26 Outubro 2022
Neste momento, Katharina Pistor não gostaria de estar sujeita a uma hipoteca variável. Esta jurista e acadêmica, nascida no norte da Alemanha, em 1963, é especialista em efeitos da legislação na criação de riqueza e nas desigualdades econômicas. Capitán Swing publicou seu livro El código del capital, que aborda justamente como a lei cria riqueza e desigualdade.
É preciso dizer que não é um livro fácil de ler, mas uma vez feito o esforço de se familiarizar com certos tecnicismos do campo econômico e jurídico, as teses e argumentos de Pistor se revelam alarmantes e ao mesmo tempo necessários. Apesar da dureza do sistema, Pistor semeia um pouco de esperança e oferece algumas ideias sobre como as pessoas que não manuseiam os códigos do capital podem atuar para alcançar um benefício social coletivo.
A entrevista é de Lídia Penelo, publicada por Público, 23-10-2022. A tradução é do Cepat.
No final do livro, você considera que existem apenas dois caminhos alternativos: a revolução ou a erosão da lei que fomenta o autoritarismo e o fascismo.
Minha preocupação é que se perdermos a lei, se perdermos a legitimidade da lei, a democracia se torna impossível. Portanto, minha preocupação é que se as pessoas perderem a confiança na lei e nas razões pelas quais continuam confiando nela, destruiremos a fundação dos valores democráticos, e isso leva ao autoritarismo e ao fascismo.
Então, considera possível a alternativa da revolução?
Não tenho certeza. Quando você olha para a história das revoluções, o quanto realmente mudaram? Custaram muitas vidas, houve muita esperança e depois, muitas vezes, em geral, aparecia outro no poder que controlava o sistema. Por exemplo, após a Revolução Francesa, surgiu a burguesia.
Penso que há duas coisas verdadeiras e ao mesmo tempo contraditórias: uma seria a mudança radical, mas considero que uma mudança de regime não é suficiente porque significa que simplesmente acontece mudanças só na superfície. Mas acredito que há pequenas mudanças que são transformadoras, por isso no livro descrevo um sistema que evolui em pequenos passos, ao longo do tempo. Por essa razão, no final do livro, destaco que é preciso mencionar estratégias de pequenos passos que sejam estratégicos e bem localizados, para que talvez tenham efeitos transformadores.
Você pode explicar por que descarta que implantar um mercado radical seja o caminho para melhorar as coisas?
Sou muito crítica ao livro Radikal Market. De fato, falei com o autor e ele concordou com a minha crítica. Penso que a ideia dos mercados radicais é terrível. É basicamente submeter tudo o que fazemos e que nos importa a um preço. A noção de mercado radical é horrível, assim como é o totalitarismo.
É por isso que aposta na repolitização da sociedade?
Sim, pode-se dizer assim, mas basicamente o que digo é que os mercados são um produto da lei e, portanto, também são políticos. Se somos conscientes de que qualquer coisa que façamos coletivamente pode gerar uma mudança nas sociedades, podemos ter um novo debate sobre como as organizamos.
Podemos entender que controlar a codificação do capital é fundamental para distribuir melhor a riqueza na sociedade, mas como popularizarmos isto?
É um pouquinho complicado. Tento dar um primeiro passo com o livro: abrir um pouquinho as cortinas e ver mais de perto como a máquina funciona. Penso que a coisa mais importante que as pessoas devem entender são os direitos legais.
Afirma que o cálculo feudal segue em total vigência nas sociedades democráticas. É surpreendente que o assumamos com total naturalidade.
O capitalismo emergiu do sistema feudal que lhe deu as bases, e daí surge a lei colateral e a lei corporativa, são tudo leis pré-democráticas. Quando os democratas apareceram, adotaram todas essas leis que já existiam e acrescentaram as leis constitucionais de propriedade privada. São temas criados como vacas sagradas de um regime de leis privadas que já existiam antes e que são legitimadas como parte da democracia.
É bastante assustador ler como você narra que os advogados têm o controle total. É chocante quando você fala dos motivos da incapacidade de os estados controlarem essa codificação.
Penso que, em certa medida, os estados sempre participaram disso, pois são os criadores das leis, autorizam os advogados e juízes, abrem suas fronteiras para que possam ser escolhidas diferentes leis, de diferentes nações, que nos favoreçam, mas ao mesmo tempo penso que existem questões inerentes a nossos governos.
Todas as leis são relativamente abertas e, portanto, podem ser interpretadas, e a interpretação final é realizada pelo tribunal, mas só uma pequena fração dos casos acaba no tribunal. E antes deste passo, a interpretação está nas mãos dos advogados. Isto tem um lado positivo, que significa que podemos adaptar a lei às circunstâncias, mas um lado negativo, que está em que podemos empurrar as leis para além dos propósitos que tinham quando implementadas.
Você também faz a observação de que as leis são portáveis e que não existe um direito global. Esse direito global seria uma solução?
Não há solução (sorri). Antes de tudo, é muito difícil criar um direito global, penso que o sistema global está enraizado nas leis locais. Ocorre que os ativos estão codificados em inglês e teriam que ser substituídos.
Você se formou com as elites que atualmente codificam as leis e por extensão o capital, certo?
Sim, e agora também eu os ensino.
Puxa, e qual é a sua impressão a esse respeito?
É uma situação um pouco esquizofrênica, reconheço. Eu ensino leis corporativas e isto me encanta. O que tento ensinar aos meus alunos é que as leis de organização empresarial são fascinantes e poderiam ser as leis constitucionais do setor privado. E estudamos diferentes casos e vemos como os princípios legais mudam ao longo do tempo.
Eu ensino como esses princípios mudam. Como é possível que em 1920 um juiz tenha dito que o princípio fiduciário era um e não podia ser mudado[?]. O que tento ensinar é o processo de mudança legal, abrir a cabeça deles. Percebo que muitos deles serão codificadores, mas espero que haja uma ou duas pessoas com um olhar crítico, e estudantes que sigam em outra direção.
Recebeu algum tipo de ‘feedback’ de seus colegas?
Tive dois alunos que vinham de famílias de imigrantes, vinham de famílias de taxistas em Nova York e decidiram se tornar advogados do sindicato dos taxistas. Quando veio a crise de 2008, muitos taxistas estavam fortemente endividados. Esses estudantes fizeram um plano de refinanciamento para os taxistas, algo que não existia. E buscaram analisar como a cidade pode entrar para refinanciar e ajudar esses setores. Isso é um pouco otimista, mas gostei.
Outro aspecto que você analisa é a ascensão dos codificadores digitais. Poderia explicar os prós e contras?
No livro, argumento que o código digital vai prevalecer, mas na verdade não concordo inteiramente comigo mesma. Penso que o código digital também tem a capacidade de ascender e se tornar muito maior do que pensávamos, pense no metaverso, é global. Através do código digital é possível estabelecer limites, mudar o comportamento das pessoas de forma bastante assustadora. Mas, sim, tenho um pouquinho de esperança de que esses codificadores digitais nos deem uma nova possibilidade de evitar os sistemas fascistas.
O que me parece positivo do código digital é que conta com a participação de muitas pessoas, não são apenas algumas que codificam. O complicado é levar as pessoas a uma mudança de sistema que promova ideias melhores, compartilhando informações e não sendo exploradas como produtos e objetos do capital. Estou trabalhando em um projeto, junto com um cientista da computação, para ver como desenvolvemos essas ideias.
Pode nos contar um pouco mais?
Chamamos o projeto de coded power, o poder do código. Tentamos imaginar novas formas para que o código digital possa empoderar as pessoas. Pode ser um bom lugar para a mudança porque não está tão enraizado quanto os códigos que regem as instituições e as propriedades privadas que têm centenas de anos. Se permitimos que as grandes companhias coletem nossos dados, temos que impedir que isso aconteça e encontrar novas formas de tomar decisões e novas formas de usar esses meios coletivamente.
Quando você está navegando na internet e o algoritmo atua, como você se sente?
Admito que continuo utilizando o Twitter, embora não seja muito fã de Elon Musk e vou encerrar minha conta, não posso fazer muito mais. Como qualquer pessoa, sou um pouco viciada no Twitter, é difícil ficar afastada. Assim como acontece com todo mundo, tenho que me controlar para não olhar o e-mail o tempo todo, ou as redes...
Quando os poderosos combinam o código digital com o código legal, isso prejudica os mais vulneráveis?
Sim, podemos ver como os bancos utilizam a tecnologia a seu favor, mas também penso que será muito difícil deter o código digital porque qualquer um que o conheça pode codificar. E por aí pode vir a revolução, pode levar à utopia de um sistema transformador de como organizamos nossas relações sociais e nos empoderamos, como delegamos decisões e como nos informamos sobre temas importantes. Poderíamos fazer muitas coisas e compartilhar dados em nosso benefício. Em tudo isso há um poder latente e temos que pensar em como vamos usá-lo.
Qual a sua opinião sobre o cenário socioeconômico atual?
Vivemos tempos difíceis. Mas uma moeda sempre tem dois lados. Encontrei um debate muito interessante sobre a inflação que fala que estamos em um momento de inflexão onde as pessoas percebem que a inflação tem múltiplas causas. Nem tudo que está relacionado ao dinheiro tem a ver exatamente com o dinheiro.
Na Alemanha, há um jovem economista que diz que temos que controlar o preço da energia, e essa é outra forma de lidar com essas crises. Se mudar um pouquinho a maneira de pensar, muda um pouco como implementamos as coisas, e isso também ajudaria a indústria energética a não falir. Espero que encontremos uma situação comum.
Como explica o ressurgimento da direita?
A Itália e seu governo de extrema-direita refletem que há um ressurgimento dos partidos populistas. Depois há a questão do Brexit, Donald Trump, Marine Le Pen, a situação na Hungria, Polônia, tudo isto é deprimente… Mas penso que tudo o que foi citado antes está se alimentando de um descontentamento da população e este descontentamento se baseia em fatos reais.
Penso que as pessoas sentem que perderam o controle sobre o seu destino, votam em um partido, votam em outro e nada muda. E quando vemos que não há mudanças, significa que os políticos não têm controle sobre o capital e precisam resgatá-lo com leis sociais, mas os lucros vão para outro lugar. E as pessoas estão cansadas. Há muita incerteza e neste contexto as pessoas se abrem a ideias malucas. Por isso, temos que devolver o controle às pessoas, dar poder a elas para que tomem decisões e percebam que suas decisões têm impacto para mudar o futuro.
Quando você decidiu pesquisar tudo isso?
Comecei após a crise financeira de 2008. Sentia que ninguém tinha ideia de como funciona o sistema. Então, reuni um grupo de pesquisa e desse projeto saiu um artigo onde tentei falar sobre o sistema financeiro global para pessoas comuns, e depois tentei escrever um livro para que as pessoas o entendam.
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“Os mercados são um produto da lei e, portanto, também são políticos”. Entrevista com Katharina Pistor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU