumentos como a criação do mecanismo chamado auto de resistência, da determinação da Justiça Militar como foro para julgamento dos policiais, da transformação das polícias em forças auxiliares do Exército, da criação de uma Inspetoria Geral das Polícias Militares ligadas ao Exército, entre outras coisas. Durante a redemocratização e a Constituinte, esses pontos ficaram inalterados.
E é preciso dizer que a manutenção desse cenário foi um dos objetivos centrais do lobby das Forças Armadas na Assembleia Constituinte. Então nossas polícias seguem atuando dentro de uma estrutura institucional e sob uma lógica que é profundamente autoritária e que não deveria ter espaço nos marcos de uma democracia. Na democracia, o exercício da violência por parte das agências estatais deveria obedecer a um controle político e jurídico extremamente rígido e rigoroso.
IHU – O título de seu livro A transição inacabada: violência de Estado e Direitos Humanos na redemocratização é ilustrativo sobre o debate que você estabelece. Eu gostaria que explicasse o que é essa “transição inacabada”?
Lucas Pedretti – O título é uma tentativa de chamar a atenção para dois aspectos principais que não foram enfrentados durante a redemocratização e que penso como dois lados da mesma moeda – essa moeda da militarização do Estado. São eles: o problema das polícias e o problema das Forças Armadas.
Capa do livro A transição inacabada: violência de Estado e Direitos Humanos na redemocratização (Imagem: Divulgação)
Então, a transição ficou inacabada porque nossa ordem política organizada sob a égide da Constituição de 1988 foi incapaz de estabelecer algo básico para qualquer regime democrático: o controle político e civil sobre as forças de segurança do Estado – ou seja, sobre o aparato que exerce o tal do monopólio legítimo da violência que os Estados modernos possuem, para usar os termos clássicos da sociologia de Max Weber.
Nossas polícias seguem matando impunemente nas favelas, nas periferias e no campo, porque segue vigente a lógica de que algumas vidas valem mais do que outras. As chacinas que marcam a década de 1990 são emblemáticas: Acari, Vigário Geral, Carandiru, Candelária, Eldorado dos Carajás. Esses massacres se sucedem sem que a sociedade brasileira ache que há um problema em nossa democracia.
Por outro lado, nossas Forças Armadas, que por alguns anos após a ditadura se retiraram do primeiro plano da cena pública, continuaram marcadas pela ideia de que elas são um poder moderador que deve tutelar o poder civil em momentos de crise. Por isso, a partir de 2016, com o golpe contra Dilma, elas voltam com força para a política – e o resultado nós vimos durante o governo Bolsonaro e até o 8 de Janeiro. Diante dessa permanência de uma polícia que mata impunemente e de um Exército que se julga legitimamente capaz de intervir na vida política nacional é que falo em uma transição inacabada.
IHU – É possível a acabar a transição? Como?
Lucas Pedretti – Enquanto período histórico e enquanto janela de oportunidade política, a redemocratização se encerrou. E ela deixou inacabadas essas tarefas de controle civil e político dos aparatos militares. É possível, portanto, enfrentar as pendências e os desafios que não fomos capazes de enfrentar naquela conjuntura. Porque uma coisa precisa ficar clara: é amplamente conhecido o caminho para diminuir os níveis inaceitáveis de violência de Estado com que convivemos no Brasil hoje.
Do ponto de vista das evidências empíricas, das experiências internacionais – e mesmo nacionais – de sucesso, da literatura científica, tudo isso aponta para a mesma direção: que é a direção oposta àquela em que o país tem insistido historicamente. Ou seja, a violência policial não é um problema de ordem técnica – ou seja, ela não existe porque não sabemos os caminhos para enfrentá-la. É uma questão política. A sociedade brasileira escolhe diariamente aceitar a violência policial. Mas falemos objetivamente. Do ponto de vista das Forças Armadas, há alguns pontos básicos que devem ser enfrentados: alterar o artigo 142 e acabar definitivamente com a ideia de que as Forças Armadas devem ter qualquer papel na garantia da ordem interna; discutir a formação dos militares e é fundamental extinguir a Justiça Militar. É preciso, também, que pensemos a política de Defesa como uma política pública igual a qualquer outra: que ela seja debatida com a sociedade e a academia, determinada pelo poder político civil soberanamente eleito e executada pelos militares; são passos básicos e urgentes.
Quanto às polícias, é preciso ser claro: precisamos refundar nossas instituições policiais. O caso Marielle deixa evidente que algo deu muito errado: assassinada por ex-PMs, em um assassinato aparentemente planejado pelo chefe da Polícia Civil. Se isso não é o suficiente para a sociedade brasileira iniciar uma discussão séria sobre reformas estruturais nas forças de segurança, difícil imaginar o que poderia ser. Porque o cenário que temos hoje evidencia que não existe crime organizado sem a polícia. Mas a despeito dessas mudanças profundas, há elementos básicos que precisam ser postos em prática para ontem, tais como as câmeras corporais, a instituição de perícias independentes e a garantia do controle externo da atividade policial.
IHU – Onde a ditadura militar ainda não acabou e por que isso acontece?
Lucas Pedretti – Um dos pontos de partida do livro é a denúncia feita pelo movimento negro e por movimentos sociais de favelas de que nas favelas e periferias a ditadura não acabou. No centro dessa afirmação está o fato de que esses territórios das cidades continuam marcados por gravíssimas violações de direitos humanos perpetradas por uma polícia racista que segue operando nos marcos daquilo que havia na ditadura: um altíssimo grau de autonomia e a garantia completa de impunidade. As garantias constitucionais da Carta de 1988 não chegaram para todos da mesma forma.
Essa denúncia é absolutamente verdadeira, mas acho interessante adicionar um ponto para a reflexão. De um ponto de vista jurídico-formal, vivemos num regime que é chamado de democrático. Portanto, para além de questionar as evidentes permanências do autoritarismo no nosso presente, precisamos fazer um debate também sobre isso que chamamos de democracia. Isto significa dizer que a democracia liberal, como se apresenta na periferia do capitalismo em tempos de neoliberalismo, convive – e até mesmo demanda – esse racismo institucionalizado e esse grau brutal de violência de Estado. Pensando desse ponto de vista, o problema do genocídio negro que ocorre hoje no Brasil não é apenas uma reminiscência ou um resto do passado – ele é profundamente contemporâneo. Ele nos fala dos limites daquilo que chamamos de democracia.
Este é, aliás, o centro do conceito de “necropolítica” do filósofo camaronês Achille Mbembe, que hoje está tão em voga. De certa forma, Mbembe está olhando para o século XXI e vendo que esse mundo, que muitos acreditavam representar o triunfo de uma ordem internacional baseada na democracia e nos direitos humanos – chegaram até mesmo a falar que, após o fim da Guerra Fria, a história teria chegado ao fim –, comporta, ainda, hierarquizações raciais que seguem justificando massacres e genocídios, como o que assistimos em Gaza.
IHU – Em que sentido a não punição aos crimes de Estado praticados durante o regime militar impacta na violência da sociedade brasileira hoje, 35 anos após a redemocratização?
Lucas Pedretti – A Lei de Anistia de 1979 garantiu a não responsabilização criminal dos militares que torturaram e cometeram outras graves violações de direitos humanos. A ausência de julgamentos em relação a esses casos representou um obstáculo para que o Brasil discutisse abertamente que uma sociedade não pode aceitar que agentes do Estado torturem e matem.
A anistia de 1979 tem um sentido mais profundo, que não se limita à garantia da impunidade no âmbito jurídico. Toda a redemocratização foi dirigida pelos militares no sentido de construir um discurso que garantisse sua não responsabilização política, diante da opinião pública. Não é à toa que a ideia que sintetiza o projeto de anistia do regime é o “esquecimento”. Na concepção dos militares, a lei de 79 deveria criar uma fronteira rígida entre o passado e o presente, e o passado não deveria ser mais objeto do debate político, ficando restrito aos historiadores. O objetivo dos militares ao construir esse discurso era fundamentalmente o de garantir que as Forças Armadas pudessem se colocar na condição de fiadores da transição e da própria democracia.
Veja bem: eles dão um golpe de Estado em 1964 e dirigem uma ditadura brutal ao longo de duas décadas. Mas constroem uma saída dessa ditadura a partir da qual a sociedade brasileira deveria agradecer a eles pela própria democracia – isso acontece. Ao tomar posse, Tancredo Neves afirma que o Brasil deve muito às suas Forças Armadas. Isso ocorre na medida em que, com base na noção de “esquecimento do passado”, os dirigentes do regime apresentam uma leitura da transição segundo a qual há dois extremos opostos tentando colocar em risco o processo de abertura “lenta, gradual e segura”. De um lado, os militares de extrema-direita que querem explodir um show no Riocentro, por exemplo. De outro, as mães que querem saber o paradeiro de seus filhos para poder enterrá-los dignamente. Diante desses dois “radicalismos” – nas palavras recorrentes dos dirigentes do regime – seria preciso confiar no projeto das Forças Armadas para a abertura política, pois eles garantiriam a abertura se, e somente se, ela se desse exatamente nos termos do que a caserna imaginava.
IHU – Embora se fale muito sobre as vítimas da ditadura no Brasil, há grupos que permanecem excluídos de uma reparação histórica que os reconheça como vítimas. Quem são esses grupos? Por que foram e continuam sendo marginalizados?
Lucas Pedretti – Hoje nós temos pesquisas e investigações que comprovam como o regime impactou profundamente a vida de muitos e diversos setores da sociedade. O genocídio indígena a partir da ideia de que era preciso ocupar a Amazônia; o aprofundamento da violência policial e de grupos de extermínio nas favelas e periferias por conta dos estigmas acerca desses territórios e de seus moradores; a perseguição à população e ao movimento negros em razão da crença no mito da democracia racial; o aumento da violência contra a população LGBTQIA+ em função da moral cis-heteronormativa do regime; as profundas violências contra a classe trabalhadora por conta da convergência de interesses entre o empresariado e o regime.
A questão que fica, então, é exatamente esta: por qual razão somente um pequeno grupo foi reconhecido socialmente e pelas limitadas políticas estatais como tendo sido vítimas das graves violações da ditadura? E para responder isso, precisamos chamar a atenção para o fato de que esses são exatamente os grupos que já eram alvos prioritários da violência do Estado desde antes do golpe de 1964 e continuaram sendo depois do fim da ditadura. Então essa violência é vista como algo normal, natural, na nossa sociedade. A violência excepcional é a que extrapola esses limites, e aí choca. É quando o militante branco, universitário, filho das classes médias e classes altas, passa a ser torturado e submetido ao tipo de tratamento que as forças policiais sempre dispensaram a esses outros grupos, que os casos passam a ter repercussão e a ditadura começa a ter sua legitimidade minada.
Como o conjunto da sociedade não reconhece nem a humanidade nem muito menos a cidadania para esses setores, então não pode reconhecer que eles tiveram e têm seus direitos e sua dignidade violados. A questão fundamental é esta: uma sociedade chora e lamenta as mortes daqueles sujeitos cujas vidas ela valoriza. É o que a Judith Butler chama de “distribuição desigual do luto”. Algumas mortes são mais pranteadas do que outras porque algumas vidas valem mais do que outras. E o que explica que algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras não tem outro nome se não o racismo.
IHU – Por que a barbárie continua ainda hoje? Como ela ocorre?
Lucas Pedretti – Eu acho que isso tem a ver com tudo que já falamos antes. Para pensar no cenário contemporâneo da violência do Estado no Brasil, acho importante considerar várias temporalidades.
De início, é preciso pensar nessa história mais longa, que remete à escravização e ao colonialismo, e que é uma história profundamente violenta. Em segundo lugar, é importante também levar em conta as transformações que a ditadura militar traz para o cenário de militarização do Estado. Mas voltando a algo que já disse, é fundamental não acharmos que essa barbárie de hoje é apenas uma reminiscência do passado. O passado explica muito, mas o passado não é uma condenação eterna. Ou seja, a democracia brasileira existente sob a Constituição de 1988 produz e reproduz, cotidianamente, as condições – jurídicas, institucionais, discursivas – para que essa barbárie permaneça. Como já disse, a sociedade brasileira escolhe diariamente legitimar, demandar e celebrar o racismo e a violência policial.
IHU – O que mais você destacaria de seu livro?
Lucas Pedretti – Destacaria que ele é uma tentativa de resgatar um período em que a democracia a ser construída após duas décadas de ditadura estava sendo construída. Então os horizontes eram muito amplos e havia muito espaço para a imaginação política. Em outras palavras, havia muitos projetos distintos de democracia em jogo. Alguns atores destacavam que não é possível falar em democracia quando temos esse grau de desigualdade social e pobreza que nós temos no Brasil. Outros chamavam a atenção para o fato de que não é possível falar em democracia quando há uma polícia que mata impunemente. Então o caminho da sociedade brasileira pós-ditadura poderia ter sido outro, caso as escolhas políticas tivessem sido outras.
Mas, do ponto de vista da análise histórica, não cabe muito retomar a história como um lamento sobre o que não aconteceu. Assim, o livro tenta compreender a redemocratização em seus próprios termos, descrevendo e analisando como esse cenário de amplos horizontes sobre os futuros possíveis para o país foi se transformando e como esses horizontes foram se estreitando. Quais forças sociais atuaram, quais discursos foram construídos e se legitimaram e quais condições estruturais estavam em jogo para que o regime nascido após a ditadura tivesse as características e os limites que nossa democracia tem. Agora, se por um lado não é papel dos historiadores lamentar o que ocorreu no passado – e sim tentar compreender –, por outro lado acredito que a história pode contribuir para os desafios contemporâneos. Ou seja, no nosso presente, quando vivemos um novo período de reconstrução do país após um governo autoritário, acredito que olhar para os limites das escolhas que fizemos no passado pode ajudar a iluminar as escolhas que devemos fazer no presente.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Lucas Pedretti – Acho que apenas complementar o que eu estava falando acima, sobre como olhar para a redemocratização é uma forma de tentar evitar os mesmos erros cometidos lá atrás. Mas, infelizmente, eu acredito que fomos pouco capazes de aprender, e a repetição desses erros está diante de nós. Após o governo Bolsonaro e especialmente no pós-8 de Janeiro, o Brasil viveu uma nova janela de oportunidade para discutir as pendências e as tarefas inacabadas da transição. Mas ao que tudo indica, mais uma vez optaremos por não enfrentar a questão das Forças Armadas e a questão das polícias – e isso significa que estamos apenas adiando o surgimento de um novo Bolsonaro e a emergência de um novo ciclo de autoritarismo e violência.
Do ponto de vista das Forças Armadas, o que se desenha no horizonte é uma nova operação político-discursiva para tentar fazer com que os militares sejam vistos como fiadores da própria democracia. Então não teria havido golpe porque as Forças Armadas não quiseram – é o que diz o José Múcio, por exemplo. Veja que absurdo: os militares forjaram a candidatura do Bolsonaro, dirigiram seu governo, fomentaram o questionamento ao processo eleitoral e viabilizaram o 8 de Janeiro a partir dos acampamentos golpistas. Mas nós devemos agradecer-lhes pela democracia ter sobrevivido! Portanto, não apenas não vamos discutir qualquer iniciativa para ampliar o controle civil sobre a caserna, como também vamos premiá-los com uma fatia maior do orçamento.
No que diz respeito às polícias, segue plenamente vigente a lógica política e discursiva que autoriza os altíssimos níveis de violência de Estado – como temos visto na Baixada Santista, por exemplo. E chama a atenção o fato de que a frente ampla que derrotou Bolsonaro em 2022 se ancorou na ideia de defesa da democracia. Mas para muitos setores que compuseram essa frente uma polícia que mata dezenas, centenas de pessoas, não é um problema da democracia.
De novo: isso é algo visto como normal e natural para setores significativos da sociedade brasileiro. O risco à democracia aparecia quando Bolsonaro ameaçava não respeitar o resultado eleitoral. Mas a existência de uma polícia que usa as armas do Estado para matar a juventude negra e favelada é vista como algo normal na ordem política em que vivemos, não parece ser um risco para a democracia. Então enquanto não formos capazes de enfrentar essas duas dimensões do problema da militarização, novos retrocessos autoritários serão apenas uma questão de tempo.