“A volta de Lula é um alento para a América Latina”. Entrevista com José Luís Fiori

Foto: Ricardo Stuckert | Partido dos Trabalhadores

05 Dezembro 2022

"O retorno de Lula ao governo brasileiro e ao cenário internacional é um alento não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo, por sua experiência acumulada, seu carisma e enorme visão e capacidade estratégica. Um retorno que assume um destaque ainda maior quando se vê contrastado com o que passou com o Brasil nestes últimos quatro nãos de desgoverno e isolamento internacional. A presença de Lula dentro do sistema internacional vai muito além de tudo isso, mas não há dúvida de que sua figura cresce frente ao mundo por haver conseguido derrotar uma coalizão de forças de extrema-direita encasteladas no Estado e nas Forças Armadas, e usando todos os instrumentos do poder e do dinheiro sob controle do governo", afirma José Luís Fiori.

Fiori é professor emérito de Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo” e do laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/UFRJ. É pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP) e colaborador das revista Cadernos Cris-Fiocruz, Informe sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde.

A entrevista é de Pedro Camarão e Alberto Cantarice, publicada por Revista Focus, 19-11-2022.

Eis a entrevista.

Como você enxerga o papel do Brasil sob o novo governo Lula na geopolítica internacional?

Neste momento, há dois consensos internacionais que são importantes para responder a sua pergunta. O primeiro é que o mundo está numa transição extremamente tensa e turbulenta, que deverá durar – pelo menos – durante toda a primeira metade do século XXI: com o fim da ordem internacional do pós-Guerra Fria, a ascensão da Ásia ao centro do tabuleiro econômico e geopolítico mundial, paralelamente ao declínio da hegemonia ética e cultural do mundo eurocêntrico no sistema internacional e o questionamento cada vez mais ostensivo do poder militar global dos “povos de língua inglesa”. O segundo é que o “mundo ocidental” carece de governantes com a liderança indispensável para atravessar essa “zona de turbulência”.

Ainda é impossível prever se essa transição se dará através de uma reforma e negociação prolongada, ou se envolverá uma nova “guerra hegemônica”, mas certamente serão tempos muito difíceis. Nesse contexto, o retorno de Lula ao governo brasileiro e ao cenário internacional é um alento não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo, por sua experiência acumulada, seu carisma e enorme visão e capacidade estratégica. Um retorno que assume um destaque ainda maior quando se vê contrastado com o que passou com o Brasil nestes últimos quatro nãos de desgoverno e isolamento internacional.

A presença de Lula dentro do sistema internacional vai muito além de tudo isso, mas não há dúvida de que sua figura cresce frente ao mundo por haver conseguido derrotar uma coalizão de forças de extrema-direita encasteladas no Estado e nas Forças Armadas, e usando todos os instrumentos do poder e do dinheiro sob controle do governo. Além disso, a vitória de Lula culminou, de certa forma, num conjunto de vitórias das forças progressistas e de esquerda nos principais países do continente, permitindo pensar na possibilidade de formação de um bloco regional de poder que ampliará em muito o volume da voz e da presença brasileira no cenário internacional.

A partir daí, o mais provável é que o Brasil, com o governo de Lula, possa retomar sua posição, mesmo entre as grandes potências do sistema, como uma nova grande potência pacificadora, credenciada inclusive pelo seu passado sem guerras nos últimos 150 anos. Mas como eu disse num artigo que escrevi recentemente, neste ponto, não há como enganar-se: ao propor ascender dentro do sistema internacional, terá que questionar inevitavelmente o status quo e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta a atual ordem ou desordem internacional. Como disse Norbert Elias, dentro deste sistema interestatal, “quem não sobe cai”1, mas ao mesmo tempo há que ter claro e estar preparado, porque “quem sobe” deverá ser bloqueado e submetido a todo tipo de sanções por não se submeter à vontade dos donos do poder global. Como aconteceu no caso brasileiro, com os golpes de estado de 1964 e de 2015/16, que contaram com a participação decisiva dos nossos militares, e com o apoio externo dos Estados Unidos.

Por isto mesmo, para o Brasil assumir esta nova política externa e aumentar seus graus de autonomia internacional “terá que desenvolver um trabalho extremamente complexo de administração de suas relações de complementariedade e competição permanente com os Estados Unidos, sobretudo, e também – ainda que seja em menor grau - com as outras grandes potências do sistema interestatal. Caminhando através de uma trilha muito estreita e durante um tempo que pode prolongar-se por várias décadas. Além disto, para liderar a integração da América do Sul e o continente latino-americano dentro do sistema mundial, o Brasil terá que inventar uma nova forma de expansão continental e mundial que não repita a “expansão missionária” e o “imperialismo bélico” dos europeus e dos norte-americanos”2.

 

Qual a contribuição para a multipolaridade? Forçar a mão para ampliar o Conselho de Segurança da ONU?

O alinhamento natural do Brasil ao lado do bloco latino-americano, e junto à comunidade das nações africanas, além de sua participação no BRICS, apontam na direção da multipolaridade, e abrem portas para o exercício de uma “neutralidade ativa” no atual cenário internacional. Uma posição favorecida pela proximidade histórica do Brasil com os Estados Unidos, e pela sua “afinidade genética” com a maior parte dos países da União Europeia, e devido as grandes ondas migratórias que chegaram no país, também com os países árabes e com o Japão. Este amplo espectro das relações do país candidatam o Brasil para ocupar uma posição e dar uma contribuição importante no processo em curso de definição das novas normas e de construção das novas instituições que deverão ordenar e reger a ordem internacional durante o Século XXI. Com relação ao seu ponto, nãoé improvável que a evolução dos acontecimentos permita um consenso em torno da reformulação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas com certeza isto não deve ser um ponto central da agenda externa do Brasil, porque as próprias Nações Unidas e todas as suas instâncias atuais estão paralisadas e perderam capacidade decisória; mais do que isso, perderam relevância e protagonismo eficaz neste momento de “desconfiguração” da geopolítica internacional.

A disputa entre China e EUA pode acabar se tornando uma oportunidade de desenvolvimento para o Brasil, uma vez que estadunidenses e europeus não querem mais depender totalmente da indústria chinesa?

Todas as grandes crises internacionais, envolvendo as grandes potências do sistema mundial, são oportunidades raras para os demais países com projetos nacionais e internacionais expansivos. É nesses momentos que os países que alguns chamam de “semiperiféricos” logram abrir espaços e avançar seus projetos de mudança e escalada dentro das hierarquias mundiais de poder e riqueza. E também podem ser momentos em que outros tantos países naufragam e retroagem inapelavelmente, perdendo o “bonde da história” e caindo em estados de letargia econômica e destruição social profundas e prolongadas.

O que estamos vivendo neste momento é uma grande transformação mundial que tem muito a ver mas que não se restringe à disputa e à competição entre os Estados Unidos e a China. A Guerra da Ucrânia é, em última instância, uma disputa pela hegemonia militar dentro da Europa, e já logrou acelerar o processo de desmonte da União Europeia tão bem costurado pelas forças conservadoras europeias depois do fim da II GM. São cada vez mais transparentes as disputas e conflitos entre Polônia e Alemanha, entre Itália e França, e para que dizer, entre a própria União Europeia e a Inglaterra.

O declínio e a agressividade ingleses são cada vez maiores, e o projeto econômico da unificação está sendo minado pelas sanções econômicas americanas e europeias contra a Rússia. Esta será uma destruição profunda e prolongada, que vai afetar todo o chamado “mundo ocidental” e, portanto, também ao Brasil. Por outro lado, o mundo árabe e todo o Oriente Médio estão se descolando do G7 e aproximando-se cada vez mais do sistema de alianças políticas e econômicas eurasianas.

E é visível o avanço da extrema-direita na Europa, Hungria e Polônia, e agora também na Suécia, Itália e na própria França, no espaço aberto pelas antigas forças conservadoras e pela própria desidratação quase completa da social-democracia europeia. E por cima de tudo isto, o que se assiste é a ascensão cada vez mais nítida da importância eurasiana e da liderança regional da China, que projeta seu poder econômico pelo mundo inteiro, já sendo a primeira e segunda maior parceira econômica de todos os países latino-americanos.

Portanto, retomando sua pergunta, não há dúvida de que vivemos um momento de grande oportunidade para o Brasil, mas ao mesmo tempo deve-se ter presente que essa crise e transformação mundiais deverão ter como consequência imediata uma desaceleração da economia mundial: em 2023, a Europa deve entrar em recessão ou estagnar, e o mesmo deve ocorrer nos EUA; e a própria China deve reduzir sua demanda global de matérias-primas. Portanto, não há “milagres econômicos” à vista, e a pressão distributiva deverá se intensificar em cima de orçamentos apertados e restringidos pelas baixas taxas de crescimento das próprias economias latinas.

A América Latina tem no momento muitos países que estão ou serão governados por grupos de esquerda, centro-esquerda e centro. Trata-se de uma oportunidade única para o desenvolvimento da região e também para criar mecanismos mais fortes de cooperação?

Com certeza, trata-se de uma oportunidade excepcional, mas não única. Sem que exista uma explicação convincente, a história da América Latina se caracteriza por grandes movimentos conjuntos e sincrônicos. Foi assim no século XIX e acentuou-se no século XX, depois das redemocratizações do pós-IIGM, e no momento das ditaduras militares dos anos 60 e 70. O mesmo voltou a acontecer com as novas redemocratizações dos anos 80; com a onda neoliberal dos anos 90; com a “virada à esquerda” do início do século XXI; à direita, na segunda década do século; e agora de novo “à esquerda”. E ao mesmo tempo, desde o fim da “era desenvolvimentista”, o continente parece mover-se numa gangorra que ora aponta na direção neoliberal, ora na direção contrária, sem que seus principais governos consigam sustentar uma estratégia com sucesso e por um período prolongado.

A diferença é que a estratégia econômica neoliberal vem se ligando cada vez mais a um modelo pinochetista associado a forças políticas de extrema-direita e declaradamente fascistas ou nazistas. Por isso, mais do que nunca, urge que essa nova onda de governos progressistas logre definir e levar à frente uma estratégia bem-sucedida de crescimento econômico. E sobretudo, mesmo sem um crescimento acelerado, que consiga implementar com sucesso uma estratégia de guerra econômica contra a desigualdade social, a indigência, a fome e a falta de moradia, saúde e educação que afetam, até um terço da população latinoamericana.

Nesta nova tentativa, a esquerda e as forças progressistas em geral terão que conviver e enfrentar uma sociedade rachada de cima abaixo e extremamente polarizada em termos ideológicos, políticos e até mesmo religiosos. Com economias que se desindustrializaram quase todas, regredindo para um padrão primário-exportador fortemente dependente das flutuações dos mercados internacionais, e com uma burguesia empresarial que expande seus lucros mesmo sem crescimento do PIB e que por isso mesmo é cada vez menos sensível a qualquer tipo de projeto nacional e popular de desenvolvimento.

Além disso, há que se ter claro que vivemos um momento em que existem muitas “esquerdas”, com posições muitas vezes diferentes e até divergente com relação à agenda de desafios que deverá ser enfrentada pelo novo governo brasileiro, e que sobretudo não a mesma “bússola utópica” que fosse capaz de harmonizar as divergências imediatas em nome de um sonho de futuro comum.

É de se prever um retorno do projeto de integração latino-americana que foi sempre apoiado pelos progressistas e descartado pelos conservadores de direita e de extrema-direita. O Brasil deverá aumentar sua participação e liderar uma reativação dos vários fóruns regionais como CELAC, UNASUL e MERCOSUL. Como já ficou comprovado no passado, até pela facilidade com que a direita os desativou, que esses fóruns são um instrumento importante de construção de consensos e de uma vontade coletiva comum. No entanto, eles padecem da falta de instrumentos eficazes para implementar políticas concretas, inclusive para impedir seu desmonte nos momentos de mudança de governo. Haverá que se repensar e redefinir o que realmente se pretende alcançar em cada um desses fóruns, fortalecendo um núcleo que assuma sua vanguarda e projeção internacional, onde deverão estar, sem dúvida, alguma, Brasil, Argentina e México.

Qual é a opinião do senhor sobre toda a pressão que a “entidade” mercado financeiro vem tentando fazer sobre o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, antes mesmo do início do seu governo, utilizando-se dos economistas e dos seus argumentos para justificar a necessidade do “equilíbrio fiscal” que quase sempre favorece os interesses do próprio mercado financeiro? E também, o que o senhor acha do recente debate entre esses economistas e o grupo dos desenvolvimentistas?

Esta é uma discussão muito antiga e recorrente. Eu quase diria que os argumentos são quase sempre os mesmos há muitos séculos, sem que jamais se possa chegar a um acordo, uma vez que não se trata de um debate acadêmico ou teórico. Trata-se de uma decisão prática que deve ser tomada em função das condições conjunturais. As mesmas políticas econômicas podem ter resultados completamente diferentes, em distintos momentos históricos, dependendo da posição hierárquica que seu país ocupe no sistema de poder internacional. E muitas vezes não há como conciliar, nem é possível montar um jogo de soma positiva, sendo necessário fazer escolhas em que haverá ganhadores e perdedores.

No Brasil, esse debate começou há muito tempo, já na segunda metade do século XIX, com a discussão entre os “metalistas” e os “papelistas”, e suas diferentes visões a respeito da “neutralidade da moeda”. Uma discussão que antecipa o debate brasileiro do século XX entre monetaristas, liberais e ortodoxos, e desenvolvimentistas, protecionistas ou keynesianos, que começa logo depois da II GM, entre Eugenio Gudin e Roberto Simonsen. E a ladainha é quase exatamente a mesma, desde então, de um lado e de outro. Vargas, inclusive, inaugurou uma solução prática para estimular a convivência entre estes dois grupos, que depois foi repetida por vários outros governos, colocando um “monetarista” ou “fiscalista ortodoxo” no Ministério da Fazenda, e um “desenvolvimentista” ou “keynesiano” na presidência do BB, e depois de sua criação, no Ministério de Planejamento.

Pode-se mesmo dizer que essa divergência é mais do que secular – é milenar. Apesar disso, parece que ninguém consegue aprender que este não é um debate acadêmico e não existem verdades absolutas em matéria de política econômica, porque qualquer decisão que seja tomada envolverá sempre uma arbitragem fundamentalmente política, e que tem que ser feita pelos governos em função de seus objetivos estratégicos e dos interesses que se proponham a defender ou priorizar. Para isso existem as eleições, para fazer escolhas muitas vezes dolorosas e dramáticas.

Basta dizer que o senhor Paulo Guedes “furou o tal do teto de gastos” (que é uma invenção absolutamente original e brasileira) em cerca de 400 bilhões de reais e ninguém protestou, nem na Av. Faria Lima, nem entre os economistas de plantão defensores do “bom senso fiscal”. Enquanto agora, com o simples anúncio de uma política social aprovada pelo povo brasileiro, já começou a gritaria dos “bons moços de Davos”. A respeito deste assunto, sempre conto para meus alunos uma história muito antiga e paradigmática: a disputa política entre o Imperador chinês Yung-Lo, que reinou entre 1403 e 1424, e seu ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi.

Yung-Lo foi um dos imperadores chineses com maior visão estratégica e expansionista de toda a história da China. Foi ele que concluiu as obras do Grande Canal comunicando o Mar da China e a antiga capital Nanquim, com a região mais pobre do norte do império, e decidiu construir uma nova capital, que veio a ser Pequim. Um gigantesco projeto “desenvolvimentista” que mobilizou e empregou, durante muitos anos, milhares de trabalhadores, artesãos, soldados e arquitetos. Além disso, Yung-Lo se propôs a estender a hegemonia chinesa – política, econômica e cultural – em todas as direções, através de todas as fronteiras territoriais da China, e também na direção dos Mares do Sul, do Oceano Indico, do Golfo Pérsico e da Costa Africana. Foi durante seu reinado que o Almirante Cheng Ho liderou seis grandes expedições navais que chegaram até a costa da África, no momento em que os portugueses estavam recém-chegando a Ceuta. Durante todo seu reinado, as políticas “desenvolvimentistas” e expansionistas do Imperador Yung-Lo enfrentaram a oposição declarada de uma parte do mandarinato e das elites chinesas lideradas pelo seu próprio ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, um crítico ferrenho do excesso de gastos do império e defensor implacável do “equilíbrio fiscal”. Por isso, o imperador Yung-Lo mandou prender seu ministro da Fazenda em 1421, mas morreu pouco depois, e o novo imperador, Chu Kao-Chih, recolocou no ministério das finanças o antigo ministro, que interrompeu todas as obras e expedições expansivas de Yung-Lo em nome do “corte de gastos” e da “responsabilidade fiscal”.

Foi assim que o Império Ming perdeu seu fôlego expansivo e fechou-se sobre si mesmo, caindo no isolamento quase total, durante quase quatro séculos. Como disse um historiador inglês, “para levar à frente naquele momento a estratégia expansionista de Yung-Lo, teria sido necessária uma sucessão de líderes com a sua mesma visão vigorosa e estratégica, a visão de um construtor de impérios que não teve seguidores.”3 (). Mas não foi o que aconteceu, e por isso não é inteiramente absurdo pensar que a China acabou atrasando em 500 anos seu projeto atual de projeção de influência e poder, graças à obsessão cega pelo “equilíbrio fiscal” do seu ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, um autêntico economista “ortodoxo” avant la lettre.

O mundo viu ascender nos últimos anos um movimento de extrema-direita muito forte, baseado em ideias conspiracionistas, que apela para as questões mais imediatistas da população e, principalmente, que utiliza informações falsas ou que distorcem a realidade. O fortalecimento desses grupos se deu especialmente através das plataformas digitais. Esses movimentos têm se consolidado, e por exemplo, Donald Trump pode tentar voltar ao poder nos EUA. Na sua perspectiva, que passos devem ser seguidos para esvaziar essa extrema-direita?

Você tem razão, trata-se de um verdadeiro tsunami que vem crescendo há pelo menos duas ou três décadas e que agora está alcançando um nível de mobilização e agressividade sem precedentes. Em grande medida, pelas razões que já mencionamos, das mudanças mundiais, do fracasso das promessas da globalização econômica e pela perda de sintonia das forças progressistas, e da social-democracia em particular, com o futuro das novas gerações, e dos “condenados da terra” em geral. É um movimento que vem explodindo em vários lugares e países, de distintas maneiras, mas com um grande denominador comum, profundamente reacionário, contra todas as forças consideradas representantes do “sistema” ou do “status quo” nacional e internacional. Esse impulso esteve presente nos EUA de Donald Trump, mas começou muito antes em Israel, passou pelo BREXIT, e está presente também na Rússia de Putin, como na Polônia, Hungria, Suécia, Itália etc. Aqui se encontra, aliás, mais uma razão da importância do que está se passando na América Latina, o único lugar do mundo onde o descontentamento e a fadiga social dominante no “mundo ocidental e cristão” esteja sendo capitalizada eleitoralmente pelas forças políticas de esquerda, centro-esquerda e progressistas em geral. Talvez até seja a razão porque estas figuras e militantes da extrema-direita mundial tenham escolhido a América Latina, e o México em particular, para realizar esta reunião imediatamente depois de sua derrota eleitoral no Brasil.

A Conferência Política de Ação Conservadora acaba de se reunir por dois dias no México, tutelada por Steve Bannon e reunindo líderes como Jose Kast, do Chile, Javier Milei, da Argentina, Santiago Abascal, da Espanha, e Eduardo Bolsonaro, do Brasil, e Eduardo Verástegui, do próprio México. Todos eles juntos com ativistas de todos os lados, católicos, antiabortistas, antifeministas e contrários aos direitos da população LGBT, além de serem todos evidentemente anticomunistas. Os principais oradores do encontro foram o próprio Steve Bannon e Lech Walesa, para que se possa avaliar a extensão da onda que deverá ser enfrentada na própria América Latina. Deverá ser uma batalha longa e inusitada, porque a própria esquerda latino-americana nunca combateu um inimigo desta natureza. Uma batalha política e ideológica, uma verdadeira guerra cultural entre a “modernidade iluminista”, ou alguns de seus herdeiros críticos, e esta “pós-modernidade medieval” obscurantista, religiosa, fanática e admiradora da violência.

Quase diria que a esquerda terá que reler e repensar a mensagem crítica de Paulo Freire, para inventar novos caminhos de mobilização, educação e conscientização coletiva, ou mesmo massiva. Por antigo que possa parecer, uma espécie de reinvenção dos antigos centros de cultura, conscientização e mobilização popular dos anos 60, incluindo agora as redes de comunicação instantâneas postas à disposição da pedagogia da liberdade. Talvez não seja sem razão o ódio que o nome de Paulo Freire provoca em mesmo entre figuras extremamente toscas e ignorantes, como se fosse uma reação quase instintiva frente a algo que os ameaça e assusta.

Notas

1 Elias, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, vol. 2, p. 134.

2 Fiori, J.L. “A inserção internacional do Brasil e da América do Sul”, publicado aqui.

3 The Cambridge History of China, 1988, vol. 7, p. 275

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