Por: Jonas | 03 Outubro 2013
Na avaliação de Aníbal Garzón Baeza, “existe uma partida de xadrez entre a união soberana da América Latina e os mandamentos do império com seus peões. Enquanto a Bolívia segue com seu papel estratégico integracionista latino-americano, e com sua ponte no comércio bilateral entre China e Brasil, o Chile, como peão, tenta romper esse projeto de unidade latino-americana e gerar incômodos para a Brics, em favor da OCDE, utilizando a Bolívia como inimiga por meio da negação de todo tipo de negociação na concessão marítima”. O artigo é publicado no sítio Rebelión, 01-10-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A América Latina está vivendo um momento essencial, a institucionalidade de sua integração regional. Apesar de se instalar vários projetos históricos no continente americano, em nível micro, como o Sistema de Integração Centro-Americano (SICA), a Comunidade Andina (CAN) ou o Mercado Comum do Sul (Mercosul), entre outros, apenas a Organização de Estados Americanos (OEA), fundada em 1948,ocupava-se de toda a região continental, embora Cuba tenha sido expulsa no dia 31 de janeiro de 1962, “na oitava reunião de consulta de ministros de relações exteriores da OEA”, após se declarar um estado socialista em 1961. Este foi um indicador que a OEA não era uma estrutura horizontal e democrática, mas que justamente foi criada no início da Guerra Fria por parte dos Estados Unidos para enfrentar o “fantasma do comunismo” e continuar com sua cena imperialista da “Doutrina Monroe” e “o Corolário 1904”, onde se confirma, neste último plano, que se um país americano ameaçava os direitos ou propriedades estadunidenses o próprio governo era obrigado a intervir.
A chegada à presidência venezuelana, em janeiro de 1999, do recém-falecido ex-presidente Hugo Rafael Chávez Frias deu um giro na relação assimétrica entre a América do Norte e América Latina. A tese histórica de Simón Bolívar a respeito da união latina dos estados iniciava-se quase 200 anos depois. O pragmático Chávez não buscava simplesmente uma microintegração de governos progressistas, como os de Equador, Cuba, Nicarágua ou o Estado Plurinacional da Bolívia, com a formação do organismo da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), mas a unificação de todos os estados da América Latina em favor da soberania de cada um deles para enfrentar a interferência dos Estados Unidos. No ano 2011, entrou para a história com a fundação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), organismo que paralelamente faz frente à crescente deslegitimação da OEA e dos Estados Unidos. Apesar de todos os estados latino-americanos e caribenhos se integrarem neste novo organismo regional, isto não quer dizer que todos os membros atuam politicamente numa mesma direção, em favor da integração contra as interferências dos Estados Unidos e, sobretudo, pela soberania nacional.
O giro permanente da República do Chile
O estado chileno é justamente um caso particular. Um caso que tem seu contexto histórico próprio. Em 1969, foi firmado entre Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Chile, o Acordo de Cartagena para fundar o Pacto Andino, que no presente trata-se da CAN. A função deste organismo interestatal era a de se unir para incentivar um desenvolvimento produtivo em cada nação, graças à livre circulação de mercadorias de origem andina num mercado pluriestatal e por sua vez ampliar as tarifas para os produtos externos, ou seja, em definitivo, constituir uma economia conjunta protecionista. Depois do golpe de estado do ditador Augusto Pinochet, há 40 anos, o caminho do Chile mudou de rumo. O regime militar de Pinochet tirou o Chile da CAN, em 1976, por uma principal incompatibilidade com o organismo, a soberania nacional.
O fascismo chileno não era inspirado no fascismo clássico europeu de Hitler, Mussolini ou Franco, no que se referia ao protecionismo autárquico econômico, mas, absolutamente ao contrário, à abertura de sua economia à liberalização internacional, mediante uma infinidade de privatizações que derrubavam todas as conquistas sociais conquistadas pelo ex-presidente Salvador Allende. Um modelo iluminado pela tese do ultraneoliberal norte-americano Milton Friedman, já que seus discípulos economistas, chamados “Chicago Boys”, assessoram o regime chileno.
No Chile, como jamais ocorreu um processo de transição política estrutural, com a implementação de uma nova Assembleia Constituinte após a derrota de Pinochet, no plebiscito nacional de 1988, o neoliberalismo continua em plena ação atualmente, atingindo a soberania nacional do país, em que pese à particularidade do atual governo de Sebastián Piñera. Precisamente o Presidente, nos muitos confrontos recentes, em razão do conflito da saída marítima da Bolívia – um conflito que se arrasta desde a Guerra do Pacífico, em 1879 –, como o caso dos três militares bolivianos retidos na cidade chilena de Iquique, no último mês de fevereiro, afirmou em direção ao primeiro mandatário boliviano que “o Chile não entregará soberania, nem território chileno para Bolívia”. Soberania nacional consiste em ter autonomia e poder independente num país, concretamente. Algo que Piñera tenta conjeturar sobre a Bolívia, mas ocultando com tal discurso as diretrizes às quais o Chile se submete, por parte de atores internacionais, ao governo dos Estados Unidos.
O vínculo entre Estados Unidos e Chile
A íntima relação entre Estados Unidos e Chile, nas últimas décadas, não foi oculta. O grande canal inicial foi a cooperação do estado norte-americano e de seu aparato de inteligência da CIA, com a implementação do golpe de estado de Pinochet contra o governo democrático socialista de Allende e toda a repressão desumanizada que isso acarretou. Além disso, os Estados Unidos estiveram aliados ao regime militar em sua luta contra todos os movimentos clandestinos de esquerda no Chile, e em toda América Latina, naquilo que se chamou de Operação Condor. Esta operação foi cofundada em Santiago de Chile, em 1975, por Manuel Contreras, chefe da Direção de Inteligência Nacional (DINA), em coordenação com as ditaduras militares do Uruguai, Paraguai, Brasil, Argentina e Bolívia.
Na atualidade, as condições mudaram, levando as Américas para uma democratização. Como destacamos no início, os Estados Unidos quer enfrentar a essa nova estratégia regionalista e soberana da América Latina, incentivada por Chávez, não somente pelo nascimento de governos de esquerdas com expectativas anticapitalistas, mas pelo crescimento de governos anti-neoliberais, progressistas e com um desenvolvimentismo nacional, como o caso das potências de Brasil, Argentina, que se uniram na IV Cúpula das Américas para dizer “Não” ao projeto assimétrico de livre mercado que os Estados Unidos desejavam implementar em todo o continente americano, a Área Livre de Comércio para as Américas (ALCA). Por isso, nada melhor do que utilizar seus satélites históricos, entre eles Chile, para enfrentarem o protecionismo.
De unipolar a multipolar
Atualmente, está em tensão o debate sobre a existência de um mundo unipolar, com a hegemonia dos Estados Unidos, ou a existência de um mundo multipolar com a presença de potências como China, Rússia, Brasil, entre outras. Parece que os Estados Unidos perderam hegemonia em seu principal e histórico quintal, a América Latina. Segundo um estudo da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), exatamente após a crise econômica financeira de 2008, as exportações da América Latina para China aumentaram 5%, ao passo que para os Estados Unidos e Europa caíram 26 e 28%, respectivamente. O crescimento econômico da China, de 8,7% em 2009, seguiu demandando matérias-primas para a posterior elaboração de seus produtos manufaturados, enquanto que a crise norte-americana e europeia reduzia esta demanda e, de maneira complementar, a América Latina iniciava a compra, por qualidade e preço, destes produtos manufaturados da China. Ou seja, projetava-se um novo processo de cooperação comercial direta entre América Latina e China. A América Latina, em inícios do século XXI, exportava 60% de sua produção para os Estados Unidos, aproximadamente 12% para Europa, e 1% para China, ao passo que 9 anos depois, em 2009, 38,6% para os Estados Unidos, 13,8% para Europa e 7,6% para China. E no caso das importações, os Estados Unidos passaram de 50% para 33,1%, a União Europeia de 13% para 14,7%, e China de quase zero, com cerca de 1%, para 9,5% em menos de 10 anos.
Um dos sujeitos essenciais nesta saliente cooperação sul-sul é o Brasil, um novo gigante internacional como economia emergente, passando a ser em finais de 2011 a sexta economia mundial, de acordo com o Centro de Pesquisas Econômicas e Negócios (CEBR, em inglês). O comércio entre China e Brasil cresceu profundamente nos últimos anos, por isso nasceu, entre outros, uma nova estrutura no regionalismo internacional que se chama Brics, que aglutina os principais países que apresentam um maior crescimento do PIB em nível mundial: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e que, ao mesmo tempo, não pertencem à entidade neoliberal liderada pelos Estados Unidos e Europa, que também é integrada pelo Chile: a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Atualmente, a China compra quase 20% do total das exportações do Brasil, principalmente matérias-primas. Em inícios do século XXI, não chegava nem a 2%. Do outro lado, o Brasil compra atualmente da China 30% do total do que importa em sua totalidade, sendo hoje em dia China e Brasil o corredor mais importante das transações globais.
O corredor bioceânico
De acordo com as condições continentais, China e Brasil não possuem uma boa conexão, efeito que complica e encarece seu comércio bilateral. E não somente por sua distância, mas pelas péssimas infraestruturas comunicativas terrestres que há na América do Sul para cruzar do Oceano Atlântico brasileiro à costa pacífica. Como primeira resposta, veio à luz o projeto do “Corredor Bioceânico de Capricórnio”, em 1992, para unir a cidade brasileira de Santos com a chilena de Antofagasta. Nesse momento, o Brasil já via o mercado asiático como uma meta essencial para seu crescimento econômico. Finalmente, o projeto deixou de ser uma ideia para ser um fato, paralelamente ao crescimento comercial constante de Brasil e China. Em 2007, o presidente brasileiro Lula, o boliviano Evo Morales e a mandatária chilena Michelle Bachelet, lançaram o plano tripartite para a construção das últimas distâncias do corredor e unir, finalmente, Santos com os portos de Arica e Iquique, atravessando Bolívia de um extremo a outro.
Apesar das históricas rivalidades entre Bolívia e Chile, a partir da Guerra do Pacífico (1879-1883), o reinício de negociações entre os dois estados, em 2006, com a chamada “Agenda dos 13 pontos”, onde se retomavam conversas sobre a saída para o mar da Bolívia, levou a institucionalizar uma relação bilateral ausente durante décadas. Além do fato de que não se avançará muito pragmaticamente na negociação, as pequenas conquistas de confiança obtidas se desvaneceram com a ruptura de relações entre os dois estados, em 2011, ocasião em que o Chile teve uma mudança de governo, da líder da Concertação, Bachelet, para o conservador e líder da Renovação Nacional, Sebastián Piñera.
O crescimento da tensão diplomática entre Chile e Bolívia fez com que, finalmente, por decisão de Evo Morales, o corredor bioceânico já não encerrasse seu destino nas costas chilenas de Tarapacá, mas no porto peruano de Ilo. O corredor aguarda ser inaugurado em São José de Chiquitos, num futuro próximo, departamento boliviano de Santa Cruz de la Sierra, com a presença de Evo Morales, a mandatária brasileira Dilma Rousseff e veremos se comparece o presidente peruano Ollanta Humala e a futura presidente que vencer as eleições chilenas no próximo mês de novembro.
A desintegração das Américas e as costas em Tarapacá
A região de Tarapacá, com sua capital Iquique, situada ao norte do Chile, é uma área que tem um elevado comércio histórico com os países fronteiriços Bolívia e Peru, principalmente pelas reexportações que se iniciaram em 1975 mediante a Zona Franca de Iquique. Tarapacá não somente tem como fonte de rendimentos as exportações de minério, principalmente, para países europeus, América do Norte ou estados asiáticos, mas também sendo ponte entre produtos asiáticos e latino-americanos. Segundo estatísticas de 2003, a região de Tarapacá exportou um total de mercadoria com valor de 1,9 bilhões de dólares, sendo 1,2 bilhão correspondente a exportações de produtos nacionais chilenos e 704 milhões correspondentes a envios para o exterior de produtos não produzidos no Chile, como, por exemplo, produtos da China para Bolívia. Os principais produtos exportados são cobre, farinha, óleo de peixe, iodo, veículos e sal, sendo 95% de exportações lideradas por 12 empresas mineiras e 2 de farinha.
No caso dos países vizinhos: Peru, Brasil, Bolívia, é muito diferente, caso sejam considerados apenas os produtos originários do Chile ou se incluam as reexportações de produtos estrangeiros comercializados pela zona franca. Precisamente as exportações diretas do Chile foram 4,3% de seu total para Bolívia, Peru e Brasil, mas das reexportações se considerou um total de 460,3 milhões, em 2003, ou seja, 65% de todas as vendas estrangeiras, sendo a Bolívia o principal mercado com 39,3%, principalmente pela compra de combustíveis e lubrificantes. Em definitivo, um mecanismo de comércio de grande relevância em Tarapacá são as reexportações do Chile para Bolívia, por meio do porto de Iquique como ponto intermediário transcontinental entre Ásia e América. As próprias instituições públicas locais de Iquique e as regionais de Tarapacá, além de sua população local, como mão de obra em comércio, logística ou transporte de mercadoria, entre outras, beneficiam-se deste mercado binacional fronteiriço. Um benefício que pode ser evaporado pelas posturas centralistas e transnacionais de Sebastián Piñera.
O último estreito do Corredor Binacional, que finalmente irá da Bolívia até o porto peruano de Ilo, e não para o de Iquique, não apenas afetará o comércio reexportador do Chile com a Bolívia, mediante a passagem de produtos asiáticos, mas também do Chile com o Brasil, o gigante latino-americano que estabiliza seu forte mercado com a China. A perda de benefícios econômicos que Tarapacá sofrerá será uma dura consequência que Piñera jogará sobre o povo local e, de um modo geral, para a economia chilena nacional, em benefício de uma postura política simplista vinculada à estratégia mundial dos Estados Unidos de impedir a integração latino-americana como soberania dos povos, comércio entre povos vizinhos, como o crescimento dos vínculos comerciais entre países do sul, como China ou Brasil, que formam a Brics, a frente contra a OCDE.
Por isso, enquanto Piñera prefere continuar em conflito com a Bolívia, de seu escritório em Santiago do Chile, rompendo a unidade regional latino-americana que tanto desfavorece os interesses de Washington, e utilizando palavras demagógicas em defesa da soberania do Chile, esquece-se de forma traiçoeira da verdadeira soberania do povo de Tarapacá em decidir o destino de seu desenvolvimento regional.
Do outro lado, como substituição e pressão deste fracionamento de Piñera na integração continental, a Bolívia fortaleceu os laços com o governo de Ollanta Humala para emigrar seu comércio do Chile para o Peru e pactuou bilateralmente para iniciar a construção de um caminho bioceânico em 2015. Previamente, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), onde a China ingressou como doadora, em inícios de 2009, outorgou um crédito de 6,4 milhões de dólares para realizar o estudo básico do trem bioceânico que criará as bases para sua licitação, medindo o impacto ambiental e as características técnicas. O projeto conectará a cidade peruana marítima de Porto Ilo com a boliviana oriental de Porto Suárez, com um custo aproximado de 2,5 bilhões de dólares.
Para além do debate histórico da saída para o mar da Bolívia, polêmica que não se deve deixar de lado na diplomacia, existe uma partida de xadrez entre a união soberana da América Latina e os mandamentos do império com seus peões. Enquanto a Bolívia segue com seu papel estratégico integracionista latino-americano, e com sua ponte no comércio bilateral entre China e Brasil, o Chile, como peão, tenta romper esse projeto de unidade latino-americana e gerar incômodos para a Brics, em favor da OCDE, utilizando a Bolívia como inimiga por meio da negação de todo tipo de negociação na concessão marítima. A estratégia insuficientemente soberana do governo de Piñera, em marcar fronteiras entre Bolívia e Chile por interesses transnacionais na nova multipolaridade, provoca, principalmente, ausência e sofrimento ao povo chileno de Tarapacá.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Estratégia contra a integração latino-americana e a soberania - Instituto Humanitas Unisinos - IHU