15 Dezembro 2022
Indicação do ex-prefeito de SP sugere que Lula não cederá às pressões do financismo – e que o Teto de Gastos é entrave à reconstrução do Brasil. Resta saber se o Planejamento e Orçamento será capitulado por algum acólito do mercado.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por OutrasPalavras, 13-12-2022.
Pouco a pouco, Lula vai revelando os nomes de seus principais colaboradores para o começo de seu terceiro mandato em janeiro próximo. Apesar da intenção inicial declarada de que não aceitaria pressões e deixaria a divulgação para um período mais próxima da posse, a dinâmica da política terminou por precipitar a antecipação de alguns integrantes de cargos considerados mais sensíveis na Esplanada. Assim, às vésperas do jogo em que a seleção brasileira foi eliminada da Copa do Mundo da FIFA no Qatar, o presidente eleito anunciou os cinco primeiros nomes de sua equipe.
E assim foram confirmados:
A estratégia de Lula pretende contornar o tradicional e esperado jogo de especulações, apostas e lobbies que se avolumou à medida em que a equipe de transição organizava seu trabalho e que o Congresso Nacional tenta votar a PEC da Transição. O novo presidente tem diante de si a difícil tarefa de operar um conjunto amplo de variáveis em um tabuleiro que se organiza pela lógica de uma geometria variável e bastante complexa. Em primeiro lugar, é necessário contemplar as forças políticas que estiveram consigo desde o primeiro turno, mas também aquelas que o apoiaram no disputado e decisivo pleito de 30 de outubro. Além disso, a necessidade de compor uma base de apoio sólida no parlamento que tomará posse apenas em fevereiro do ano que vem deverá estar presente nas definições a serem adotadas até o final de dezembro.
Em segundo lugar, Lula precisa dar conta das promessas de campanha e promover uma reorganização no desenho da estrutura ministerial. A demagogia levada a cabo por Bolsonaro, ao longo do quadriênio mais longo e sofrido de nossa História, promoveu fusões irresponsáveis e extinções criminosas de órgãos do primeiro escalão. Assim, devem retornar os tradicionais ministérios da área econômica (Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio), com a possibilidade de surgirem algumas surpresas mesmo nesse pacote. Permanece a incógnita a respeito da área ambiental, com a inovadora Autoridade do Clima que deverá conviver com o Ministério do Meio Ambiente. A criação de um organismo especialmente dirigido às questões dos povos originários também é aguardada com expectativa, bem como o retorno dos órgãos de direitos sociais e grupos identitários.
A urgência em dar conta da questão das relações exteriores também contribuiu para antecipação do nome de seu responsável direto. Ainda que a estrutura e a tradição do Itamaraty ofereçam todas as condições para a implementação com eficiência da política a ser orientada pelo Presidente da República, o fato é que a disputa de bastidores estava incomodando e poderia transbordar para comprometer a unidade do governo logo no início. Por outro lado, as tarefas de reconstrução também neste domínio são tantas que Lula optou por incluir o chanceler nesse pacote inicial.
A sensibilidade da questão militar talvez tenha sido o fator que mais pressionou pela divulgação de alguns nomes antes do prazo inicialmente desejado. A organização dos atos golpistas por todos os cantos do Brasil conta com o apoio e a complacência de Bolsonaro e de seus principais colaboradores na caserna. As particularidades da relação do Ministério da Defesa com os comandantes das três Forças se torna ainda mais complexa diante de um quadro de estímulo ao golpismo e à ruptura explícita das regras da hierarquia e de respeito à ordem constitucional. Na verdade, esta tem sido a situação desde janeiro de 2019, com a nomeação de mais de 3 mil militares em cargos comissionados no governo federal.
Assim, por mais que não se deva “negociar” com militares insubordinados, o novo governo civil vai precisar de um período de adaptação para conquistar a confiança das elites militares e poder exercer, de fato, o seu papel constitucional de autoridade suprema das Forças Armadas, tal como definido no art. 84 da Carta Magna. Ao listar as atribuições exclusivas do Presidente da República, o inciso XIII é explicito: “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos”. A indicação de José Múcio Monteiro aponta para uma tentativa de apaziguamento no setor, mas implica em alguma conciliação sobre o papel do presidente da República. Como afirma o estudioso Manuel Domingos, se o poder civil não exerce o comando sobre os militares, ele será então comandado por eles.
O caso do comando da economia é outro ilustrativo do jogo de pressões sobre o futuro Chefe do Executivo. Mas aqui trata-se das chantagens e das ameaças exercidas pelas forças do financismo. Ao se darem conta da incapacidade de emplacar um candidato ao Palácio do Planalto que pudesse ser chamado de seu, os representantes do sistema financeiro partiram para a implementação do Plano B. Evitaram declarar apoio explícito a algum dos dois candidatos que se apresentaram para o segundo turno. Afinal, Bolsonaro prometera a continuidade de Paulo Guedes à frente do superministério da economia caso saísse vencedor. A perspectiva de ver seu queridinho por mais um quadriênio à frente de tais responsabilidades alimentava o apetite do povo da finança.
Com a confirmação da vitória de Lula e as possibilidades de ocorrerem mudanças na orientação da política econômica se colocando com mais firmeza, o financismo lança mão do Plano C. Tratava-se de uma inteligente jogada de sequestro da essência do programa econômico, por meio da indicação de nomes, pelo veto de outros e pelo impedimento de retorno de temas considerados por eles como verdadeiros tabus. Assim como fizeram com o apoio à lei da independência do Banco Central, agora buscam criar uma ilha no interior do governo Lula, onde o exercício do poder da economia seria apartado da legitimidade obtida pelo candidato nas urnas.
Assim como a Igreja Católica tinha o seu Index Librorum Prohibitorum na época da inquisição, atualmente os arautos do financismo estabelecem a sua lista particular dos assuntos a serem interditados no debate da economia. Como esse pessoal não tem o poder papal de proibir os livros, eles buscam impedir que os grandes meios de comunicação tragam luz e razão à discussão de alguns temas que já não são encarados como heresia nem mesmo nos países centrais do capitalismo contemporâneo. É interessante observar que, nesse quesito, nossas elites não adotam o lema de considerar bom para o Brasil aquilo que é praticado nos Estados Unidos ou o que é recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM).
Alguns mitos fundadores das políticas de austeridade fiscal estão sendo desconstruídos no centro dos implementadores da política econômica global. A rigidez com que se apegavam a diretrizes como limites de gastos governamentais, tetos de endividamento público, restrições à emissão monetária, dentre tantos outros, passam por um período de flexibilização. As diversas fases de políticas de reação à crise econômico-financeira de 2008/9 e de combate à covid colocaram o manual da austeridade extremada de cabeça para baixo no resto do mundo. Mas por aqui os grandes meios de comunicação lançam alertas catastrofistas contra o fim da política de teto de gastos e contra qualquer tentativa de promover programas de políticas públicas que envolvam a recuperação do protagonismo do Estado no processo econômico.
Lula reagiu às pressões emanadas do financismo para que nomeasse um “super comandante da economia” com perfil adequado aos interesses da banca. Para tanto, buscavam lançar alguns nomes como balões de ensaio, a exemplo de Henrique Meirelles e Pérsio Arida. Além disso, o próximo presidente também superou as barreiras impostas por esse povo da banca e enviou a proposta de flexibilização do teto de gastos para o começo de seu governo. Apesar de a PEC da Transição representar valores muito abaixo do que foram as gambiarras fiscais realizadas por Bolsonaro durante os últimos quatro anos, apenas agora os “especialistas” parecem ter se dado conta do “enorme risco” representado por Lula tentar furar o teto de gastos. Se Guedes é ministro, não há “licença para gastar” – apenas programas de governo que precisam de recursos inexistentes. Afinal, ele furou o teto em R$ 800 bi ao longo de seu quadriênio e os escribas do mercado não se manifestaram. Agora, se o governo é o de Lula, aí a coisa muda de figura e qualquer despesa acima do limite da EC 95 é “gastança e irresponsabilidade fiscal”.
O presidente eleito avaliou que o silêncio na definição de nomes e perfis na economia poderia estar mais atrapalhando do que ajudando. Assim confirmou a volta à estrutura anterior, com a divisão das responsabilidades da economia em ministérios diferentes. Para o mais visado deles, indicou alguém de sua confiança e sobre quem exerce uma liderança de hierarquia e respeito. Ao apresentar o nome de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda, é como se Lula dissesse para quem quisesse ouvir: “o comandante da economia sou eu!”. É bem verdade que o ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo apresenta um perfil um pouco mais agradável ao establishment. Conhecido no interior do próprio Partido dos Trabalhadores como o “mais tucano dentre os petistas”, ele mantém bons contatos com os economistas do mercado financeiro. Tanto que um de seus gestos mais carregados de forte simbologia foi trocar sua condição de professor na Faculdade de Filosofia da USP pelo INSPER, conhecido reduto do financismo na capital paulista.
Porém, Haddad tem se caracterizado ao longo dos últimos anos por uma solidariedade muito forte a Lula, desde os primeiros momentos da Lava Jato e de sua prisão. Ao escapar da armadilha oferecida pelo sistema financeiro, o presidente eleito parece não ter se dobrado aos interesses da banca. Se aquele que ele havia indicado para concorrer às eleições de 2018 em seu lugar não é exatamente um quadro alinhado com as posições mais conhecidas da maioria do PT para economia, por outro lado Haddad não pode ser encarado com um futuro ministro de plena confiança das elites financistas.
O fato concreto é que o desempenho de Haddad à frente do Ministério vai depender da capacidade e/ou desejo de Lula de se envolver mais diretamente com o tema. O presidente sabe que não poderá repetir a elevada autonomia que concedeu a Palocci em seu primeiro mandato, quando o então ocupante da Fazenda cumpriu à risca as orientações do financismo, em especial no que dizia respeito à austeridade fiscal. Lula sabe e tem afirmado que as urgências para resolver os problemas imediatos vão exigir uma elevação expressiva do nível de despesas federais. Por outro lado, a implementação de programas governamentais de médio e longo prazos colocam a necessidade de um Estado presente e participante.
A nomeação dos integrantes de sua equipe dará algumas indicações de como será a tendência do futuro Ministério da Fazenda. Caso se confirme a alternativa de uma pessoa também próxima ao Planalto para o Ministério do Planejamento e Orçamento, como a economista e professora Esther Dweck, talvez fique consolidada a estratégia de Lula de exercer maior controle sobre o comando econômico. Afinal, como ele mesmo tem dito, só aceitou o desafio de um terceiro mandato para fazer mais e melhor. E para isso, ele vai precisar de recursos orçamentários em grande volume, esses mesmos que o financismo insiste em lhe negar antes mesmo de sua posse.
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Haddad na Fazenda. O que isso sinaliza? Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU