23 Novembro 2022
"Os mercados, na voz de seus mais emplumados representantes, expõem pública e francamente a defesa de um teto-democracia, ou seja: prévio descumprimento dos compromissos majoritários assumidos nas últimas eleições. Do contrário, acaba a paciência. Então quer dizer que a eleição de Lula foi uma concessão, uma liberdade condicional para que alguns retoques fossem feitos, um bolsonarismo-guedismo sem arroubos", escreve Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e professor da Universidade Federal de Rondônia.
A pontuação desautorizadora do fraseado presidencial feita pela rediviva troika tucana (Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha) quer primeiro mostrar um estranhamento, uma advertência técnica de economistas que tornaram indistinguíveis as posições de operadores da banca privada e de gestores do Banco Central e Ministério da Fazenda entre 1994 e 2002. Sabe lá o que significa cair a Bolsa e aumentar o dólar, perguntam os tradutores do simultâneo interesse de manter o negócio Brasil tal como ele é. Apague-se a dilapidação feita pelas contrarreformas, apaguem-se os efeitos perversamente desiguais da pandemia.
A lição que querem reproduzir, em um futuro esvaziado, é: diante das crises, nenhum grau de espoliação e de pilhagem a menos. Diante do desmonte feito inevitável, o que se propõe é um desmonte mais acelerado, intensificar o butim, com o lema implícito “participe do butim você também”. Afinal, a ciranda financeira e o agronegócio é tudo “gente séria”, “gente como a gente”, repetem em simulacro pretensamente pop.
Nem que fosse para fazer uma representação crível, em contexto de desastres sobrepostos, seria de bom tom mostrar “mente aberta” para reconstruções institucionais e de agendas. Prender-se a marcos artificiais e contingentes, a regras punitivas contra a ativação de articulações nucleadas pelo Estado expressa uma vontade deliberada de sabotar potenciais saltos qualitativos que o país possa dar. Será o pregão da bolsa, embebida no curtoprazismo que lhe é inerente que irá ditar o que podem ser benefícios e investimentos prioritários para a maioria da população?
Ao interrogarem a interjeição “Paciência”, feita pelo presidente eleito, colocam em questão os motivos da paciência, quem é que deve tê-la – e até quando. Os tecnocratas convertidos em banqueiros proferem ameaças, ressoando o pulso da Faria Lima, exigindo desagravo e provas adicionais de fidelidade aos princípios sagrados da responsabilidade fiscal. Aliados de ocasião, se sentem agora no direito de estabelecer inadmissibilidades na reconstrução de instrumentos de política interna ou doméstica do país.
Oras, em uma situação de crise magnificada em que se acumulam os efeitos da grande bolha de 2008 e do cenário pandêmico a partir de 2020, fazer a defesa fundamentalista de regras de austeridade significa a defesa de inércias muito rentáveis para determinados setores. Crescimento e inércia deslocam posições de mercado e de classe. Inflação é, antes de tudo, conflito distributivo; e a forma e a intensidade do combate a ela definem quem ganha mais e quem perde mais. Os novos grupos bilionários brasileiros, nutridos por políticas de austeridade e de hipervalorização de ativos financeiros, defendem a austeridade fiscal em função de um interesse maior. Acreditem, é em nome dos pobres, pensando neles apenas. Nada a ver com a explosiva concentração de riqueza, precedida de incessantes fusões e aquisições. Defender superávits primários e o controle inflacionário com aumento de juros é defender os interesses dos pobres. Faz sentido?
O ultimato lembra que houve apoio e reconhecimento da eleição, mas o caminho, os limites e a nomenclatura ultraliberais estão fora de questão. Aferrar-se ao teto de gastos, admitindo exceções isoladas e condicionais, às custas de persignações, reverências e autoflagelos, significa dizer que a democracia não cabe no esquadro fiscalista de economias profundamente financeirizadas, como a nossa. De forma similar, batalhões de mercenários não admitem o fim do Estado miliciano-persecutório que estava em construção.
Os mercados, na voz de seus mais emplumados representantes, expõem pública e francamente a defesa de um teto-democracia, ou seja: prévio descumprimento dos compromissos majoritários assumidos nas últimas eleições. Do contrário, acaba a paciência. Então quer dizer que a eleição de Lula foi uma concessão, uma liberdade condicional para que alguns retoques fossem feitos, um bolsonarismo-guedismo sem arroubos.
No padrão de atuação da tecnocracia financeira que foi hegemônica no Brasil por décadas, não faltou ativismo estatal em nome da meta totalitária de criar “ambientes facilitadores e estimuladores de investimentos privados” e das metas operacionais subsequentes. Esse circuncentro do tripé neoliberal (metas de inflação, metas de superávit primário mínimo e de livre oscilação do câmbio com tetos e pisos elásticos) procurou erradicar o que estes oráculos de mercado chamam de “zonas cinzentas” na regulação da economia – o que quer dizer proporcionar certeza de benefícios de curto prazo em qualquer prazo. Paciência?
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A democracia fora do teto e os guardiões do templo dos mercados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU