“Este não é um momento de triunfo do petismo, mas de triunfo do que nos resta da consciência democrática brasileira”, afirma o sociólogo
Dos dois discursos proferidos pelo presidente Lula no último domingo, 1º de janeiro, na posse presidencial, o mais importante foi feito no Congresso Nacional porque foi “propriamente político, de uma lucidez nunca dantes manifestada nos discursos de Lula e em proclamações do PT e rara na expressão do pensamento dos petistas”, comenta José de Souza Martins na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na ocasião, observa, “nem Lula nem o PT se propõem como donos da história, um velho vício do partido, que desde sua origem comportou-se como único e preferencial protagonista do processo político brasileiro”.
Ao contrário, sublinha, “os dois discursos de Lula foram em favor das possibilidades históricas do Brasil e foram um chamamento de todos em favor de um projeto includente e democrático de nação”.
Na avaliação do sociólogo, dois foram os pontos mais significativos dos pronunciamentos. “Os programáticos, o principal dos quais é o relativo à reconstrução do Estado e da sociedade brasileira, no discurso no Congresso Nacional, o discurso do Chefe de Estado ao Estado, à sua responsabilidade na restauração da democracia e na reedificação da ordem política. (...) O segundo ponto importante está no centro do discurso feito após a subida da rampa do Palácio do Planalto e o revestimento da faixa presidencial por um grupo emblemático de brasileiros comuns, simbolicamente dos mais representativos do que somos, os filhos da injustiça social secular, os que lenta e firmemente, ao longo de gerações, caminharam os passos da dor, do preconceito, da discriminação. (...) Combater e vencer a desigualdade em suas diferentes e iníquas formas”.
A seguir, Martins destaca a “entonação keynesiana” dos discursos e pontua os principais desafios do governo, entre eles, o de não “entrar no jogo do pingue-pongue com o antecessor”.
José de Souza Martins em Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do YouTube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP.
Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).
IHU – O que os discursos do presidente Lula na posse presidencial indicam e significam neste momento?
José de Souza Martins – O discurso de posse no Congresso Nacional foi o mais importante dos dois discursos feitos no dia. Foi um discurso propriamente político, de uma lucidez nunca dantes manifestada nos discursos de Lula e em proclamações do PT e rara na expressão do pensamento dos petistas.
Em primeiro lugar, porque, neste discurso, nem Lula nem o PT se propõem como donos da história, um velho vício do partido, que desde sua origem comportou-se como único e preferencial protagonista do processo político brasileiro. Este foi seu grande erro, que o enfraqueceu e levou ao desastre que culminou com a cassação de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Foi o que abriu caminho para a viabilidade da conspiração fascista, civil-militar, que resultou na trama eleitoral do que foi, de fato, o golpe de Estado disfarçado na interpretação autoritária dos resultados das eleições de 2018 e na sua manipulação.
Lula é empossado presidente da República pela terceira vez; veja a íntegra do discurso:
Se compararmos o discurso do dia da prisão de Lula, em 2018, e o do dia de sua soltura (em 2021), em Curitiba, discursos personalistas e compreensivelmente ressentidos, com estes dois discursos de 1º de janeiro de 2023, veremos que Lula amadureceu e cresceu na consciência histórica e política. Desse modo, ele se tornou provavelmente o mais importante protagonista atual do processo político brasileiro. Discursos de estadista, neles se revela, depois de Getúlio Vargas e de Fernando Henrique Cardoso, que a tiveram, o primeiro a ter claríssima consciência dos desafios do momento adverso e das possibilidades históricas do país. É o desafio da revolução social moderna, ou seja, modernizadora e socialmente transformadora no alargamento das oportunidades de desenvolvimento econômico e capitalista com desenvolvimento social e democracia.
É de se notar a entonação keynesiana dos dois discursos, inspirados em pressupostos da teoria geral do emprego, de John Maynard Keynes, economista inglês que, logo após a Segunda Guerra Mundial, salvou o combalido capitalismo da Inglaterra com sua teoria do emprego e renda, a da economia do Estado do bem-estar social. A salvação do capitalismo depende da criação de emprego, que cria e distribui renda, que cria mais emprego que cria mais renda. É o círculo virtuoso da reprodução ampliada do capital e da sobrevivência do capitalismo com justiça social e direitos sociais.
É a tese que, antes mesmo de Keynes, inspirou o banqueiro e exportador de café José Maria Whitaker, aqui no Brasil, ministro da Fazenda do Governo Provisório da Revolução de Outubro de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Coisa simples: comprar os estoques de café sem mercado em decorrência da crise de 1929, queimá-los, para comprar as novas safras, pagar os salários dos trabalhadores e os credores dos fazendeiros, manter ativo o fluxo do capital. E manter o nível de consumo, com a compra de produtos industrializados, até o início da crise importados, mas desde então supridos pela indústria nacional que, desde a década de 1910, operava com capacidade ociosa.
Foi o que fez o nosso “boom” industrial, deslocou a economia do café para a indústria e criou um poderoso mecanismo de integração social dos trabalhadores. Deu origem à era do nacional-desenvolvimentismo, que seria encerrada pelo golpe militar de 1964 e a oficialização de um capitalismo dependente, subalterno, neoliberal e, por isso mesmo, anticapitalista em suas consequências. O golpe de 2018 levou ao poder toscos e caricatos defensores do que no Brasil os transformou em autores de economia de botequim, cujos resultados foram 33 milhões de famintos, milhões de desempregados, milhares de moradores de rua, uma sociedade de excluídos de fato, incluídos perversamente.
Os dois discursos de Lula no dia da posse foram discursos em favor das possibilidades históricas do Brasil e foram um chamamento de todos em favor de um projeto includente e democrático de nação. De muitos modos foram discursos contra a doutrina neoliberal de banimento dos desvalidos, a teoria de Milton Friedman, cuja obra ressalta a inevitabilidade do autoritarismo para pô-la em prática. É uma teoria que nunca foi posta em prática nos EUA. Resolveram fazer experiência no país dos outros.
Este momento, portanto, não é simplesmente de acerto de contas com o fascismo bolsonarista do golpe de 2018, mas o decisivo momento de acerto de contas com a história, com o nosso possível e as nossas possibilidades.
É o que pede que a consciência democrática brasileira se dê conta das grandes mobilizações sociais que criaram o neofascismo bolsonarista, deram-lhe visibilidade e consciência reacionária e antissocial, transformaram-no em sujeito do processo político. Este não é um momento de triunfo do petismo, mas de triunfo do que nos resta da consciência democrática brasileira. O momento da insurgência política e social do que nos sobrou nos interstícios de quatro anos de irresponsabilidade e destruição.
Cerimônia de posse foi marcada por quebras de protocolos
IHU – Quais foram os três pontos mais significativos dos pronunciamentos?
José de Souza Martins – Na verdade, os “três” pontos mais significativos dos discursos do dia da posse foram dois: os programáticos, o principal dos quais é o relativo à reconstrução do Estado e da sociedade brasileira, no discurso no Congresso Nacional, o discurso do Chefe de Estado ao Estado, à sua responsabilidade na restauração da democracia e na reedificação da ordem política.
Convém lembrar que Bolsonaro não é um pensador do autoritarismo. Não é pensador de coisa nenhuma. Ele não tem competência para isso. Mas, de fato, pôs em prática concepções meramente antagônicas em relação a tudo o que fora feito, em termos políticos e de política social, desde a redemocratização do país e, em especial, desde a Constituição de 1988. Agiu para reverter a derrota da ditadura pelo regime democrático, com a eleição de Tancredo, em 1985, a posse de Sarney e a restauração da República.
Nem sequer assumiu de fato o governo. Desde o dia de sua posse, ele revelou que optara pela renúncia tácita ao mandato e confirmou isso no abandono do país dois dias antes do término do mandato formal. Desde o resultado da eleição de 2022, no dia 30 de outubro, ficou desarvorado e se sentiu abandonado, por todos os oportunistas que atraíra no mandato, civis e militares, ministros e cúmplices.
O roteiro do bolsonarismo foi o de negar e demolir a democracia social tucana e petista. A reunião ministerial de 22 de maio de 2020, cuja gravação foi tornada pública pelo Supremo Tribunal Federal – STF, por solicitação do ministro Sergio Moro, que cairia dois dias depois, é uma prova do baixo nível do governo, meramente antagonista, e de boa parte dos ministros que Bolsonaro atraiu e agrupou. A referência de um dos ministros de deixar passar a boiada da transgressão das leis ambientais, enquanto a mídia estivesse distraída com a pandemia e suas mortes, expôs a estratégia do que acabará assumindo as características de delinquência política, na burla das leis.
O segundo ponto importante está no centro do discurso feito após a subida da rampa do Palácio do Planalto e o revestimento da faixa presidencial por um grupo emblemático de brasileiros comuns, simbolicamente dos mais representativos do que somos, os filhos da injustiça social secular, os que lenta e firmemente, ao longo de gerações, caminharam os passos da dor, do preconceito, da discriminação. Ressalto, comovido, dois heróis simbólicos do povo que, com Lula, subiram a rampa do poder legítimo. O cacique Raoni, que nas últimas décadas foi quem personificou e deu visibilidade internacional aos nossos povos indígenas, um verdadeiro diplomata e estadista. Ele disse: “Fiquei feliz”.
E o menino Francisco, de 10 anos de idade, morador de Itaquera, na periferia de São Paulo, a quem conheço pessoalmente. Com muito desembaraço e maturidade, ele explicou sua presença ali, naquela hora solene. Ele fora com os pais a um Natal de catadores. Decidiu, então, escrever uma cartinha para Lula. Recebeu o convite para estar na posse e ficou nervoso, nem conseguiu dormir na véspera. “Eu pensei que fui escolhido porque tinha alguma razão, porque sou uma criança preta, com mãe preta e pai preto, para representar esse povo.”
Lula sobe a rampa. Resistência e representantes da população brasileira:
Pretensiosos, que não conhecem o país no qual querem mandar nem o povo que pretenderam subjugar, Bolsonaro e Mourão foram derrotados pelo efeito bumerangue de seus equívocos, pelos sujeitos invisíveis da história, que subiram a rampa do Palácio com Lula naquela tarde de esperança.
O segundo ponto está no discurso ali feito: combater e vencer a desigualdade em suas diferentes e iníquas formas. Uma visão pequeno-burguesa da desigualdade no Brasil trata ela como se fosse apenas desigualdade jurídica e econômica. A desigualdade está muito mais na diversidade das expressões do que em seus fatores mais visíveis.
No discurso, Lula desconstruiu-a. A começar da referência famosa às três refeições por dia, de célebre discurso de Martin Luther King Jr. Mas também dos detalhes vivenciais da desigualdade. Ela dói, ela humilha, ela exclui, ela mata a alma da sociedade, ela corrói a esperança, ela reduz a humanidade dos seres humanos, fazendo deles meros equivalentes de coisa. No discurso da rampa, pelo peso simbólico do discurso da subida dos simples, a igualdade não se resume ao jurídico e ao econômico. Ela só é verdadeira se as pessoas também estiverem saciadas de alegria e felicidade. Lula se cerca de pessoas que sabem o que é isso e ele, mais do que ninguém, sabe.
IHU – Como o senhor interpreta a proposta de reconstrução mencionada por Lula quando assumiu “o compromisso de, junto com o povo brasileiro, reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos”? O que isso significa?
José de Souza Martins – A reconstrução do projeto da Frente Democrática, ressaltada nos discursos de Lula, é não só restabelecer direitos sociais e políticos usurpados, bloqueados e anulados durante o regime bolsonarista, mas suprimir as armadilhas que foram plantadas na estrutura do Estado e no direito brasileiro, fundamentos da minimização da democracia e da minimização do povo. O bolsonarismo criou uma relação entre o Estado e a sociedade baseada no pressuposto de que povo bom é povo carneiril. Sem o apoio do Legislativo e do Judiciário, a reconstrução não será possível, fracassará.
As conexões de sentido dos dois discursos desse dia mostram que um novo modelo de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social nasce dos seus pressupostos. Um novo modelo de capitalismo com participação, isto é, sem excluídos nem exclusões, a própria sociedade e o próprio povo como membros desse capitalismo, coadjuvantes do desenvolvimento.
Os próprios empresários, com exceções que há e significativas, caíram no ardil da cumplicidade com os equívocos de um militarismo obsoleto e ultrapassado, o da Guerra Fria e o da geopolítica da subserviência. Estão lá atrás achando que estão lá adiante. São subversivos sem o saber. Não há como assegurar a continuidade do capitalismo com mais de uma centena de milhões de desempregados e subempregados e 33 milhões de famintos e muitos milhões de desabrigados. O capitalismo precisa de gente e de gente consciente. Capitalismo e burrice formam uma combinação que nunca deu certo.
A realidade geopolítica de agora é outra, o capitalismo é outro, o socialismo tornou-se socialmente criativo como proposta da revolução na vida cotidiana, da superação da alienação que minimiza o ser humano, que o enche de coisas e lhe empobrece o espírito, que lhe oferece a religiosidade de caixa registradora no lugar do púlpito, o cálculo no lugar da fé, a de uma religião em que um deus tilinta no bolso dos ávidos.
A reconstrução tem sua condição indicada nos discursos. Depende de vontade política. Mas depende, também, da reindustrialização e, portanto, da criação de empregos, coisas mencionadas por Lula. Lula quer salvar o capitalismo, e deve, com sua transformação em capitalismo social, como sistema econômico de uma aliança social por meio do emprego. É viável e é interessante porque pressupõe o protagonismo social de quem trabalha.
Os 54 governantes ou representantes de países estrangeiros que compareceram à posse de Lula, com agendas de conversações bilaterais, nos dizem que o novo capitalismo decisivo compareceu em peso. A diplomacia do novo modelo econômico veio aplaudir Lula e o que ele representa nas inovações internacionais que seu governo poderá viabilizar. O mundo que quer ser diferente e melhor, superador de injustiças, veio dizer a Lula que estava à sua espera e à espera de que o Brasil voltasse de seu exílio injusto. É um aviso aos conspiradores e inimigos da democracia e inimigos da pátria.
A composição pluralista e democrática do novo governo brasileiro, com maior participação de mulheres, com a significativa e institucional presença de indígenas, mostra um país que mudou entre o fim da ditadura de 1964 e estes dias de compromisso com a democracia e o desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Os governos estrangeiros na posse indicam um alinhamento e um novo compromisso econômico e político multilateral. São um indício também de que o Brasil amazônico, pela primeira vez na história brasileira, será a referência politicamente decisiva do capitalismo brasileiro na nova geopolítica que se impõe.
IHU – Quando mencionou o abismo social existente no país e mencionou a cena cotidiana de pessoas que pedem dinheiro nas ruas e passam fome, Lula se emocionou e chorou. Como o senhor interpreta esse momento em particular e as lágrimas do presidente?
José de Souza Martins – Conheci Lula há muitos anos, antes dele entrar na política, quando era um líder sindical em São Bernardo. Por intermédio de uma amiga comum, ligada à pastoral social da Arquidiocese de São Paulo, ele me perguntou se poderia encontrá-lo num sábado à tarde na casa paroquial da igreja matriz de São Bernardo.
Sabia que eu fazia pesquisa no meio rural e estava realizando uma grande e solitária pesquisa sobre conflitos na região amazônica, cujos dados seriam analisados e publicados no meu livro Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano (Contexto, 2009).
Lula: combate às desigualdades será prioridade do governo:
Cheguei na hora marcada, mas ele demorou um pouco. Explicou-me, depois, que se atrasara porque fora solicitado a ir com urgência a uma favela da região do ABC para um apaziguamento, onde os moradores queriam matar uma família porque ela se alimentava de ratos.
Ele estava triste e comentou a que ponto se havia chegado. Ele vira a miséria de perto, quando sua família chegou do Nordeste e foi morar na Vila Carioca, ao lado da Favela de Heliópolis, no acesso a São Caetano.
A fome não é apenas pessoal nem é apenas fome de comida. A fome, mesmo quando saciada, perdura. E perdura pela vida inteira. A fome não é apenas a do estômago vazio. É da alma vazia de esperança, da mente mutilada pela incerteza, pela consciência dolorosa de uma falta de lugar no mundo. Entendo perfeitamente a emoção e as lágrimas de Lula naquele momento. Ele tinha consciência de que subia a rampa do Palácio carregado nos ombros esquálidos dos famélicos de um país que não tem uma justa causa para que tantos brasileiros passem fome.
IHU – No discurso, o presidente mencionou a necessidade de investir mais nas universidades e criar mais universidades no país. Como o senhor analisa esse desafio à luz dos “sobre-educados”, brasileiros com ensino superior que não encontram trabalho qualificado? Quais os desafios nesse sentido?
José de Souza Martins – O próprio Lula indicou como vê o problema. Mais universidades significa libertar o país de limitações culturais que tolhem o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. Ele também se referiu à criação de empregos, tanto pela reindustrialização quanto pela retomada de investimentos na reativação das 14 mil obras públicas paralisadas. E há, ainda, o esperado surto de economia verde. A perspectiva keynesiana sugere o efeito multiplicador de renda e emprego.
O desafio é, portanto, o de mudar o padrão do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. Medidas na área fiscal, já anunciadas, devem estimular a pequena e a média empresa, um setor com efeitos multiplicadores do tipo que menciono. Tudo vai depender de que o projeto de mudança do modelo de desenvolvimento não seja sabotado ou boicotado por aqueles que se identificam com o modelo que se tornou inviável porque chegou ao seu limite, um modelo rentista, do ganho fácil sem responsabilidade social.
É claro que, no que diz respeito às profissões, existem os efeitos das reestruturações produtivas, que pedem o reconhecimento de uma outra concepção de profissão, devido ao risco real de sua obsolescência. E, portanto, a de outra concepção de formação profissional, que pede o retorno cíclico dos profissionais às universidades para atualização e reciclagem. O desafio é, aí, na área da educação.
IHU – Quais serão, na sua avaliação, os principais desafios do governo?
José de Souza Martins – O principal e mais grave desafio será o de não eleger Bolsonaro e o bolsonarismo como adversários e questionadores válidos e legítimos. Não o são. Se este governo Lula entrar no jogo do pingue-pongue com o antecessor, cometerá um erro que inviabilizará reformas econômicas, sociais e políticas. Legitimará o governo paralelo de que já há indícios de que foi montado e deixado armado. Neste dia 3 de janeiro, lá nos Estados Unidos, onde se aloja, Bolsonaro está entrando em suas redes sociais e agindo como se continuasse no poder.
Forças bolsonaristas organizadas e grupos que não estão dispostos a abrir mão de seus privilégios e das mamatas propiciadas pelo conluio de economia e poder podem boicotar a viabilidade das reformas e transformações de que o país precisa.
O bolsonarismo cresceu conluiado com igrejas e com grupos potencialmente capazes de atos de violência coletiva, igrejas e grupos relacionados com a cultura das fake news, grupos preparados para formas de mobilização totalitária que podem trazer enormes problemas para o funcionamento do governo.
O governo terá alguns de seus principais desafios na área da educação e da cultura, no combate ao senso comum pobre, vulnerável e manipulável, na formação e difusão de um novo senso comum, na viabilização da revolução urbana e da revolução na vida cotidiana e no modo de vida, no reconhecimento e apoio a pautas de reivindicação social que contribuam para a concretização da mudança social provocada e emancipadora da pessoa, superadora da alienação e da incerteza.
Esse é um desafio porque nossos partidos políticos, sobretudo os de esquerda, não estão preparados para reconhecer essas necessidades nos devidos e apropriados termos enquanto necessidades radicais, que não podem ser saciadas sem mudanças no padrão e nos valores da organização social.
Finalmente, a revitalização dos movimentos sociais e sua função na reorganização da sociedade e do Estado será decisiva para que as metas de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social sejam alcançadas.