15 Novembro 2020
"Há duas populações perdidas no deserto católico, as pessoas intersexo e LGBT. Já passou da hora de a Igreja ir em busca delas e encontrá-las, para criar mais alegria no céu por tantos que estavam perdidos e foram encontrados", escrevem Michael G. Lawler e Todd A. Salzman, teólogos estadunidenses, ambos professores do Departamento de Teologia da Universidade de Creighton, nos EUA, e também ambos autores do livro “A pessoa sexual: por uma antropologia católica renovada” (Editora Unisinos, 2012), em artigo publicado na revista The Furrow, de novembro de 2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Lawler é doutor em Teologia Sistemática pelo Aquinas Institute of Theology, em Saint Louis, e professor emérito da cátedra Amelia and Emil Graff em Teologia Católica da Creighton University, nos EUA. Salzman é doutor em teologia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e sucessor de Lawler na cátedra Graff.
Quando os fariseus lamentaram que Jesus recebia os pecadores e comia com eles, ele lhes contou esta parábola: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no deserto para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la? E quando a encontra, com muita alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne amigos e vizinhos, para dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha que estava perdida’” (Lucas 15,3-6).
A lição que Jesus tira da parábola é de que “haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (v. 7). Ele interpreta a ovelha perdida como um pecador. Nós perguntamos se é possível que uma pessoa justa seja uma ovelha perdida no deserto católico, e a resposta é de que isso não apenas é possível, mas também ocorre de fato no caso das pessoas intersexo e LGBT.
Uma análise da literatura médica revela que dois em cada 1.000 nascidos vivos (0,2%) são crianças cujos sistemas genéticos e hormonais internos e cuja estrutura genital externa não se encaixam no binarismo feminino-masculino tradicionalmente aceito. Externamente, seus genitais podem ser ambiguamente feminino ou masculino, ou, internamente, eles podem ter um mosaico genético de cromossomos masculinos e femininos. Essas crianças são intersexo. O índice de 0,2% é uma frequência pequena, e é fácil que esse pequeno número de pessoas se percam no binarismo feminino-masculino dominante. Essas almas perdidas estão clamando no deserto social e católico para serem encontradas. Corpos intersexo são problemáticos para os pais, a sociedade e a Igreja porque são julgados como sexualmente ambíguos quando comparados com o binarismo dos dois sexos dominantes. Eles não seriam ambíguos e problemáticos se a sociedade e a Igreja ouvissem seu clamor de que eles constituem um terceiro sexo minoritário.
No dia 2 de fevereiro de 2019, a Congregação vaticana para a Educação Católica publicou um documento, “Homem e mulher os criou. Para uma via de diálogo sobre a questão gender na educação” [disponível em português aqui]. A principal característica do caminho de diálogo apresentado no documento é descrito como “escuta”, mas, como um esforço de escuta a todos os envolvidos nas questões de sexo, gênero e intersexo, o documento é seriamente falho. Há escuta nele, mas apenas aos antecessores papais e seu inquestionável binarismo feminino-masculino. Não há escuta das próprias pessoas intersexo ou dos proponentes do seu cuidado. O termo “intersexo”, de fato, é mencionado apenas entre aspas [na versão em inglês, no número 25. Em português, usa-se a expressão “intersexualidade”, sem aspas], como se não houvesse uma população real com experiências reais e dolorosas, mas apenas uma população com uma aberração biológica a ser resolvida.
O problema real a ser resolvido, é claro, não é um problema de aberração intersexo, mas sim de encontrar um marco concordado para além da aceitação do já aceito binarismo feminino-masculino para falar sobre todas as pessoas humanas e os sentidos sociais e teológicos de seus corpos. Nos documentos e na ética da Igreja, as pessoas intersexo estão perdidas no deserto sexual católico. Neste artigo, levantamos nossas vozes para que elas possam se encontrar na sociedade e na Igreja, e para que possa ser descontinuada a intervenção terapêutica recomendada no documento “Homem e mulher os criou” para estabelecer sua “identidade constitutiva”.
Em seu crédito, há muitas Igrejas cristãs que encontraram as pessoas intersexo, que as afirmaram e que as acolheram, mas as Igrejas católica e evangélica conservadoras ainda se sentem tentadas a seguir os passos dos médicos vitorianos, que, para assegurar o binarismo feminino-masculino tradicional, buscavam “corrigir” cirurgicamente aquilo que eles percebiam como uma ambiguidade sexual intersexo.
Essa abordagem marginaliza as pessoas intersexo e causa seu banimento, levando-as a se perderem no deserto religioso. Nós rejeitamos qualquer procedimento médico sobre as crianças intersexo mais preocupado em sustentar normas sexuais sociais e eclesiais conservadoras do que em respeitar a dignidade, a integridade e a atuação das pessoas intersexo perdidas. Pais, pessoal médico e Igrejas devem aprender a esperar até que as pessoas intersexo possam tomar suas próprias decisões sobre seus próprios corpos e expressões corporais e a se abster de qualquer pressuposição de que elas são incapazes de fazer isso de forma responsável.
A “ambiguidade” biológica dos corpos intersexo, externa e internamente, dificulta atribuir um gênero/sexo particular a uma pessoa intersexo por meio de uma intervenção médica, razão pela qual as ciências sociais contemporâneas reconheceram que o gênero é determinado tanto biológica quanto culturalmente pela genética, pelos hormônios, pela química cerebral e pela experiência da criação.
O gênero/sexo de uma criança não pode ser determinado por um médico na infância, por meio, como sugere o documento “Homem e mulher os criou”, de algum procedimento terapêutico apropriado. O gênero/sexo pode ser discernido por todas as pessoas, inclusive pelas pessoas intersexo, apenas à medida que elas crescem em experiência, conhecimento e compreensão de si mesmas e de seus corpos na vida na qual estão imersos. A ciência em torno do sexo, do gênero e do intersexo desafia a simples afirmação do documento “Homem e mulher os criou” sobre a capacidade de determinar a “identidade constitutiva” de um indivíduo simplesmente determinando seu sexo biológico.
Muita ênfase foi e continua sendo dada à diferença biológica na sociedade e na Igreja para subordinar o feminino ao masculino. Entendido como um projeto cultural e ético, o gênero/sexo implica a humanização social das diferenças e capacidades biológicas, e essa humanização social ocorre tanto na sociedade quanto na Igreja pela desconstrução e reconstrução dos papéis, hierarquias e normas sexuais tradicionais.
A montanha de testemunhos de adultos que foram cirurgicamente “corrigidos” na infância deixa claro que, na opinião deles, sua “correção” prejudicou em vez de elevar seu florescimento humano. Médicos e ministros da Igreja seriam mais bem empregados na educação dos pais a aceitarem a diferença corporal de seus filhos intersexuais, pelo menos até que os filhos cheguem a uma idade em que podem fazer suas próprias escolhas, em vez de tratarem o corpo do recém-nascido como “ambíguo” e necessitado de “correção” cirúrgica.
As pessoas intersexo, não menos do que qualquer outra pessoa, são criadas à misteriosa imagem e semelhança de Deus. Se são criadas por Deus iguais a todas as outras criaturas humanas, perguntamos nós, por que elas são uma ameaça à Igreja Católica e estão perdidas nela? Por causa, respondemos nós, da inquestionável aderência da Igreja ao binarismo sexual feminino-masculino estatisticamente dominante.
Uma pessoa famosa sexualmente “corrigida” pode servir de exemplo. Selwyn Gross nasceu como pessoa intersexo de pais judeus na África do Sul em 1953 e, embora tenha nascido com “genitais ambíguos”, foi-lhe designado um gênero/sexo masculino. Gross sempre soube que era diferente e, na puberdade, quando seu impulso sexual nunca se desenvolvia, ele decidiu que era apenas um celibatário natural. Essa decisão o levou a ser batizado na Igreja Católica, que valoriza o celibato, e a se mudar para Oxford, onde ele se juntou à Ordem Dominicana e, no fim, foi ordenado padre em 1987.
Ele lecionou teologia moral no Dominican College em Oxford e em outras faculdades de Oxford e, no início dos anos 1990, voltou à África do Sul, onde continuou lecionando e onde, relata ele, finalmente também teve tempo para levar em consideração as tensões em sua vida.
“Havia duas áreas de tensão: a questão da minha identidade judaico-cristã e a questão da corporeidade e do gênero, embora eu achasse que esta era secundária.”
Na África do Sul, Gross encontrou um conselheiro competente que o ajudou a reconhecer que ele estava no gênero/sexo errado e devia levar em consideração uma mudança de gênero/sexo.
Foi concedido ao Pe. Gross um ano de licença e de ausência dos dominicanos para levar em consideração uma mudança de gênero/sexo e, na forma autoritária estabelecida pela Igreja Católica, ele foi proibido de falar sobre a sua condição a seus pais, seus irmãos dominicanos e a seus amigos. Também lhe foi injustamente negado qualquer apoio material ou moral.
Quando seus superiores dominicanos ouviram falar de sua condição congênita e da possibilidade de uma mudança de gênero/sexo, eles o trataram como uma ameaça à Ordem e à Igreja, e recomendaram que ele fosse destituído do sacerdócio. Um rescrito vaticano, então, o destituiu do sacerdócio e o “reduziu” ao estado laical. Gross, então, optou por uma redesignação de gênero/sexo e se tornou Sally Gross e uma ativista das questões intersexo.
Uma “conhecida cristã teologicamente sofisticada, mas fundamentalista” disse a Sally que, com base em Gênesis 1,27, “uma pessoa intersexo como eu não satisfaz o critério bíblico de humanidade” e também é “congenitamente imbatizável”. Baseando-se em sua educação judaica e católica, Sally confessa ter achado esse comentário “um tanto cômico” e, de fato, ignorante, já que a tradição rabínica sugere que o ser humano original era hermafrodita antes de Yahweh remover a mulher do lado do homem, e que tanto Abraão quanto Sara eram considerados hermafroditas. Sua formação bíblica católica forçava ela a confessar que essas tradições “talvez sejam uma insignificância rebuscada e pitoresca”, mas, mesmo assim, demonstram que aqueles que prezam os antigos textos bíblicos hebraicos leem nos textos, “com equanimidade, a possibilidade de que personagens bíblicos de liderança e reverência eram intersexo”.
Sally conclui, com legítima fundamentação teológica, “eu sou uma criatura de Deus. Fui criada, e as pessoas intersexo são criadas, não menos do que qualquer outra pessoa, à imagem e semelhança de Deus”. Criadas por Deus iguais a qualquer outra criatura humana, sim, mas, mesmo assim, são cruelmente ovelhas perdidas e uma ameaça para a Igreja Católica e para o seu inquestionável binarismo feminino-masculino.
Em 2004, a psiquiatra sueca Cecilia Dhejne publicou um relatório sobre um estudo de 30 anos realizado com indivíduos intersexo que haviam feito cirurgias de redesignação sexual. Seu relatório revelou a assustadora estatística de que a taxa de suicídio deles é 20 vezes maior do que a de um grupo de pares comparável. Houve inúmeros relatos de rejeição da redesignação de gênero/sexo, levando a um apelo por um novo protocolo de tratamento que envolva o adiamento da “correção” cirúrgica até que a criança tenha chegado à idade do consentimento, esteja na posse de todos os dados relevantes, incluindo os riscos e os resultados históricos, e possa fazer a sua própria escolha. À medida que uma criança intersexo cresce, deve ser fornecido a ela um aconselhamento adequado à idade.
O apelo por um novo protocolo ganhou um crescente apoio entre pais, médicos e eticistas católicos, e nós somamos as nossas vozes em apoio. Chegou a hora – e talvez já passou – de que a Congregação para a Educação Católica e o Magistério católico escute esse apelo para que os católicos intersexo justos que estão atualmente perdidos em um deserto eclesial possam ser encontrados, provocando a mesma alegria no céu de quando um único pecador que estava perdido é encontrado.
Existem outras pessoas, mais conhecidas do que as pessoas intersexo e provavelmente perdidas de uma forma mais dolorosa no deserto católico por causa disso, a saber, as pessoas LGBT. Assim como o ensinamento cultural de que os homens são poderosos e de que as mulheres são fracas e submissas cria e legitima a violência sexual contra as mulheres, assim também o ensinamento da Congregação para a Doutrina da Fé de que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados e não podem, em hipótese nenhuma, receber qualquer aprovação” cria e legitima a violência sexual contra os homossexuais.
Tal ensinamento sugere a pessoas literais que o fato de ser homossexual é um desvio tão grande do binarismo heterossexual feminino-masculino a ponto de gays e lésbicas serem menos do que totalmente humanos, e, portanto, a violência física e emocional pode ser cometida contra eles sem qualquer falha moral. A Igreja Católica apoia essa abordagem imoral no seu ensinamento sobre a “justa discriminação”.
Os bispos católicos dos Estados Unidos, por exemplo, em suas “Questions and Answers about the Employment Non-Discrimination Act”, aprovam essa “justa discriminação”. Eles fazem uma menção superficial ao ensino social católico de que cada pessoa possui uma dignidade humana inata que deve ser respeitada por todas as outras pessoas e suas leis, mas, depois, rapidamente rebaixa esse ensinamento por meio de uma linguagem que alimenta o medo de que a legislação não discriminatória promove o comportamento homossexual imoral e ameaça a liberdade religiosa de quem se opõe a ele.
Eles enfatizam que os direitos humanos de cada pessoa devem ser protegidos e, depois, minam essa ênfase ao insistir que isso deve ser feito “sem violar a liberdade religiosa de pessoas e instituições”. A liberdade religiosa que os bispos afirmam estar defendendo é uma liberdade que ninguém desfruta, a liberdade de provocar violência física, emocional e econômica contra outros seres humanos igualmente criados pelo Deus em que eles afirmam crer. É uma liberdade tão espúria e pecaminosa quanto outras liberdades que a Igreja defendeu e apenas lentamente corrigiu; a liberdade de acreditar que os povos indígenas não são totalmente humanos, que a escravidão não é imoral, que a liberdade religiosa não é um direito humano universal.
Os resultados devastadores dessa “justa discriminação” são generalizados. Em 2016, o Human Rights Rights Watch documentou um assédio verbal e físico generalizado dos estudantes LGBT nas escolas e a tolerância por parte de professores a relação a tal discriminação e assédio, porque eles veem isso como um comportamento normal. O jesuíta James Martin relata a mesma situação nas escolas católicas.
O que agrava a violência que os estudantes LGBT experimentam na escola é a violência que eles experimentam em casa por parte de pais que buscam intimidá-los para o binarismo sexual feminino-masculino culturalmente aceito e bani-los de suas casas quando esse esforço se mostra infrutífero. O banimento de suas casas para as ruas deixa as pessoas LGBT desabrigadas, tornando-as os principais candidatos para a violência que lemos nas notícias.
O comportamento em relação às pessoas LGBT não é melhor na Igreja.
Demissões por parte da Igreja de empregados gays e lésbicas em relacionamentos públicos e de empregadas solteiras e grávidas são bem publicizadas, embora os empregados que regularmente violam outros ensinamentos da Igreja ficam intocados.
Um estudo de 2014 sobre os 12 países com as maiores populações católicas do mundo revelou que 78% dos católicos em todo o mundo aprovam e praticam a contracepção artificial em oposição ao ensinamento da Igreja. Muitos desses 78% são empregados pela Igreja Católica e são deixados em segurança em seus empregos católicos.
Essas estatísticas e uma onda de outras que nós não temos espaço para analisar aqui demonstram como as crenças dos católicos comuns divergem das crenças da sua Igreja.
Há uma clara necessidade, sugerimos nós, de uma reavaliação do papel da Igreja na definição da dignidade humana de todas as mulheres e homens e no discernimento de como essa definição deveria influenciar a sua busca da dignidade humana e do bem comum em uma sociedade pluralista. Essa reavaliação seria um primeiro passo para encontrar as pessoas LGBT justas perdidas no deserto católico.
O documento “Persona humana”, da Congregação para a Doutrina da Fé [disponível em português aqui], faz uma distinção entre os homossexuais cuja condição é transitória e os “homossexuais que são tais definitivamente”. “Tais definitivamente” implica a mesma realidade implicada pelo termo “natureza humana”. A natureza humana, argumentamos nós, é uma realidade que sempre precisa de interpretação, e pode haver diferentes interpretações culturais de como ela deve ser entendida.
Ainda no século XIII, Tomás de Aquino ensinou que a lei natural “nada mais é do que a luz do entendimento colocada em nós por Deus”. Ele argumentava que, embora os preceitos da lei natural sejam universais e imutáveis, a sua aplicação varia de acordo com as circunstâncias das vidas reais das pessoas.
A nossa abordagem ao significado da natureza humana segue essa direção racional mapeada por Aquino. “O oleiro, e não o vaso”, ressalta Alfred North Whitehead sabiamente, “é responsável pela forma do vaso”.
O nosso entendimento da natureza humana reconhece a orientação sexual como uma das suas características intrínsecas. O que qualifica como “natural” a atividade sexual, portanto, depende se a orientação sexual de uma pessoa é homossexual, heterossexual ou bissexual. Os atos homossexuais são naturais, e não desordenados, para pessoas com orientação homossexual. Os atos heterossexuais são naturais para pessoas com orientação heterossexual. Eles são naturais porque fluem da natureza da pessoa do modo como ela é entendida por seres humanos racionais.
Estamos defendendo aqui apenas que os atos homossexuais são naturais para aqueles com uma orientação homossexual, e não que eles são morais por serem naturais. Para serem morais, todos os atos sexuais, homossexuais ou heterossexuais, devem ser não apenas naturais, mas também livres, mútuos, justos e amorosos.
Os cristãos apelam para a Bíblia, que eles acreditam ser a palavra de Deus, para fundamentais suas afirmações teológicas e morais. Em 1943, o Papa Pio XII introduziu no ensino católico oficial a afirmação de que o mais importante esforço de todo intérprete da Bíblia deve ser discernir claramente o sentido literal das palavras bíblicas. Para saber esse sentido literal, explicou ele, “o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente e, com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas” [Divino Afflante Spiritu, n. 20].
Pio XII iniciou oficialmente uma abordagem historicamente consciente para ler da Bíblia, e o Concílio Vaticano II a canonizou. O leitor da Bíblia, ensinou o Concílio, deve buscar “o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo-se dos gêneros literários então usados” (Dei Verbum, n. 12). Compreender as palavras bíblicas requer um conhecimento das condições sociais características do ambiente em que a Bíblia tomou forma.
A Congregação para a Doutrina da Fé confessa que “tais dificuldades derivam do condicionamento histórico que incide sobre a expressão da Revelação” [declaração Mysterium Ecclesiae]; ela sabe claramente que os textos bíblicos são historicamente condicionados. Por que, então, perguntamos nós, ela ignora esse condicionamento histórico quando lida com a Bíblia e os atos entre pessoas do mesmo sexo?
O documento Persona humana ensina que, na Sagrada Escritura, as relações homossexuais “são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência triste de uma rejeição de Deus”. Isso leva-a ao julgamento de que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados e que eles não podem, em hipótese nenhuma, receber qualquer aprovação”.
Um documento posterior, “O problema da homossexualidade” [disponível em português aqui], ensina que a doutrina da Igreja sobre os atos homossexuais se baseia “no sólido fundamento de um testemunho bíblico constante” e lista os textos em que esse sólido fundamento se sustenta: Gn 19,1-11; Lv 18,22 e 20,13; Rm 1,26-7; 1Cor 6,9; 1Tm 1,10.
Nós oferecemos em outros lugares uma exegese historicamente consciente completa sobre esses textos, buscando seus significados literais, e não vamos repetir essa extensa exegese aqui (Salzman e Lawler, "A pessoa sexual", pp. 215-226) [1].
A missão de Jesus no mundo era e é a de buscar a alma perdida, pecadora ou justa, até a encontrar (Lucas 19,1). A missão da Igreja Católica, que afirma ser seu corpo, não pode ser diferente. Este artigo procurou mostrar que há duas populações justas perdidas no deserto católico, as pessoas intersexo e LGBT, e argumentou que já passou da hora de a Igreja ir em busca delas e encontrá-las, para criar mais alegria no céu por tantos que estavam perdidos e foram encontrados.
A simples exigência para que elas sejam encontradas é que a Igreja abandone a sua mentalidade de bunker medieval e comece a ouvir não apenas as pessoas intersexo e LGBT, mas também o seu próprio ensino social sobre a dignidade de todas as mulheres e homens criados igualmente pelo único Deus.
[1] Veja-se, em particular, o nosso artigo em The Furrow, de fevereiro de 2020, intitulado “The Catholic Church and Homossexuality”.
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Ovelhas perdidas, almas perdidas. Artigo de Michael G. Lawler e Todd A. Salzman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU