O governo federal quer “tolher” as experiências autônomas de escolha das comunidades indígenas, diz o antropólogo
Os dados apresentados no estudo “Não São Números, São Vidas! A ameaça da covid-19 aos povos indígenas da Amazônia brasileira”, realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - Coiab e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia - Ipam, revelam a violação dos direitos humanos e territoriais das comunidades indígenas e como elas são diretamente afetadas pelas atividades ilegais que ocorrem na Amazônia. Além de sofrerem inúmeras violações por causa do desmatamento, do garimpo e da grilagem, as comunidades também estão mais expostas a “problemas respiratórios durante o período de queimadas na Amazônia, devido à poluição provocada por fumaça decorrente do fogo ligado ao desmatamento. Como se não bastasse, falta atendimento médico rápido e a Secretaria Especial de Saúde Indígena - Sesai não registra nem os casos de indígenas infectados residentes em cidades, nem os casos sem diagnóstico – subnotificação esta que torna os indígenas ainda mais vulneráveis, pois pode enviesar estratégias de enfrentamento da doença”, relata Henyo Trindade Barretto Filho à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o pesquisador critica o favorecimento da economia neoextrativista na Amazônia, que tem sido amplamente defendida pelo governo federal, e defende a valorização das experiências já existentes na região, baseadas no exercício de autonomia e de escolha dos povos tradicionais. “O atual governo opera um desbloqueio absoluto desses vetores por meio de medidas e posicionamentos públicos. (...). Tudo isso tem transmitido a sensação generalizada de que o governo ‘liberou geral’”, adverte. Entre as consequências práticas do discurso presidencial, o antropólogo menciona o aumento da “invasão sistemática a áreas protegidas e terras indígenas na Amazônia (Uru-Eu-Wau-Wau, Karipuna, Xipaya, Arara, Awa Guajá) logo no primeiro mês de governo; a retomada da invasão da Terra Indígena Yanomami por garimpeiros, em patamares similares a 1992; a explosão da taxa de desmatamento e dos focos de queimadas; e a intensificação da grilagem de terras, da mineração clandestina em larga escala e da exploração madeireira predatória, com a criminalidade que costuma acompanhá-las”.
Henyo Trindade Barretto Filho (Foto: UFG)
Henyo Trindade Barretto Filho é graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas - Ufam e atualmente leciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília - UnB.
IHU On-Line – Nos últimos anos aumentaram os estudos sobre questões relativas às comunidades indígenas, quilombolas e povos tradicionais. A que o senhor atribui esse crescimento e por que é importante estudar e preservar a cultura dessas comunidades?
Henyo Trindade Barretto Filho - Para uma pessoa com formação em Antropologia, como eu, isso não é uma tendência dos últimos anos, mas uma orientação disciplinar e profissional. É o nosso métier, o nosso ofício: estudar coletivos humanos distintos e diferentes entre si. Se você estiver se referindo a outras disciplinas que não a Antropologia e se, de fato, há essa expansão de interesses por povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, talvez se possa atribuir isso a um renovado interesse pelos regimes de conhecimento e as formas de viver desses coletivos, naquilo em que estes regimes e formas parecem representar soluções civilizatórias para dilemas que nós – que nos reconhecemos como “ocidentais” – estejamos enfrentando hoje: catástrofes, crises e apocalipses ecológicos e humanitários variados e de diferentes escalas. Esses povos e comunidades sobreviveram a vários destes. Como já sugeriu o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, alguns povos indígenas são como “especialistas em fim do mundo”, porque muitos experimentam (ou já experimentaram) a destruição dos seus próprios mundos.
IHU On-Line - Algumas pesquisas tratam os indígenas e os “brancos” como antagonistas. É possível modificar essa relação? Como a inter-relação e a troca entre as diferentes culturas pode ser positiva tanto para as partes envolvidas, quanto para a sociedade como um todo?
Henyo Trindade Barretto Filho - Eu não vejo as pesquisas como tratando as coisas necessariamente assim. Até porque, “indígenas” e “brancos” são categorias excessivamente genéricas, que não dão conta das diversidades internas de tais categorias e nem da variedade de regimes de relacionamento que emergem desses encontros em diferentes contextos históricos. Sou partidário de abordagens nominalistas, que observem e tentem entender as realidades empíricas, concretas, sem recorrer previamente a abstrações universalistas. Isso, é claro, não afasta que, no caso da nossa formação social, o encontro colonial – que se prolonga até hoje (vide as persistentes situações de invasão de terras indígenas por madeireiros, garimpeiros e grileiros) – tenha sido um encontro genocida, em que vários povos e comunidades foram dizimados, física e culturalmente. Darcy Ribeiro, em meados do século passado, em dois trabalhos dele (“Línguas e Culturas Indígenas do Brasil” e “Convívio e Contaminação”), consolidou tais estatísticas demográficas demonstrando um quadro estarrecedor – malgrado alguns problemas de ordem metodológica com sua sistematização.
Não é meramente uma questão de “antagonismo” entre “índios” e “brancos”, mas de “guerra de mundos” (regimes, sistemas etc., como queiram), em que um empreende o apossamento e a expropriação das dimensões que constituem os suportes de vida de outros mundos. Ocorre que, por sua vez, esse quadro não exclui que, em algumas situações históricas específicas, alguns grupos tenham se estabelecido em regiões de refúgio, ou que se tenha produzido algum tipo de acomodação desses povos e comunidades, de modo subordinado aos interesses e poderes dominantes – ou seja, que eles tenham, de algum modo, “pacificado” os brancos. Mas para que possamos pensar em uma configuração diferente, em que “a inter-relação e a troca entre as diferentes culturas po[ssa] ser positiva tanto para as partes envolvidas, quanto para a sociedade como um todo”, precisamos primeiro reconhecer e admitir – como sugere Ailton Krenak no primeiro episódio da série Guerras do Brasil.doc – o estado de guerra em que nos encontramos. Como ele mesmo sugere, o contato cultural, nesses termos amistosos, sequer começou.
IHU On-Line - Segundo um estudo realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - Coiab e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia - Ipam, a taxa de mortalidade pelo novo coronavírus entre indígenas é 150% mais alta do que a média brasileira e 20% mais alta do que a registrada na região Norte. A taxa de infecção entre indígenas também é 84% mais alta se comparada com a média nacional. A que o senhor atribui esse resultado?
Henyo Trindade Barretto Filho - Muito bom você ter mencionado este estudo “Não São Números, São Vidas! A ameaça da covid-19 aos povos indígenas da Amazônia brasileira”, por três razões. Primeira, porque tendo sido escrito por cinco pessoas brancas e duas indígenas, ele é um ótimo exemplo do que você mencionou na pergunta anterior: um tipo de troca e inter-relação positiva para as culturas envolvidas e para a sociedade como um todo. Segunda, porque, por causa disso mesmo, toda pessoa com um mínimo interesse na situação humanitária dos povos indígenas deveria ler esse estudo e outros similares. Terceira, porque ele próprio já traz uma análise dos resultados que responde à sua pergunta. É amplamente sabido que doenças respiratórias, como a covid-19, são vilões do genocídio indígena, em alguns casos até devido a predisposições genéticas – como o médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, lembrou-nos em março deste fatídico ano de 2020.
Não obstante, na atual conjuntura de violações dos direitos humanos e territoriais dos povos indígenas, há uma exposição muito maior destes a agentes de contaminação externos pressionando seus territórios – muitos dos quais encontram-se afetados diretamente por atividades ilegais, como desmatamento, garimpo e grilagem. Some-se a isto uma igualmente maior exposição a problemas respiratórios durante o período de queimadas na Amazônia, devido à poluição provocada por fumaça decorrente do fogo ligado ao desmatamento. Como se não bastasse, falta atendimento médico rápido e a Secretaria Especial de Saúde Indígena - Sesai não registra nem os casos de indígenas infectados residentes em cidades, nem os casos sem diagnóstico – subnotificação esta que torna os indígenas ainda mais vulneráveis, pois pode enviesar estratégias de enfrentamento da doença. Enfim, é uma conjunção de fatores catastróficos.
IHU On-Line - Que avaliação faz das políticas públicas existentes para as comunidades indígenas no Brasil? Em que aspectos é preciso avançar urgentemente?
Henyo Trindade Barretto Filho - Bom, uma vez mais, não dá para responder em termos tão genéricos, pois não se pode falar retrospectivamente em “políticas públicas” para povos indígenas no Brasil, quando até muito recentemente o marco regulatório e a prática institucional trabalhavam para “integrar os índios, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. A política pública, se havia, era para descaracterizar os povos indígenas e excluí-los, enquanto tais, do futuro do país. Após a Constituição Federal de 1988, contudo, construiu-se, com o protagonismo das próprias associações indígenas, uma frágil arquitetura normativa e institucional que, não obstante suas limitações, favoreceu um progressivo reconhecimento e materialização dos seus direitos – incluindo os territoriais.
Eu gosto do modo como algumas lideranças do movimento indígena ordenam a história contemporânea dos seus direitos em três momentos, relativamente concomitantes com o período pré-Constituição e com governos subsequentes: uma primeira época, que se poderia dizer carismática, heroica e voluntarista, de luta para que tais direitos fossem plasmados na Carta Magna; um segundo momento, quiçá mais burocrático, pragmático e profissional, em que o associativismo indígena e o “projetismo” explodem, de luta pela implementação de tais direitos no chão (o que inclui a demarcação de suas terras e as tais políticas públicas); e o terceiro e inquietante momento atual, de luta para que não se suprimam tais direitos. Penso que essa formulação procede. Isso significa que, paradoxalmente, é preciso avançar urgentemente em não retroceder. Expressão disso são: a Lei nº 14.021 de 07/07/2020, que, entre outras coisas, dispôs sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da covid-19 nos territórios indígenas e criou o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; e a decisão unânime do Plenário do STF, em 05/08/2020, que manteve a determinação do ministro Luís Roberto Barroso, exigindo ações imediatas por parte do Governo Federal para conter o avanço da pandemia nas terras indígenas, no bojo do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 709. Trata-se de medidas articuladas e propostas pelo próprio movimento indígena, tendo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib sido protagonista da segunda, que consistiam única e exclusivamente em fazer o governo cumprir o seu papel. Para isso, foi necessário incidir no Parlamento e no Judiciário, pois se sabe que não se pode contar com o Executivo para implementar quaisquer políticas públicas que digam respeito aos povos indígenas.
IHU On-Line - Desde que assumiu a presidência da República, o presidente Bolsonaro tem defendido o desenvolvimento de atividades econômicas, como mineração e agropecuária, em terras indígenas. Como o senhor vê essa questão tanto do ponto de vista do discurso presidencial, quanto da posição dos indígenas sobre isso?
Henyo Trindade Barretto Filho - Do ponto de vista não só do discurso presidencial, mas da prática governamental, o que se testemunha diuturnamente é o favorecimento da economia neoextrativista na Amazônia (pecuária de grande escala em pastagens de baixa produtividade; monocultivos de eucalipto, soja e cana; complexos minerários com minas a céu aberto; minerodutos com quilômetros de extensão; megaprojetos de hidrelétricas; sistemas portuários; garimpo e extração madeireira ilegais desenfreados) com repercussões violentíssimas para os territórios e vidas dos povos e comunidades que têm lutado contra esse modelo e o cerceamento de seus direitos ao longo de todo esse período.
O atual governo opera um desbloqueio absoluto desses vetores por meio de medidas e posicionamentos públicos, tais como: a reiteração do argumento xenófobo de que a interferência estrangeira em terras indígenas e na proteção ambiental dificulta o progresso do país, a que respondem as diretrizes de não demarcar mais Terras Indígenas, rever a criação de áreas protegidas e abrir tais territórios ao desenvolvimento comercial; a desarticulação do sistema de regulação ambiental, em especial a revisão em curso da legislação sobre licenciamento ambiental de empreendimentos, o relaxamento geral da fiscalização e o “assédio moral coletivo” a que estão submetidos os profissionais desta área; o uso sistemático de informações mentirosas e distorcidas sobre inúmeras questões ambientais; a afirmação de que os dados sobre o desmatamento gerados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais são manipulados – parte da ofensiva mais ampla contra a educação, a pesquisa científica e as instituições responsáveis por estas.
Tudo isso tem transmitido a sensação generalizada de que o governo “liberou geral”. Como disseram posseiros armados que invadiram terras indígenas em Rondônia logo ao início do governo: “Agora Bolsonaro é presidente!”. Isso tem repercussões gravíssimas na região: a invasão sistemática a áreas protegidas e terras indígenas na Amazônia (Uru-Eu-Wau-Wau, Karipuna, Xipaya, Arara, Awa Guajá) logo no primeiro mês de governo; a retomada da invasão da Terra Indígena Yanomami por garimpeiros, em patamares similares a 1992; a explosão da taxa de desmatamento e dos focos de queimadas; e a intensificação da grilagem de terras, da mineração clandestina em larga escala e da exploração madeireira predatória, com a criminalidade que costuma acompanhá-las.
Do ponto de vista da posição dos povos indígenas sobre isso, seria melhor que eles mesmos se manifestassem – como, aliás, o têm feito sistematicamente.
IHU On-Line - Em entrevista recente, o senhor mencionou que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa entende o desenvolvimento das terras indígenas apenas como “arrendamento”, e não valoriza ou não cria mecanismos que favoreçam a inserção das comunidades às cadeias de valor. Pode nos dar exemplos de como as comunidades indígenas se integram a essas cadeias hoje e como, a partir das experiências existentes, seria possível elaborar políticas públicas de desenvolvimento para as comunidades?
Henyo Trindade Barretto Filho - Acho que você se refere a uma entrevista que concedi para o Especial Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e ABA (Associação Brasileira de Antropologia) sobre a questão indígena no Brasil, em fevereiro do ano passado. Penso que os exemplos que dei lá permanecem válidos e significativos de como essas cadeias se organizam e de como os coletivos indígenas têm se articulado com mercados em vista de garantir seu bem-estar comum: o mel dos índios do Xingu e o óleo de pequi do povo Kisêdjê comercializados pelo Grupo Pão de Açúcar; a pimenta Baniwa e os cogumelos Yanomami no circuito da alta gastronomia; o guaraná dos Sateré-Mawé vendido para a Ambev; a castanha dos Wai Wai, Xikrin, Kuruaya e Xipaya comercializada com a Wickbold; a borracha dos Xipaya usada pela Mercur; o cumaru dos Kayapó e Panará comprado pela Lush e Firmenich (empresas de cosméticos); a batata-doce dos Tingui-Botó, maiores produtores desse item no estado de Sergipe; as experiências de etnoturismo de base comunitária dos Pataxó que cuidam da Reserva da Jaqueira no litoral sul da Bahia e dos povos das Terras Indígenas Médio Rio Negro I e Médio Rio Negro II no circuito das Serras Guerreiras de Tapuruquara, em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. São muitas as iniciativas que mostram que as economias indígenas têm grande vitalidade e conseguem se manter sem qualquer subsídio estatal consistente.
Ocorre que a atual configuração de poder é histericamente cega para as experiências existentes, tornando impossível, neste momento, imaginar qualquer cenário em que se possa elaborar políticas públicas de apoio a essas iniciativas – até porque elas parecem se basear no exercício de autonomia e de escolha desses grupos, que é tudo o que o atual governo quer tolher.
IHU On-Line - Muito se fala sobre desenvolver a Amazônia de forma sustentável. O que seria um modelo de desenvolvimento sustentável para a região, considerando as suas especificidades sociais, ambientais e culturais?
Henyo Trindade Barretto Filho - Quisera eu ter ‘A’ resposta para essa sua pergunta, pois seria tão simples, não? “Eis aqui ‘A’ reposta e basta implementá-la”. Eu prefiro, antes, se você me permite, reformular os termos da equação. Não me parece que tenhamos que pensar nem em “desenvolvimento econômico”, que tem provocado tantas tragédias humanitárias na região, desde a repressão à Cabanagem, quando o Estado nacional brasileiro pela primeira vez se afirmou na região com brutal violência; nem em “modelo”, que tende a reproduzir uma noção da Amazônia como incontrolável força da natureza a ser disciplinada, domada, modelada. Prefiro pensar na proliferação de experiências autonômicas dispersas localmente enraizadas e, parafraseando Viveiros de Castro, em (re)envolvimento cosmopolítico dos distintos coletivos humanos com seus múltiplos ambientes, o que nos permitiria transitar da necessidade extensiva à suficiência intensiva.
IHU On-Line - Do ponto de vista ecológico, que contribuições essas comunidades podem dar, especialmente neste momento de mudanças climáticas?
Henyo Trindade Barretto Filho - Entendo que a maior contribuição que os povos e comunidades da(s) terra(s) – pluralizando o conceito de Vandana Shiva – podem nos ofertar no atual contexto é a sua simples, própria e plena existência, com os seus diferentes modos de habitar suas terras. É essa correlação dinâmica entre sócio e biodiversidades que constitui, a meu juízo, a única janela de oportunidade que temos para adiar o fim do mundo – para citar de novo Ailton Krenak. Nesse sentido, eu ainda sou um antropólogo da velha guarda para qual as frases finais de Raça e História de Lévi-Strauss ainda fazem sentido: “A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras”.
IHU On-Line - A sua tese de doutorado tratou sobre os processos de criação e gestão do Parque Nacional do Jaú, uma das maiores reservas florestais do Brasil, e da Estação Ecológica - Esec de Anavilhanas, no estado do Amazonas. Como se deu a criação dessas áreas de conservação?
Henyo Trindade Barretto Filho - Importa dizer que era um Brasil muito diferente aquele do início dos anos 1980 quando Jaú e Anavilhanas foram criados como Parque Nacional e Estação Ecológica. Não havia Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, não havia previsão de consulta às comunidades potencialmente afetadas pela criação de unidades de conservação, nem de elaboração de termos de compromisso com tais comunidades. De todo modo, havia o Sistema de Unidades de Conservação do Brasil do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), em cujo planejamento constava a criação do Jaú como Reserva Biológica, e o Programa de Estações Ecológicas da Secretaria Especial de Meio Ambiente - Sema do Ministério do Interior, no bojo do qual se criou a Esec de Anavilhanas e várias outras. Tratava-se de sistemas e programas que tinham lá seus fundamentos nas teorias explicativas da dinâmica da diversidade da floresta tropical então vigentes (teoria de biogeografia de ilhas, teoria dos refúgios do pleistoceno, classificação de fitofisionomias) e que se enraizavam no ambiente tecnocrático da ditadura civil-militar, dialogando, cada qual a sua maneira, com os instrumentos dos programas nacionais de desenvolvimento daquela época – o RadamBrasil e o Polamazônia, para citar dois que tinham componentes conservacionistas. Tudo isso ajuda a entender os impactos sociais causados pela criação dessas unidades de conservação em nível local e os dilemas de consolidação que enfrentam até hoje, apesar de o cenário ter mudado muito nos últimos 40 anos, com a entrada de novos atores na cena conservacionista regional, o que inclui o próprio processo de organização política das comunidades locais.
IHU On-Line - Qual é a situação da comunidade Quilombola do Tambor, que vive no território do Parque Nacional do Jaú? Como está o processo de demarcação das terras que eles reivindicam?
Henyo Trindade Barretto Filho - As pessoas mais indicadas para falar sobre essa situação são as colegas antropólogas da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas - DFQ do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra, e os colegas João Siqueira (que elaborou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID do Território Quilombola Tambor e escreveu sua tese de doutorado sobre este) e Emmanuel Farias Junior (cuja dissertação de mestrado sobre o Tambor virou livro). Até onde sei, a situação do Tambor segue indefinida. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação foi publicado em janeiro de 2009. Ocorre que as normativas (em especial, o art. 11 do Decreto 4887/2003) ditam que o processo só segue para portaria declaratória quando a situação de sobreposição com a unidade de conservação – no caso, o Parque Nacional do Jaú – for conciliada. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio finalmente firmou o termo de compromisso com o Tambor em janeiro deste ano de 2020, processo cujas discussões prévias foram acompanhadas por servidores do Incra. Parece que o ICMBio estava avançando em discussões sobre a revisão do plano de manejo do parque, mas aquele instituto, o Incra e a comunidade não chegaram a nenhum compromisso em torno de propostas seja para recategorizar, seja para desafetar, seja para qualquer outra equação relativa à regularização fundiária.