A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo: “As dificuldades continuam imensas, mas os avanços não deixam de acontecer”. Algumas análises

Membros da comunidade católica LGBTI+ lamentam o “silêncio” com que o Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé “foi recebido nos ambientes católicos brasileiros e latino-americanos”

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 11 Julho 2021

 

No dia 15 de março, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a resposta à pergunta dirigida pela Conferência Episcopal Alemã e pela maior organização católica leiga da Alemanha, a Zentralkomitee der deutschen Katholiken, sobre a possibilidade de abençoar as uniões civis de pessoas do mesmo sexo. A resposta do documento, chamado "Responsum", foi negativa e tem gerado debate, especialmente nas Igrejas europeias e norte-americanas.

 

Ao analisar o Responsum, a psicóloga Cris Serra destacou como "grande novidade do documento" não a resposta, mas a pergunta formulada pelas instituições alemãs. "A grande novidade desse documento é a pergunta. O fato de que a Congregação para a Doutrina da Fé tenha precisado responder a esta pergunta: a Igreja pode abençoar uniões entre pessoas do mesmo sexo? Eles terem de responder a essa pergunta fala muito sobre a mudança de mentalidade, a mudança de sensibilidade, no mundo e nos ambientes católicos, para a questão LGBTI+", avalia. Segundo ela, as reações da comunidade católica LGBTI+ ao documento também indicam um sinal de mudança no interior da própria Igreja. "Essa pergunta sobre as bênçãos aos casais de pessoas do mesmo sexo não é uma dúvida, é uma demanda. É um clamor", enfatiza na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.



Jeferson Batista, coordenador de comunicação da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, e Luis Rabello, coordenador do Diversidade Católica Campinas, em entrevista concedida por e-mail ao IHU, ressaltam que a pergunta apresentada à Congregação para a Doutrina da Fé evidencia as tensões dentro da Igreja em torno do tema. "Está claro que há movimentos internos da Igreja que buscam uma ação pastoral voltada para a promoção da cidadania LGBTI+, bem como ao acolhimento dos afetos das pessoas que buscam a Deus. Sendo assim, ainda que a resposta tenha sido bastante violenta para com as pessoas católicas com expressões de gênero e sexualidades dissidentes, o movimento de contrarresposta à Congregação para Doutrina da Fé em diferentes paróquias e dioceses pelo mundo, especialmente no contexto europeu, é bastante animador e um sinal claro que este tema tem caminhado de forma bastante positiva e dialogal nos ambientes católicos", pontuam.

 

A seguir, eles comentam o Responsum à luz do pontificado de Francisco e os desdobramentos do documento na Igreja brasileira.

 

Para refletir sobre os pressupostos que fundamentam a resposta negativa da Congregação para a Doutrina da Fé à bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo e também os pressupostos que fundamentam a visão da comunidade LGBTI+, neste mês o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu o evento "A Igreja e a União de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate", com a participação dos doutores em teologia Michael G. Lawler, Todd Salzman e Andrea Grillo. As palestras estão disponíveis abaixo e também podem ser acessadas aqui.

 

Cris Serra (Foto: Frame do vídeo do YoutTube)

Cris Serra é psicóloga, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, com pesquisa em gênero e religião. É autora de Viemos pra comungar: Os grupos de católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de permanência na Igreja (Rio de Janeiro: Metanoia Editora, 2019).

 

Jeferson Batista (Foto: Arquivo Pessoal)

Jeferson Batista é jornalista, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas, mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutorando na mesma área. É coordenador de comunicação da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.

 

Luis Rabello  (Foto: Arquivo Pessoal)

Luis Rabello é geógrafo, graduado pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, especialista em Gestão de Políticas Públicas, pela Fundação Perseu Abramo/Unicamp. É coordenador do Diversidade Católica Campinas.

 

Confira as entrevistas.

 

IHU On-Line - Como avalia o Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a possibilidade de abençoar as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo? Quais são os três pontos que destacaria e por quê?

Cris Serra - Esse documento foi recebido com muita indignação, porque, embora ele reafirme o que diz a doutrina católica – que é preciso respeitar e acolher as pessoas homossexuais (e é significativo que os textos da Igreja usem o termo “homossexuais” para se referir às pessoas LGBTI+ como um todo, porque já aí se vê a falta de escuta às nossas realidades diversas e de respeito pela maneira como nós nos identificamos), e evitar toda forma de discriminação injusta –, ele diz também que “a Igreja não pode abençoar o pecado”.

No fim das contas, é (1) um texto muito violento, por várias razões: primeiro, por seguir a linha da doutrina que considera as experiências das pessoas LGBTI+ nas suas relações afetivas, sexuais e amorosas, ruins por definição. Isso em si já é violento. E se torna mais violento ainda por nos ver desse modo sem nenhuma base na realidade, sem nenhum olhar, nenhuma escuta para quem nós somos de verdade, nas nossas vidas, nas nossas relações, nos nossos afetos, nos nossos amores, nos nossos prazeres, nas nossas experiências de fé e nos nossos testemunhos de vida cristã. O fundamento dessa doutrina é uma concepção de que a sexualidade humana só pode ser voltada única e exclusivamente para a reprodução. E, convenhamos, condenar toda e qualquer expressão de sexualidade humana que não seja voltada para a reprodução, sem levar em consideração o prazer, a alegria, a entrega, a confiança, o encontro, a potência e a sacralidade de tudo isso, é violento não só com as pessoas LGBTI+, mas com todas as pessoas humanas. E, por fim, esse documento corrobora e reforça toda a violência do silenciamento, da invisibilização, da culpabilização, da inferiorização, da exclusão, da hostilização e toda sorte de violências derivadas disso tudo que as pessoas LGBTI+ sofrem nas igrejas e nas suas famílias.

Mas, apesar de toda a indignação, (2) esse documento não é exatamente nenhuma surpresa. Ele reflete uma face da Igreja muito desconectada da vida concreta das pessoas e das comunidades, e muito voltada para si mesma, para a reprodução da doutrina pela doutrina, da lei pela lei, da lei que se justifica por si mesma e perdeu de vista o mandamento do amor, do acolhimento e do serviço. Isso não é nenhuma novidade – desde os tempos de Cristo. Cristo, aliás, foi condenado e morto justamente por se insurgir contra o legalismo vazio e o moralismo hipócrita dos doutores da Lei do seu tempo. Cristo foi morto justamente por denunciar que a Lei, sem amor, é letra morta. Então, desde os tempos de Cristo, desde sempre, não há nenhuma novidade na atitude que a Congregação para a Doutrina da Fé expressa neste documento.

 

 

O que vale a pena destacar, o que é, sim, a grande novidade desse documento, não é a resposta. A grande novidade desse documento é a pergunta. O fato de que a Congregação para a Doutrina da Fé tenha precisado responder a esta pergunta: a Igreja pode abençoar uniões entre pessoas do mesmo sexo? Eles terem de responder a essa pergunta fala muito sobre a mudança de mentalidade, a mudança de sensibilidade, no mundo e nos ambientes católicos, para a questão LGBTI+. E o quanto a doutrina católica sobre as pessoas LGBTI+, sobre sexualidade em geral, sobre matrimônio, está cada vez mais desconectada da vida das pessoas e faz cada vez menos sentido. Que a resposta tenha sido totalmente extemporânea, fora do tempo, e que esse descompasso e essa falta de sentido sejam muito evidentes para a maioria das pessoas católicas, não é novidade. Essa é a história da Igreja, desde Cristo: sempre mudando de baixo para cima. As transformações vêm das bases, do chão da vida. É no chão, na vida concreta das pessoas, nas margens, nas catacumbas, que o Espírito sopra mais alto, sopra mais livre, e se faz ouvir com mais clareza.

Por isso, na minha avaliação, (3) o mais importante nesse episódio não é a resposta contida no documento da Congregação para a Doutrina da Fé – mas, sim, a resposta ao documento. A resposta profética que vem varrendo a Igreja Católica desde que o documento foi divulgado: “Não. Está errado”. “Vocês estão errados.” “Não aceitamos não como resposta.”

 

 

Há uma dimensão profética na reação ao documento, nos dois sentidos da palavra "profetismo": primeiro, a denúncia do erro e da injustiça. Segundo, o anúncio da mudança. O episódio todo em torno desse documento é um sinal da mudança. Essa pergunta sobre as bênçãos aos casais de pessoas do mesmo sexo não é uma dúvida, é uma demanda. É um clamor. No mundo inteiro, não só pessoas católicas LGBTI+, mas também organizações e movimentos eclesiais, teólogas e teólogos, padres, freiras, cardeais, bispos, leigas e leigos estão, profeticamente, denunciando a injustiça desse documento e anunciando a mudança.

 

 

Jeferson Batista e Luis Rabello - Avaliamos o Responsum a partir do contexto da pergunta: está claro que há movimentos internos da Igreja que buscam uma ação pastoral voltada para a promoção da cidadania LGBTI+, bem como ao acolhimento dos afetos das pessoas que buscam a Deus. Sendo assim, ainda que a resposta tenha sido bastante violenta para com as pessoas católicas com expressões de gênero e sexualidades dissidentes, o movimento de contrarresposta à Congregação para Doutrina da Fé em diferentes paróquias e dioceses pelo mundo, especialmente no contexto europeu, é bastante animador e um sinal claro que este tema tem caminhado de forma bastante positiva e dialogal nos ambientes católicos.

 

 

Não podemos perder de vista que estamos vivenciando um momento histórico em que dois ou mais projetos de Igreja estão em disputa. O projeto dialogal e mais aberto, inaugurado pelo Papa Francisco e ao qual as pessoas católicas LGBTI+ acabam se filiando, é, sem dúvida, o que mais se aproxima dos valores evangélicos, que sempre devemos ter como centrais em nossa caminhada enquanto Igreja. De qualquer forma, o texto do documento, que reafirma a postura da Igreja presente no Catecismo da Igreja Católica, reconhece a existência das uniões de pessoas do mesmo sexo e as considera de segunda ou até mesmo de terceira classe, negando-lhes qualquer tipo de benção. Ora, a Igreja tem o direito de negar a benção a pessoas?

 

 

IHU On-Line - Como compreende o Responsum à luz do pontificado de Francisco?

Cris Serra - Todo o episódio em torno do documento deixa muito evidente as tensões e conflitos cada vez mais insustentáveis que vem atravessando o atual pontificado em torno das questões relacionadas a gênero e sexualidade.

Primeiro: na minha leitura pessoal, o papa deu alguns sinais de que não está inteiramente de acordo com esse documento da Congregação para a Doutrina da Fé; no entanto, sendo a Congregação para a Doutrina da Fé o órgão máximo da Igreja em assuntos doutrinais, seria extremamente delicado politicamente se ele simplesmente o repudiasse. Por exemplo: é muito significativo o ocorrido com o ativista gay chileno Juan Carlos Cruz, vítima de abusos sexuais dentro da Igreja quando criança, que o papa havia convidado para conversar no Vaticano em 2018 e para quem teria dito “Deus te fez assim e te ama assim, e o papa também”. Dias depois da divulgação do Responsum, Juan Carlos Cruz publicou uma crítica duríssima ao documento. Mesmo assim, menos de uma semana depois, o papa o nomeou para a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores – o que pode ser lido como uma indicação de apoio à posição por ele expressada.

 

 

Segundo, e, a meu ver, mais importante: o combate à chamada “ideologia de gênero” – essa denominação inventada em círculos católicos ultraconservadores para designar pejorativamente e bloquear toda e qualquer tentativa de debate e questionamento das normas sexuais e de gênero vigentes – vem há mais de duas décadas instalando e consolidando um clima opressor de caça às bruxas nos ambientes eclesiais. Embora essa cruzada moral antigênero seja ocasionalmente endossada por certas declarações do próprio Francisco, em última instância ela é incompatível com a atitude de abertura pastoral, diálogo e respeito ao diferente adotada explicitamente desde a primeira hora pelo papa em sua perspectiva eclesiológica. O paradoxo entre essas diferentes linhas de força concomitantes na Igreja Católica hoje, e as tensões daí decorrentes, aponta para os limites da abordagem doutrinal e pastoral da diversidade sexual e de gênero ainda claramente hegemônica, ainda que cada vez menos preponderante, na Igreja hoje.

 

Jeferson Batista e Luis Rabello – Como salientamos acima, sabemos que há disputas internas na cúria romana. Alguns cardeais não escondem o incômodo com gestos do Papa Francisco, principalmente quando são voltados às periferias existenciais, pois exigem uma Igreja em saída. Ao Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé, houve gestos muito sutis do papa, como falas no Angelus de 21 de março em que ele disse que os cristãos precisam ter uma vida que se doa no serviço, que toma sobre si o estilo de Deus: proximidade, compaixão, ternura e se doa no serviço”. Ainda nesta manifestação, o papa afirmou que “trata-se de plantar sementes de amor, não com palavras que voam para longe, mas com exemplos concretos, simples e corajosos; não com condenações teóricas, mas com gestos de amor”. Com isso, mais uma vez, ele reafirma seu projeto de Igreja. É claro que os documentos têm um peso, mas os gestos concretos do papa, também.

 

 

IHU On-Line - Como o Responsum está repercutindo entre os grupos católicos LGBT no país e na América Latina?

Cris Serra - Eu lembro quando, naquele começo de tarde de 15 março, uma segunda-feira, o meu WhatsApp começou a apitar feito um louco, e as mensagens começaram a se multiplicar nos grupos ligados aos coletivos da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT. O tom daquelas reações iniciais das pessoas era de espanto, de choque... e, principalmente, de dor. Atuo na construção desse movimento no Brasil há quase quinze anos. Nesse tempo, eu ouvi centenas de relatos de pessoas LGBTI+ dentro das igrejas, principalmente a católica. Ouvi incontáveis histórias de violência e sofrimento. E mesmo com essa experiência, foi muito duro para mim, naquela segunda-feira de março, ler os comentários das pessoas nos nossos grupos de WhatsApp, as expressões de sofrimento diante daquela notícia.

Face àquele primeiro impacto da notícia e à consternação generalizada nas nossas comunidades, eu e minhas companheiras e companheiros das equipes de coordenação da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT e da Rede Global de Católicos do Arco-íris (Global Network of Rainbow Catholics - GNRC) começamos a nos comunicar, a nos comunicar com membros e lideranças dos grupos no Brasil, no resto da América Latina e no Norte Global, e a organizar nossas reações – tanto no diálogo interno e acolhimento pastoral dos sentimentos que aquele documento provocou, quanto na elaboração de manifestações públicas de repúdio a esse documento extremamente violento.

 

 

É muito significativo que tenham se multiplicado entre nossas comunidades, em todo o mundo, eventos em que em algum momento nós nos abençoamos. Tem sido uma maneira de reafirmar, para nós mesmos, para nossa Igreja e especialmente para aqueles setores que nos atacam, que sabemos que temos o amor e as bênçãos de Deus e que nada, sobretudo nenhuma autoridade terrena – e principalmente não aquelas que se apropriam de uma lei vazia e sem amor, que não passa de letra morta – pode nos separar desse amor, nem nos privar dessa bênção.

Especialmente emblemática dessa reação foi a celebração de Pentecostes que realizamos online, com a participação de representantes de todos os grupos católicos LGBTI+ da América Latina. Foi muito forte, estávamos todas e todos muito mobilizados e emocionados com aquela celebração por meio da qual reiteramos nossa existência na Igreja e como Igreja e mais uma vez viemos refundar nossa comunidade de fé, reforçar os laços que nos unem em nosso trabalho pastoral em escala cada vez mais ampla e global e reafirmar nossa comunhão com Cristo e sua Igreja, como membros do Seu Corpo.

 

 

Jeferson Batista e Luis Rabello – A princípio, repercutiu com grande apreensão e desapontamento por parte de muitas pessoas, mas, em seguida, conversamos bastante sobre o assunto, ao mesmo tempo que assistimos a muitos gestos de padres e bispos pelo mundo, especialmente na Europa e EUA, que decidiram, publicamente, ignorar o conteúdo do Responsum e promover bênçãos coletivas a casais do mesmo sexo. Aqui no Brasil, diante de documentos oficiais, as pessoas católicas LGBTI+ oferecem uma teologia testemunhal muito potente e capaz de enfrentar a frieza de uma manifestação protocolar pontifícia. Ainda não vimos uma manifestação pública e coletiva de sacerdotes brasileiros ou latino-americanos favoráveis a bênçãos para casais de pessoas LGBTI+, como ocorreu no Norte Global. As realidades são diferentes, mas temos conhecimentos de muitas religiosas e religiosos que continuam firmes em seus apostolados com pessoas LGBTI+ católicas no cotidiano e na base da Igreja. É claro que existe um trabalho intenso em busca de transformações estruturais que passam, por exemplo, pelos documentos da Igreja.

 

 

IHU On-Line - Quais são os possíveis impactos pastorais do Responsum, especialmente no Brasil?

Cris Serra - Foi escandaloso o silêncio com que esse documento foi recebido nos ambientes católicos brasileiros e latino-americanos, e muito contrastante com sua repercussão negativa e muito explícita em contexto norte-americano e europeu, por exemplo – tanto entre leigos e leigas quanto entre clérigos, inclusive da alta hierarquia. Para compreender esse contraste é preciso considerar a situação da Igreja no Brasil e na América Latina neste momento, em termos da cruzada moral antigênero e do clima de caça às bruxas por ela instaurada, como mencionei acima. O debate de questões relacionadas à sexualidade e gênero está, em grande medida, silenciado em nossa região, o que aponta para uma forma autoritária e moralista de ser Igreja que precisa ser denunciada e combatida se queremos construir, ao contrário, uma Igreja verdadeiramente “em saída”, de “portas abertas”, “com cheiro de ovelha”, como conclama o Papa Francisco, efetivamente sinodal e aberta ao diálogo e pautada pelo respeito às diferenças. Num contexto em que há espaço para o diálogo e o dissenso, há condições e maturidade da Igreja para manifestações como a iniciativa “O Amor Vence”, organizada por paróquias na Alemanha. Num contexto de silenciamento, a tendência será esse documento ser usado para justificar mais invisibilização da presença das pessoas LGBTI+ na Igreja e ainda menos possibilidades de escuta e uma atenção pastoral centrada no acolhimento e fundamentada no respeito à nossa dignidade humana.

 

 

Por outro lado, não pode passar despercebido o significativo gesto de D. Sergio da Rocha, que atendeu, como cardeal arcebispo de Salvador e bispo primaz do Brasil, a demanda de duas organizações de defesa dos direitos humanos e celebrou uma missa em memória das vítimas da LGBTIfobia. É notável que D. Sergio tenha se proposto a marcar essa posição, a propósito do dia mundial e nacional de combate à LGBTfobia (17 de maio), dez dias depois de o movimento das paróquias alemãs oferecer bênçãos a casais do mesmo sexo, em frontal desacordo com a Congregação para a Doutrina da Fé. D. Sergio foi explícito em sua fala como raras vezes são as autoridades da Igreja na América Latina. Logo na sua primeira frase usou a sigla "LGBTI+" para se referir a nós – o que é muito, numa Igreja que ainda insiste em usar "homossexuais" como termo guarda-chuva para abarcar toda a diversidade sexual e de gênero. Ao falar "LGBTI+", ele se recusa a compactuar e reproduzir esse apagamento das pessoas que somos e essa recusa da Igreja a nos ouvir e reconhecer como legítima a nossa experiência de nós mesmos e o que nós temos a dizer a nosso próprio respeito. É inegável a importância de uma autoridade como D. Sergio fazer uma homilia afirmando que o amor cristão não pode conhecer fronteiras e não pode excluir ninguém, e fazendo uma crítica tão explícita da própria Igreja não só por silenciar acerca das violências sofridas pelas pessoas LGBTI+, mas também por contribuir para perpetuá-las. Foi um gesto isolado, mas vindo de uma autoridade na posição dele não só tem um considerável impacto simbólico como não deixa de ser para nós um sinal de esperança, um indício de que há vozes e atitudes dissonantes agindo sob o silêncio que tem preponderado por aqui.

 

 

Jeferson Batista e Luis Rabello – Ao contrário do que ocorreu nos EUA e em alguns países da Europa, não houve manifestações públicas por parte do clero, no Brasil, ao menos de forma explícita. Apesar disso, sabemos que há movimentações, nos bastidores, de alguns padres se debruçarem sobre a questão a fim de se promover um acolhimento das pessoas LGBTI+. Mas, do ponto de vista pastoral, acreditamos que nada mudou. As dificuldades continuam imensas, mas os avanços não deixam de acontecer. Vale registrar, por exemplo, a missa celebrada pelo arcebispo primaz do Brasil, o Cardeal Sérgio da Rocha, em Salvador, em sufrágio das vidas de pessoas transgênero assassinadas. É um sinal importante de diálogo no Brasil ocorrido depois da manifestação da Congregação. Especificamente sobre as bênçãos, temos acompanhado um movimento muito bonito no Brasil de pessoas católicas LGBTI+ abençoando casais do mesmo sexo. Um gesto extremamente legítimo e cristão que não vai deixar de acontecer por conta de um documento. É interessante ver como as pessoas católicas LGBTI+ organizadas no Brasil, a partir de um lugar marginal na Igreja e na sociedade, conseguem propor soluções criativas às adversidades que chegam. Como cristãos, acreditamos que estamos diante do sopro do Espírito Santo.

 

Imagem: Capa dos Cadernos Teologia Pública número 153, de Todd Salzman e Michael G. Lawler.

 

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