O terceiro governo de Lula tem sido marcado por uma posição pusilânime em questões centrais de uma política de esquerda e no enfrentamento ao baixo clero do Congresso. A história da sigla, no entanto, mostra o caminho a ser trilhado, mas até agora sem perspectiva, segundo o entrevistado
O Partido dos Trabalhadores surgiu da convergência de uma setores sociais, inclusive de setores da Igreja Católica. No fim dos anos 1980 Lula perde uma eleição que contou, até mesmo, com manipulação da TV Globo no último debate. Apesar da derrota, naquele momento e desde antes, nas Diretas Já, o movimento político que resultaria no PT sempre teve um discurso contundente e destemido contra a extrema-direita.
“E, na década de 1980, o PT virou o principal partido de esquerda e, no final da década, vai para o segundo turno na eleição presidencial contra Fernando Collor. Portanto, o PT sabe lidar com a direita e a extrema-direita”, avalia o pesquisador e analista político Rudá Ricci, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O PT tem sua história de crescimento e construção da sua imagem como um dos principais partidos do país, embaixo do enfrentamento da ditadura. Eu não vou reinventar a roda, basta olhar a história do PT e fazer o que eles fizeram quando no enfrentamento da ditadura; e não recuar como o governo está recuando”, complementa.
A vitória de Lula em 2022, importante inclusive como freio ao projeto anticivilizatório do ex-governo, foi um alento para parcela importante da população, mas até agora não implicou em grandes avanços. Ricci avalia o caso da seguinte maneira. “Do ponto de vista pragmático, o Lula ganhou a eleição, mas não teve uma vitória política. Ele saiu, de certa maneira, menor politicamente do que ele tinha entrado na eleição. Porque, rapidamente, todos os atores políticos no Brasil perceberam que ele está temendo profundamente a capacidade ofensiva do bolsonarismo”, afirma.
Nem de esquerda, nem de direita, para o entrevistado o atual governo opera com três blocos, com nomes de ministros em ambos espectros, mas quem manda mesmo, cujas decisões finais são tomadas, é o bloco do poder. “O núcleo duro do governo é liberal, de centro. A esquerda tem algumas sinalizações, mas não tem poder. Então, se o Haddad cortar dinheiro, não tem orçamento participativo, que ele anunciou como uma prioridade. Se o Haddad e a Simone Tebet cortam dinheiro, terá dinheiro para o agronegócio, que coloca agrotóxico e não tem a agenda da transição ambiental; esse é o governo”, sublinha.
Rudá Ricci (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. É autor de Terra de ninguém (Unicamp, 1999), Dicionário da gestão democrática (Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A participação em São Paulo (Unesp, 2004), entre outros.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 12-04-2024.
IHU – Lula teve uma eleição apertada em 2022. Venceu por 51% a 49% dos votos válidos. Em termos de governabilidade, qual o preço dessa eleição?
Rudá Ricci – Nós, na Ciência Política, principalmente quem atua em eleição, usa uma máxima que é a seguinte: quando vamos para uma eleição, é preciso ver se tem duas vitórias. Uma vitória é óbvia, é a eleitoral, e a outra vitória política. O que significa vitória política? Que o candidato sai da eleição com uma força política e com uma legitimidade maior do que entrou. E, muitas vezes, é possível ter uma vitória eleitoral, mas não obter vitória política.
Do ponto de vista pragmático, o Lula ganhou a eleição, mas não teve uma vitória política. Ele saiu, de certa maneira, menor politicamente do que ele tinha entrado na eleição. Porque, rapidamente, todos os atores políticos no Brasil perceberam que ele está temendo profundamente a capacidade ofensiva do bolsonarismo.
Por que ele sinalizou isso? Porque fez uma aliança – a mais ampla da história do lulismo, desde a vitória de 2002 nunca tinha sido algo tão amplo – com setores da direita, setores ligados às milícias. Algo surpreendente para quem veio de um movimento mais à esquerda, lá na década de 1980. Em segundo lugar, não só na composição do governo, ele rapidamente começou a ceder para Arthur Lira, que é o baixo clero.
Arthur Lira nada mais é do que o líder do baixo clero na Câmara dos Deputados. A imprensa gosta de falar em Centrão, mas não tem nenhuma base científica para dar esse nome. Muitas vezes, a grande imprensa adora criar títulos sensacionalistas, mas não tem sentido teórico e, na verdade, não existe Centrão. O que existe é o baixo clero, que é absolutamente venal e clientelista. O clientelismo no Brasil é de direita, não tem nada de centrão; é de direita. E, principalmente, pulverizada, com projeto vinculados à demanda da sua base eleitoral municipal.
O problema é que desde o líder de Arthur Lira, o Eduardo Cunha, esse baixo clero se alinhou às grandes federações empresariais do país, em especial à FIESP. Então, aquilo que era uma agenda pulverizada para o local do baixo clero, com o Eduardo Cunha e o Arthur Lira, passa a ser uma agenda do empresariado, o que criou um problema ainda maior para Lula, que começa a ceder direto. De modo que demonstrou muita fragilidade.
E Lula continua frágil. Um exemplo é a Comunicação Social, liderada pela Secretaria de Comunicação – SECOM, do governo federal. Está mais do que evidente, para todos nós analistas políticos, que Lula não quer uma assessoria agressiva e proativa na área de comunicação, porque ele teme o embate de rua. Ele avalia que o bloco progressista e lulista não é mais articulado, não ganha as ruas e não mobiliza.
Então, todas essas demonstrações de fragilidade de Lula revelam que ele saiu menor do que entrou na campanha. Ele teve, portanto, senão uma derrota política, uma vitória política muito menor do que a vitória eleitoral; é isso o que está definindo os rumos do governo.
IHU – O que no governo Lula 3 é, propriamente, de esquerda?
Rudá Ricci – O governo Lula tem hoje três blocos internos:
Um bloco declaradamente de direita. Esse bloco não cede em nada e tem uma aliança um pouco mais explícita com Arthur Lira e os partidos de direita. O Lula deixa esse pessoal governar, mas não tem grande liderança sobre eles. Alguns têm mais proximidade com Lula porque fazem um papel de acomodação política – é o caso do ministro da Defesa, José Múcio, que é declaradamente de direita, sempre foi.
Mas Lula não mexe com ele, que faz um papel que no movimento sindical é chamado de “pelego” – no Sul, onde vocês estão, é aquela manta de pele de carneiro usada para diminuir o impacto do cavaleiro com o lombo do cavalo. Esse é papel do Múcio.
Depois nós temos – aí que vem a esquerda – ministros da área de direitos sociais. São os chefes dos ministérios da Igualdade Racial, Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério das Mulheres e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Eu incluiria também Ministério da Saúde, Ministério da Educação e a Marina Silva, do Meio Ambiente. São pastas da área social.
Essas pastas, com exceção da Educação, estão nas mãos da esquerda ou centro-esquerda. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário está na mão do Paulo Teixeira, que não é da corrente de Lula, sempre foi de uma corrente à esquerda do Lula. A Sonia Guajajara, da área indígena, é do PSOL. Então, essas pastas da área de direitos sociais, estão na mão da esquerda ou centro-esquerda. Qual é o problema? Eles não apitam nada no governo e não conseguem definir a imagem do governo. Eles não têm nenhum tipo de papel a não ser um papel simbólico de uma tênue lembrança que Lula vem da esquerda. Mas eles não têm nenhum “poder de fato” para determinar o rumo do governo.
Finalmente, o Lula tem um terceiro bloco, que é bloco “de mando” do governo; aí sim está o poder e a cara do Lula, que é a articulação política, tendo como principal nome o ministro Rui Costa, da Casa Civil, e a área econômica, com Fernando Haddad e Simone Tebet liderando esse processo. Esses três ministros, em especial, são os que definem a cara do governo Lula e são de centro-direita. Não é porque são do PT, no caso de Haddad e Rui Costa, que eles são de esquerda, nunca foram, inclusive o Rui Costa, na Bahia, chegou a cogitar ir para o PROS, há pouco tempo. E o Haddad é um liberal, clássico.
O núcleo duro do governo é liberal, de centro. A esquerda tem algumas sinalizações, mas não tem poder. Então, se o Haddad cortar dinheiro, não tem orçamento participativo, que ele anunciou como uma prioridade. Se o Haddad e a Simone Tebet cortam dinheiro, terá dinheiro para o agronegócio, que coloca agrotóxico e não tem a agenda da transição ambiental. Esse é o governo.
Nunca tivemos um PT tão parecido com a antiga social-democracia europeia como agora. A social-democracia europeia se transformou em social-liberal, com uma preocupação da agenda social que não ofenda o mercado – essa é a agenda do governo Lula. Por isso que ele não tem exatamente uma política de esquerda, mas iniciativas um pouco mais à esquerda, mas que não dão o tom e nem a imagem do governo.
IHU – A Presidência da República não fez memória aos 60 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Por que esse episódio continua sendo uma ferida aberta e o que explica essa posição pusilânime de Lula?
Rudá Ricci – Essa é uma questão grave. O Ministério Público Federal – MPF já disse para Lula retomar a Comissão sobre direitos de presos políticos do passado, quase com uma Comissão da Verdade, e ele se nega. O MP está dizendo para ele reinstalar e ele se nega. E o que nós temos, inclusive que foi noticiado pela grande imprensa, que Lula – à boca pequena – diz que essa pauta só afeta à bolha da esquerda; todos os outros segmentos do Brasil, pelo contrário, rejeitam essa pauta.
De fato, o Lula vem recuando naquilo que é a agenda tradicional da esquerda; é uma pena. Ele tem medo do bolsonarismo. Isto tem que ficar claro: Lula tem medo do bolsonarismo.
IHU – Mas esse medo não é generalizado nos setores progressistas?
Rudá Ricci – Veja, o próprio Lula e o PT têm o antídoto. O PT é fundando em 1980, durante a ditadura; estávamos em transição, mas ainda era ditadura militar. A primeira eleição direta para governador vai ser em 1982.
E, na década de 1980, o PT virou o principal partido de esquerda e, no fim da década, vai para o segundo turno na eleição presidencial contra Fernando Collor. Portanto, o PT sabe lidar com a direita e a extrema-direita. O PT tem sua história de crescimento e construção da sua imagem como um dos principais partidos do país, embaixo do enfrentamento da ditadura. Eu não vou reinventar a roda, basta olhar a história do PT e fazer o que eles fizeram quando no enfrentamento da ditadura; e não recuar como o governo está recuando.
O Lula 3 é a gestão social-democrata na Europa, que praticamente eliminou o Partido Trabalhista inglês, eliminou o Partido Socialista Operário Espanhol com uma hegemonia total que tinha no país, criou problemas para o Partido Socialista português. Na Itália, o Partido Comunista Italiano virou o Partido Democrático da Esquerda, cedendo para a direita. O problema de Lula é que o eleitorado não sabe mais o que é esquerda no Brasil. Porque se consideraram ele de esquerda, essa é uma agenda de centro da Nova República, é uma agenda do PMDB; confunde o eleitorado e não ajuda a democracia brasileira.
Lula e o PT deveriam fazer o que foi feito quando o PT nasceu: as duas primeiras décadas do PT são décadas de crescimento em cima do enfrentamento da direita e da extrema-direita, inclusive enfrentou a União Democrática Ruralista – UDR, liderada pelo atual governador goiano Ronaldo Caiado, e praticamente destruíram a UDR. Ronaldo Caiado foi candidato a presidente em 1989 e ficou lá embaixo, ninguém quis saber dele. Hoje, Lula fica respeitando o agronegócio, principalmente a ala de extrema-direita do agronegócio brasileiro. A mudança não está sendo da direita ou da extrema-direita, mas do Lula e do PT.
IHU – Lula não cria atritos com militares, a Globo, o agronegócio etc. Em suma, temos um governo que recua em várias esferas. Enquanto isso, extrema-direita radicaliza. Há uma sensação de que, de um lado, temos um ator aguerrido e, de outro, um governo que não se contrapõe.
Rudá Ricci – Exatamente. Porque esse governo é conservador; está na hora disso ficar mais claro para a imprensa, para o Brasil, para a esquerda e para os movimentos sociais: trata-se de um governo conservador. Ou seja, é um governo que mantém a ordem; um governo conservador é um governo que concentra as estruturas políticas e o sistema político, o governo Lula é um fiel da ordem, ele mantém o status quo, ele não muda nada.
Eu não estou xingando aqui, destruindo o governo, eu estou analisando e tentando interpretar na prática o que esse governo defende: é um governo conservador; não tem como falar que ele é progressista. Progressista é o inverso do conservador ou do reacionário; progressismo é o que joga os direitos e o mundo para frente. O governo Lula mantém, é como se estivesse com um freio de mão puxado o tempo inteiro.
Não é que ele está só recuando, porque recuar é quando você avança e vai para trás; o governo Lula está parado, é conservador, não está recuando, está parado. E o índice de popularidade está deixando claro isso. O eleitorado que elegeu o Lula não quer um governo conservador, ele quer o Lula. E o Lula, no Brasil e no exterior não significa conservador, mas o progressismo, não necessariamente à esquerda.
O que significa ampliar os direitos, trazer o progresso social, o desenvolvimento pleno do país, a participação da cidadania, direitos sociais, mudar o modo de produção para que tenhamos um modelo tecnológico de produção que seja mais inclusivo e holístico – isso é progressismo. Agora, não é o que o governo está fazendo, ele faz discurso, mas a prática é conservadora.
IHU – O governo federal anunciou no começo de abril a implementação da TV 3.0 no Brasil a partir de 2025. Entre as principais mudanças está a possibilidade de fazer compras clicando na tela. O que o episódio sinaliza? É possível imaginar que a ampliação do consumo continua sendo a aposta de acesso à cidadania do PT?
Rudá Ricci – Isso, exatamente isso. Imagina só, isso é uma política de comunicação? A política de comunicação, nesse caso, é termos uma TV em que clicamos a tela e compramos o abajur da novela – na TV aberta. Isso é um absurdo do ponto de vista de um projeto de sociedade. Depois quer reclamar da postura do dono do X/Twitter [Elon Musk]. Essa política vai abrir mais espaço ainda para a venda das grandes empresas.
Na mesma semana, o Ministério da Educação falou que vai privilegiar as faculdades que gerarem emprego – os egressos da faculdade que gerarem emprego.
Quero explicar uma coisa (eu sou um educador com muita experiência): educação não gera emprego e nem salário. Isso é uma falácia dos empresários. Eu vou dar um dado apenas: o índice de desemprego de doutor, no mundo, é 2,5%; o índice de desemprego de doutor, no Brasil, é 25%. Porque produzimos banana, minério de ferro, soja, café e milho, o que não exige mão de obra qualificada, mas semiqualificada ou não qualificada. Quando se faz uma contratação em uma indústria brasileira que está se esfacelando ou em uma agroindústria, doutor, contrata-se três ou quatro, porque a maioria da mão de obra é de trabalhador semiqualificado ou não qualificado. Quando se contrata três ou quatro e tem 50 outros disponíveis no mercado, aqueles 50 pressionam o salário dos doutores contratados para baixo, porque os empresários falam “se você não quer ganhar isso, vou contratar o outro que está na rua”.
Portanto, há uma pressão do salário dos qualificados para baixo. Por isso que tem tanto cientista brasileiro indo para o exterior, principalmente jovem. Temos que entender que a educação não gera emprego e nem salário. O que gera emprego e salário é a política econômica e a política social do país. Não é a educação – essa é uma das maiores mentiras que existem no país.
Não tem sentido o ministro Camilo Santana falar que vai premiar faculdades que geram emprego, é o colega dele, o ministro Haddad junto de negociação com os empresários. Aliás, o Lula sabe disso, tanto é verdade que ele era um excelente negociador quando sindicalista; ele sabe o que gera emprego, e não é a educação.
Eu fico muito assustado que o anúncio da TV 3.0 vem exatamente junto com o anúncio da premiação da faculdade que gera emprego. É a direitização total das políticas de governo; não há dúvida nenhuma sobre isso.
IHU – O governo federal contingenciou mais de 3,1 milhões de reais do orçamento das universidades federais em relação a 2023. Por outro lado, aumentou o Fundo Partidário e o orçamento das Emendas Parlamentares. O que isso sinaliza sobre o estado atual de coisas da política brasileira?
Rudá Ricci – Que o governo tem medo do baixo clero e do Lira, mas não tem medo do Movimento Sindical. Ele priorizou quem ele atende, isso tem a ver com o temor do governo, quem é que tira maior pedaço do governo.
Nós teremos uma resposta agora com o possível ingresso dos professores das universidades federais na greve já iniciada nas universidades federais pelos técnicos administrativos Educacionais. O que deve acontecer agora, desta quinta-feira [11-04-2024] até o dia 15. Aí nós veremos.
O governo Lula é um governo assustado – falando de forma exagerada, tentando fazer um desenho –, que responde por pressão, o Senado já percebeu isso. O Senado era aliado do governo Lula, em um ano de governo Lula cedendo o tempo inteiro para a Câmara e o para o Arthur Lira, o Senado aprendeu: esse governo só negocia bem quando é pressionado. E o Lula ganhou um Senado mais aguerrido e agressivo.
A mesma coisa está acontecendo agora com o Movimento Sindical, que está aprendendo, pouco a pouco, que com o governo Lula tem que falar grosso, senão ele não cede. Ou o movimento sindical de professores universitários federais está convocando assembleias para a decisão da greve, aí o governo se mexe, chama uma mesa de negociação rapidamente, antecipa as reuniões e vai mudando as propostas. Ou seja, só sob pressão que o governo consegue apresentar alguma coisa mais palatável para os movimentos sociais no Brasil.
É muito delicado um governo como esse, porque ele está deseducando as lideranças políticas do país; é só com muita pressão e agressão que o governo cede – é impressionante. Principalmente por ser um governo que vem demonstrando, como falei no início da entrevista, que está acuado e assustado com a extrema-direita. É um governo extremamente caótico, porque todo mundo, ao invés de estar ao lado do governo, vai pressioná-lo, porque é só assim que consegue alguma coisa.
IHU – O PL dos Trabalhadores de Aplicativos apresentado pelo governo federal traz poucos, ou nenhum, avanços à classe trabalhadora e por isso é alvo de críticas por especialistas. O que explica o fato de que o Partido dos Trabalhadores tenha avançado tão pouco na questão trabalhista não somente nesta, mas em todas suas gestões?
Rudá Ricci – Eu não imputaria essa visão lulista ao PT. A direção nacional do PT fez críticas à política econômica e o ex-ministro José Dirceu deu um “cala-boca” na presidente nacional do PT [Gleisi Hoffmann] e no diretório nacional, falando que o diretório tem que apoiar a política econômica do governo – é assustador. Eu não estou dizendo que o partido é conservador, é o lulismo que é conservador.
Dizer que o Lula não sabe exatamente o que estão demandando os trabalhadores de aplicativo não é verdade. Logo depois que o Lula saiu da injusta prisão dele, ele foi a Belo Horizonte, acho que em 2020, mas não lembro a data ao certo. Lá ele chamou uma reunião com cerca de 40 pesquisadores sociais e que eu tive o privilégio de ser convidado.
O Lula inicia a reunião perguntando: vocês podem dizer o que é essa história de empreendedorismo, porque na minha época chamavam de peão, depois começou a ser chamado de trabalhador, mas agora eles querem ser empreendedores. Vejam que o Lula, muito antes da campanha de 2022, já sabia que o mundo do trabalho tinha mudado.
O problema do atual governo é que eles querem formalizar, ou seja, querem dar Carteira de Trabalho para quem não quer ser formalizado. Se fizermos uma pesquisa agora com os trabalhadores de aplicativo da Uber, eles vão dizer: se o Lula quer nos ajudar, ele tem que exigir que a Uber pare de ficar com 60% das nossas corridas, obrigar que a gente aceite uma corrida de sete reais em que eles ficam com mais de 50% ou 50% da corrida e nós não temos dinheiro nem para pagar a gasolina; é isso que eles estão falando.
A desgraça que vemos nessa visão específica do governo é que querem aumentar a arrecadação e eles acham que transformando um trabalhador autônomo – aquele que dizia “eu quero ser empreendedor” – em assalariado ou com direitos iguais aos assalariados, vai conseguir criar algo que esses trabalhadores desejam.
Uma das coisas que esse governo não entende é que temos um monte de jovens hoje no Brasil que não querem Previdência Social, mas querem ter negócio próprio. Se formos às favelas – nós temos inúmeras pesquisas com moradores de favela e jovens –, eles não têm a cabeça do século XX, mas do século XXI. Eu não estou dizendo que essa cabeça é uma visão social ou política avançada, estou dizendo que se um direito vai ser criado, é preciso ouvir quem será atendido.
Acredito que tem uma dificuldade de leitura do século XXI em todos os campos, e não é do PT, mas do governo Lula e do lulismo, que têm uma dificuldade imensa de entender o que é o século XXI.
Eu vou ser muito sincero como cientista social, não é um desastre um governo não entender a mudança de século, o desastre é não querer aprender o que é este século. É mais do que natural, pois ninguém nasce sabendo e acertando tudo, mas é preciso fazer um esforço para entender melhor e errar menos.
Esse governo está muito perdido porque não entende o que é a extrema-direita, não sabe direito o que fazer na comunicação, não está conseguindo negociar de maneira equilibrada com a direita e a esquerda e começa a criar uma série de leis que acha que são direitos.
IHU – É difícil pensar que aquele que foi, no passado, um dos mais importantes líderes sindicais da história da classe trabalhadora, no século XX, não tenha consciência que o PL dos Aplicativos atende ao lobby das grandes corporações.
Rudá Ricci – Tem uma série de problemas que indicam porque ele está indo por esse caminho. Indico aos leitores para assistir o documentário Entreatos, dirigido por João Moreira Salles, que foi produzido no final das eleições de 2002. E o documentário tem o Lula falando “não sou mais operário, eu sou classe média”, da gravata e como o José Serra se veste mal.
Ali o Lula começa a nos mostrar, mas nós não queremos ver, que ele já considerava uma mudança de hábitos e de cultura de classe.
Mas, tem alguns problemas mais graves e um deles é que o Lula adotou uma medida da disputa política do Brasil, que eles resumem com um conceito, que é um conceito da esquerda, de correlação de forças. Esse conceito, o [Antonio] Gramsci – grande líder da esquerda na Itália nas primeiras décadas do século XX – propôs a criação de seis a sete variáveis para estudarmos e fazermos a leitura da correlação de forças. O Lula e o lulismo resumiram a um único indicador: como está o Congresso.
Desde a primeira eleição do Lula, cada vez que há eleição para o Congresso, ela vai mais para a direita. A leitura que o lulismo faz é que a então correlação de forças é mais favorável e eles correm para ir mais para a direita para garantir o apoio. Sucessivamente o PT elegeu cinco presidentes, com apenas um momento que não elegeu porque o Lula estava preso e o Bolsonaro se elegeu, e cada vez mais eles dizem que a correlação de forças é desfavorável. De duas uma: ou a correlação de forças não é tão desfavorável ou o lulismo está indo para a direita, aceleradamente, porque está sempre se elegendo; tem alguma coisa errada nessa conta.
O conceito de correlação de forças que o lulismo usa, além de muito pobre, porque só usa o indicador da situação da correlação no Congresso, está levando o lulismo para uma armadilha de ter que caminhar sempre à direita, até que se convence dessa mentira e começa a agir só em função dela. Além do Lula já ter falado em 2002 que estava mudando, ele está mudando também em função dessa leitura da correlação de forças.
IHU – Por outro lado, a valorização real do salário-mínimo aparece com uma política acertada na garantia de direitos. Quais são os limites e possibilidades desse tipo de política econômica?
Rudá Ricci – Tem uma linha teórica muito interessante, a Nova Teoria Monetária, que sugere que é possível gastar dinheiro sem gerar inflação quando acontecem dois fatores: existência de capacidade ociosa na indústria, portanto, se houver mais demanda, é possível aumentar a produção porque isso não gera qualquer custo muito acelerado, porque existem centenas de máquinas paradas. O segundo fator é quando o trabalhador tem uma demanda reprimida, isto é, há uma demanda que ainda não é respondida pelo primeiro fator e por falta dinheiro.
Quando se joga dinheiro no mercado, começa a ter consumo e ainda tem capacidade instalada reprimida, não gera inflação. Então, o Lula está criando um movimento de crescimento econômico que exige que se faça esse tipo de leitura dos indicadores que falei. Nós não atingimos o ápice, pelo contrário.
Há todo um embate da grande imprensa e, principalmente, dos canais vinculados ao mercado financeiro e ao agronegócio – caso da Folha de S.Paulo, da Band e da própria Globo – que odeiam essa história de investimento na área social para aumentar o consumo.
Nós vimos a CNN, recentemente, fazendo um editorial dizendo que esse negócio de gerar mais emprego e aumentar o valor real do salário-mínimo vai gerar inflação – é desse discurso que estou falando. O pior é que tem gente que não entende nada de economia e que engole essa tese.
O governo Lula está correto nisso, mas temo que a gritaria empresarial e da grande imprensa seja tão grande que ele, pouco a pouco, comece a diminuir. Ou seja, faz aumento real do salário-mínimo, mas corta algum outro tipo de política social de promoção, porque os liberais empresários querem proteção social, que é fazer com que as pessoas não piorem de situação, mas eles não querem promoção, que é fazer com que as pessoas tenham uma vida melhor do que elas têm. O aumento real do salário-mínimo sinaliza para a promoção social – e já vemos a gritaria com a Vale, a Petrobras e o pessoal não querendo que tenha dinheiro para a promoção social. Eles querem continuar com a margem de lucro altíssima; é isso que está em debate no Brasil. O limite é político, por enquanto não tem nada de inflação.
IHU – Qual o projeto de futuro do PT (ou do Lula) para o Brasil?
Rudá Ricci – Portugal sinaliza um futuro para o PT. O Partido Socialista Português – PS é muito parecido com o PT no Brasil. Eles fizeram, recentemente, um pêndulo se aliando ao Bloco de Esquerda e ao Partido Comunista Português – PCP e construíram a etapa mais próspera da economia portuguesa em tempos contemporâneos, que a foi a famosa “geringonça”. Foi chamada pela direita como a “geringonça” porque diziam que o PS com o Bloco de Esquerda e o PCP não tinha sentido, era uma bagunça e destruiria o país; mas foi ao contrário: houve um desenvolvimento social imenso, jovens que tinham migrado para outros países em busca de emprego voltaram para Portugal, foi um momento de ouro.
A aliança PS com o Bloco de Esquerda é muito parecida com a possibilidade que está acontecendo em São Paulo da aliança do PT com o PSOL; isso é o futuro da esquerda e do PT.
A outra saída, é o PS se aliando com a direita, com o PP e a Aliança Democrática. Ele fez isso no passado e agora está sendo pressionado de novo para esse acordo. Nesse caso é o PT se aliar com a direita, com União Brasil, MDB etc.
São dois caminhos que o PT vai ter que se decidir. Se acredita ser o mais ousado e se dirigir para políticas públicas que realmente enfrentem a desigualdade social – o Brasil está entre os dez países mais ricos do mundo e é o sétimo país mais desigual do mundo. Ou seja, não tem nenhum país rico como o Brasil ou com a riqueza próxima a nossa que tenha a desigualdade que o país tem. Ou o PT enfrenta esse problema ou será o que estamos vendo aqui, nesse momento: um governo sem sal, uma falta de identidade e os índices indo para cima e para baixo – mais para baixo do que para cima – toda a hora. Esse é o desafio do PT.
O PT tem que aprender a falar grosso. O PT está absolutamente subjugado ao lulismo. O PT é um partido que, historicamente, criou o lulismo, não foi o inverso. É diferente do Getúlio Vargas, que criou o PTB, aqui não, é o PT que criou o Lula e essa visão. O PT está enfraquecendo cada vez mais, ele tem que voltar a ser um partido forte como sempre foi, para poder ditar para onde quer ir e aí enfrentar esse dilema: vai mais à esquerda e se alia com o PSOL ou vai mais à direita e se alia com esses partidos que se dizem do Centrão, mas que na verdade são à direita.
IHU – O senhor falou sobre a desigualdade brasileira. Recentemente a Revista Forbes divulgou o ranking das pessoas mais ricas do mundo. Uma brasileira, de 19 anos, é a bilionária mais jovem do mundo. O que isso evidencia da nossa sociedade?
Rudá Ricci – Nós, da educação, dizemos o seguinte: um dos momentos mais importantes da passagem da infância para a vida adulta é a frustração. A pessoa que não é frustrada, não consegue lidar com seus desejos. Uma pessoa que passa por frustrações consegue administrar.
Por exemplo: se uma criança entra em uma loja de brinquedos, ela quer tudo. Se você não compra, ela começa a se desesperar e cair no chão. Adulto quer ter helicópteros, não tem um e não morre. Acontece que estamos infantilizando a sociedade brasileira.
A imprensa só fala de meninas com essas e aí todos os jovens querem ficar ricos. Sabe o que isso gera? Eles não vão ser ricos como ela, vão ficar superfrustrados, ressentidos e violentos contra a sociedade; é isso que nós estamos alimentando. Quem não tem frustração e não sabe administrar frustração, torna-se autoritário, não aguenta ninguém e quer impor seu desejo. Estamos construindo uma sociedade infantilizada.
IHU – Em que pese existam críticas oportunas ao governo de Lula, que cuidado devemos ter para, ao fazer essas ponderações, não jogarmos água no moinho da extrema-direita?
Rudá Ricci – À esquerda, quando teve a ascensão do nazismo e do fascismo, houve um debate muito parecido com esse que você está propondo, foi [Leon] Trótsky, Gramsci e todos os dirigentes de esquerda da Europa que falaram “nós temos que enfrentar o nazismo e o fascismo, eles são populares, não são movimentos político de elite” – que era outra tese que tinha na esquerda europeia – “para isso temos que resgatar a luta política e os valores democráticos” e com muita agressividade. Foi assim que a esquerda francesa derrotou o nazismo na França, foi assim que houve uma luta na Itália importantíssima de resistência.
Nós não podemos ficar com esse pensamento de que temos que ficar quietos para o fascismo bolsonarista não crescer. Essa é a melhor forma para o fascismo crescer. Temos que ser críticos e puxar o país para a luta radical pela democracia e, mais do que isso, temos que exigir que o bolsonarismo seja colocado na ilegalidade, como ocorreu e como ocorre com o nazismo no Brasil: é proibido usar a suástica na sua roupa, é proibido fazer o comprimento com braço estirado que representa o nazismo, é proibido falar frases ou enaltecer o Hitler no Brasil.
Nós temos que fazer a mesma coisa com o fascismo bolsonarista. Ainda não percebemos o risco e o horror que é o bolsonarismo. Fazer “arminha”, o descaso com os homossexuais, com as mulheres, com negros e indígenas tem que ser proibido no Brasil para termos paz. Não estamos sabendo medir direito. É muito diferente darmos espaço para a extrema-direita porque não podemos criticar os governos mais progressistas, do que a gente ficar calado e abrir mais espaço ainda para a extrema-direita. Está na hora de termos mais clareza política do risco que nós temos: o risco é altíssimo. E nós estamos nos desarmando para nos defendermos no fascismo bolsonarista.
IHU – Quais os caminhos e alternativas para sairmos da encruzilhada em que nos metemos?
Rudá Ricci – Primeiro é preciso valorizar a pauta dos trabalhadores e das populações que se sentem marginalizadas e desrespeitadas nos seus direitos. Elas estão todas na nossa cara: são as mulheres, em especial as mulheres negras, mas não só, os moradores de periferia que estão recorrendo às igrejas – acho que até corretamente para terem algum lugar para serem ouvidos e terem um apoio – os indígenas e a população LGBTQIA+.
Precisamos ter um modelo de desenvolvimento que gere igualdade e puna os muitos ricos. Se não punir, ao menos aumentar os impostos para que eles saibam que não é natural do ser humano e da sociedade humana a pessoa ter mais do que precisa. Nós perdemos o valor do razoável. Quer dizer que se a pessoa trabalhou, ela pode ter? Como assim? Quer dizer que o gari que trabalha o dia inteiro não tem esse direito? Deturpamos os valores que eram muito importantes para a sociedade brasileira; precisamos reconstruir esses valores. Nós temos que ser mais firmes na defesa da democracia, da solidariedade e na luta pela igualdade.
Eu lembro de uma pesquisa de Porto Alegre, acho que do DataFolha, em que 80% da população se dizia socialista; olha como mudou Porto Alegre. Isso significa que nós cedemos. Começamos a recuar e perdemos os valores da sociedade. Agora parece que é natural bater e xingar uma pessoa, falar que a pessoa é suja e pobre.
Ou seja, o Brasil está ficando desumano e nós temos que voltar a defender o Brasil que tínhamos orgulho e não esse pastiche de Nação. Fazer o trabalho inverso do que estamos fazendo: voltar a respeitar todos, voltar aos valores, falar de solidariedade.
Uma das coisas com que fico mais assustado é à esquerda atacar às igrejas evangélicas pelo que os pastores líderes políticos falam, mas não vai até base, por exemplo, para saber o que a população negra que está na nas igrejas evangélicas está pensando da igreja; não vai até às reuniões que eles fazem nas casas deles, que é muito parecido com o que eram as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – eles dão outro nome, Célula.
E começamos a romper com coisas que são valores humanistas. As pessoas que estão sofrendo, que querem emprego, que estão com problema afetivo na família têm um lugar para conversar com o outro. Qual é o problema disso?
Nós estamos muito perdidos no Brasil e temos que voltar a falar dos valores que sempre tivemos orgulho de serem os valores do Brasil. A pior pulsão do Brasil é o que hoje domina as cabeças e os corações dos brasileiros; a melhor está hibernando.