20 Fevereiro 2020
A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, há pouco mais de um ano, exacerbou profundamente a crise ambiental e de direitos humanos do país. No final de janeiro, o presidente brasileiro realizou em sua conta do Twitter uma série de comentários racistas: “os índios estão evoluindo” e “cada vez mais parecem com seres humanos como nós”, denunciados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil perante os tribunais como um crime grave de ódio. Apenas duas semanas depois, o político de extrema direita atacou novamente.
A reportagem é de Tom Kucharz, publicada por Ctxt, 18-02-2020. A tradução é do Cepat.
O mesmo executivo que contribuiu para o fracasso da cúpula climática da ONU em Madri, com sua oposição a vários dos acordos que estavam sendo negociados, enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei (191/2020) que permitiria abrir as reservas indígenas para a mineração - incluindo projetos de petróleo e gás -, o setor agropecuário e as centrais hidrelétricas.
Durante uma cerimônia que marcou os 400 dias de seu mandato, Bolsonaro assinou o projeto de lei, que deve ser aprovado pelo Parlamento e apresentado como regulamentação do artigo 231 da Constituição. Nesse artigo, reconhece-se que os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras que ocupam tradicionalmente, “correspondendo à União demarcá-las, protegê-las e garantir que sejam respeitados todos os seus bens”.
Até agora, a Carta Magna não permite a mineração em territórios indígenas porque não foi regulamentada. Assim, no parágrafo 3º do art. 231, estabelece que “o uso de recursos hidráulicos, incluindo potencial energético, a busca e extração de riqueza mineral em terras indígenas só podem ser realizados com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, garantindo sua participação nos resultados da extração, na forma de lei”.
Com o novo projeto de lei, o objetivo do governo é comprometer os interesses dos povos indígenas e a conservação da natureza. Nesse sentido, funcionários do governo afirmaram que, se aprovado, as comunidades indígenas não teriam o direito de vetar projetos, uma vez autorizados pelo Congresso. Além disso, Bolsonaro planeja abrir as portas para a agricultura comercial em larga escala nas reservas indígenas, algo que também não é permitido pelas leis ambientais atuais.
Desde que tomou posse do cargo, o presidente tornou norma as agressões verbais e ataques institucionais contra os povos indígenas. Além disso, os partidos da base do governo fomentam, em órgãos públicos, nos meios de comunicação e no Parlamento a consideração de que as comunidades indígenas são “invasoras” de terras.
Tal como denuncia a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, com sua campanha ‘Sangue indígena: nenhuma gota a mais’, essa ofensiva governamental tenta consolidar um discurso de ódio e sujeitar as políticas do Estado aos interesses mais prejudiciais dos lobbies econômicos. O objetivo é entregar as terras e seus recursos naturais a grupos econômicos que se dedicam à mineração, comercialização de eletricidade, energia fóssil e a indústria agropecuária.
Os povos indígenas e as organizações ambientais denunciam, há muito tempo, que está chegando um pesadelo, uma vez que todas essas atividades têm um enorme impacto ambiental e social.
Em 25 de janeiro passado, completou um ano da avalanche de 13 milhões de metros cúbicos de resíduos tóxicos de uma mina no estado de Minas Gerais, que deixou pelo menos 270 pessoas mortas e toda uma região contaminada.
Outra tragédia semelhante, a ruptura de uma barragem em Mariana, no mesmo estado, ocorreu há quatro anos. As três empresas responsáveis pelo crime - Samarco, Vale e BHP Billiton - jogaram mais de 48 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração, que poluíram 43 municípios, mataram 19 pessoas, causaram um aborto e destruíram mais de 680 quilômetros do Rio Doce.
Esses crimes costumam permanecer impunes e as compensações às vítimas são insuficientes. Assim, prevalece uma ausência de soluções e um aprofundamento da violência e das violações dos direitos das pessoas afetadas.
A abertura de terras indígenas para essas atividades industriais vai muito além, é parte do projeto etnocida do Estado brasileiro. Um projeto profundamente radicalizado com Bolsonaro e que destrói os modos de vida e o pensamento dos povos opostos aos planos econômicos.
Para organizações indígenas que já anunciaram que não aceitarão projetos de mineração e hidrelétricos, Bolsonaro está conduzindo um “genocídio institucionalizado, etnocídio e ecocídio”.
Como afirma Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em um vídeo publicado no Twitter, o sonho de Bolsonaro “é o nosso pesadelo, é o nosso extermínio. Porque a extração de minerais causa morte, enfermidades, miséria e acaba com o futuro de toda uma geração”. A negação do direito “a qualquer centímetro de terra demarcada” é uma prova de que o governo e os povos indígenas estão em lados opostos da história, resume.
Bolsonaro apresentou o projeto de lei 191/2020 justamente durante a semana em que é comemorado o Dia Nacional da Luta pelos Povos Indígenas no Brasil, em 7 de fevereiro, como lembra o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC). Nesse dia se homenageia o líder indígena Sepé Tiaraju, assassinado em 1756 durante a luta contra a dominação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul. Esse conflito resultou na morte de mais de 1.500 indígenas. A colonização iniciou um genocídio que reduziu o número de povos indígenas no Brasil de cerca de 10 milhões, em 1500, para menos de 900.000 na atualidade.
“A sociedade brasileira deve estar com os povos indígenas em sua luta pelo direito de existir e viver em suas terras, como desejarem, com o apoio de que necessitam do Estado, com o direito de dizer não e serem respeitados como parte fundamental do que somos como sociedade”, defendem no INESC. “O desenvolvimento baseado na sobre-exploração dos recursos naturais também deve passar pela triagem de um sério debate econômico sobre seus efeitos reais”, acrescenta.
O anúncio da lei 191/2020 também coincidiu com uma preocupante virada na Fundação Nacional do Índio (Funai). Esse órgão da administração estatal brasileira que estabelece e desenvolve as políticas relacionadas aos povos indígenas começou a rotular a presença de povos indígenas em terras demarcadas como uma “invasão” e proibiu as visitas de funcionários públicos às terras indígenas em processo de demarcação.
Em uma resposta ao Instituto Socioambiental, uma ONG dedicada à defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e direitos dos povos indígenas, o procurador-chefe da Funai, Álvaro Osório do Vale Simeão, declarou que a presença de indígenas nessas áreas “é um ato que se enquadra na definição de invasor presente no Código Civil e no Código Penal. Não existe o que comumente se chama ‘retomar’, um conceito construído a partir de uma antropologia trotskista”.
O Instituto Socioambiental considera uma “aberração factual e legal” que o “próprio organismo indígena” criminalize as comunidades e as torne “vítimas de sua própria omissão”. Enfatiza que a não conclusão dos processos de demarcação de terras indígenas é uma omissão da obrigação expressa deste órgão em “demarcar, proteger e fazer valer todos os seus ativos”, nos termos do artigo 231 da Constituição.
Em julho de 2019, Bolsonaro nomeou como presidente da Funai Marcelo Augusto Xavier da Silva. O ex-delegado da Polícia Federal é próximo dos deputados da chamada bancada ruralista do Congresso, com fortes interesses econômicos no agronegócio, responsáveis por incêndios florestais e violações de direitos humanos para ampliar a fronteira agrícola. Durante seu tempo na Polícia Federal, Silva foi investigado por ser “muito agressivo e impulsivo” e até foi expulso de uma operação em terras indígenas.
Inicialmente, Silva ia ser assessor do proprietário de terras e secretário de Assuntos de Terras do Ministério da Agricultura, Nabhan García. Mas sua saída tardia da Polícia Federal frustrou sua nomeação. Sob o governo golpista de Michel Temer, Silva foi assessor do ex-ministro Carlos Marun para assuntos relacionados à questão agrícola.
Para os movimentos indígenas e ONGs, a transferência de Silva para a presidência da Funai faz parte da estratégia do governo de impedir novas demarcações de terras e desmantelar a proteção dos direitos indígenas.
Na mesma linha, Bolsonaro nomeou recentemente o missionário evangélico Ricardo Lopes Dias como chefe do departamento de índios isolados da Funai. Para Sarah Shenker, da ONG Survival International, “colocar um missionário evangélico a cargo do departamento de povos indígenas isolados é um ato de agressão deliberada, uma declaração de intenções: querem entrar em contato à força com essas pessoas, o que as destruirá. Junto com o recente plano do presidente Bolsonaro de abrir reservas indígenas para mineração e exploração, este é um projeto genocida para destruir completamente as pessoas mais vulneráveis do planeta”.
As imagens das chamas arrasando a Amazônia, em agosto de 2019, fizeram muitas pessoas em todo o mundo perceberem a conexão entre o agronegócio e a crise climática.
Nesse sentido, é importante lembrar que a União Europeia é o segundo maior parceiro comercial do Brasil, depois da China, e representa 18,3% de seu comércio internacional. A maioria das importações da União Europeia procedentes do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) são produtos primários. As políticas do governo brasileiro em favor da agricultura industrial implicam que a Amazônia brasileira esteja registrando um dos mais altos níveis de desmatamento desde 2008.
O Pacto Verde Europeu, anunciado pela Comissão Europeia e que pretende transformar a Europa em uma região em termos de clima neutra em 2050, é um brinde ao sol se a União Europeia não mudar sua política comercial, uma das causas estruturais do aquecimento global. Os ecossistemas do Brasil estão sendo destruídos para dar lugar à produção de eletricidade, à extração de minerais e à produção de carne, soja, óleo de palma, etanol etc., que são consumidos na Europa e na China. E tudo isso para aumentar os lucros das empresas transnacionais no setor de carnes (JBS, Marfrig, Minerva), agricultura (ADM, Cargill, Bunge, Louis Dreyfus), mineração (Vale, BHP Billiton) e energia (Petrobras, Shell, Total, Equinor, Repsol, BP, Neoenergia-Iberdrola, ENEL).
Os investidores estrangeiros têm uma enorme influência sobre o que acontece no Brasil. Em particular, os grandes bancos (HSBC, Banco Santander, JPMorgan, Chase Morgan Stanley, Bank of America, Credit Suisse, Barclay, BNP Paribas, Citigroup, Deutsche Bank, ING, Rabobank, ABN Amro) e fundos de investimento (BlackRock, Blackstone, Capital, Fidelity) que proporcionam bilhões de dólares em empréstimos, cobertura e compra de ações. Essa alavancagem financeira permite que grandes multinacionais mantenham e expandam suas operações, o que causa mais devastação na Amazônia e em outros biomas.
O acordo comercial que a União Europeia negociou com os quatro Estados do Mercosul é exatamente o oposto de um Pacto Verde Europeu, já que acelerará a crise climática, ao buscar um aumento nas importações que fomentam o desmatamento. Além disso, desencadeará violência e invasão de terras indígenas para a exploração de soja, carne e minerais. Assim, este acordo significa, em resumo, legitimar violações sistemáticas dos direitos humanos. Nas últimas três décadas, 1.119 indígenas foram assassinados, de acordo com a denúncia do Conselho Indigenista Missionário, em seu relatório anual Violência contra os Povos Indígenas no Brasil.
Os governos da França e da Irlanda condicionaram seu apoio à ratificação do acordo comercial com o Mercosul a que Bolsonaro respeite os compromissos que o Brasil assumiu no Acordo Climático de Paris. Mas se o acordo comercial União Europeia-Mercosul pretende aumentar o comércio de carne e automóveis, dois setores que causam grande destruição socioambiental, como pode ser compatível com o Acordo de Paris e a redução das emissões de CO2?
Além disso, a nova lei 191/2020 de Bolsonaro mostra que as críticas internacionais ao aumento do desmatamento no Brasil não surtiram efeito.
É imprescindível que o executivo do PSOE e do Unidos Podemos rejeite o acordo comercial União Europeia-Mercosul. Assim se posicionou, por exemplo, o governo da Áustria depois que o parlamento aprovou uma resolução, em setembro de 2019, que obriga o executivo a votar contra o acordo no Conselho da União Europeia, onde, de acordo com as regras, os 27 Estados-Membros devem aceitá-lo por unanimidade. Também o parlamento regional da Valônia aprovou recentemente uma moção por unanimidade para impedir que o governo federal belga assine o acordo comercial.
A solidariedade internacionalista com os movimentos sociais do Brasil que lutam pela justiça social e ambiental é mais necessária do que nunca. Se frearmos o acordo comercial com o Mercosul e conseguirmos uma mudança radical no comércio com o Brasil, poderemos influenciar consideravelmente na agenda destrutiva do governo Bolsonaro.
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O plano genocida de Bolsonaro para a destruição dos povos indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU