O Papa sofre, se entristece, convida, exorta, mas não se pronuncia sobre o genocídio. Artigo de Paolo Farinella

Foto: Edgar Beltrán | The Pillar 

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26 Setembro 2025

"O Papa não se manifesta, mas sofre, se entristece, convida, exorta, suplica e... age como bom estadunidense. Talvez, se tivesse pensado alguns segundos a mais, deveria ter escolhido se chamar Leãozinho I, terno filhotinho"

O artigo é de Paolo Farinella, padre e biblista italiano, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 24-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Como o próprio Cardeal Robert Prevost quis pomposamente ressaltar ao aparecer na sacada usando a mozeta vermelha, resquício histórico da clâmide imperial, símbolo da dignidade do imperador do Ocidente e do Oriente (Roma e Bizâncio/Constantinopla), o papa recém-eleito quis que o chamássemos de "Leão", na ordem, o décimo quarto. A referência intencional era ao seu antecessor Leão XIII, que, segundo visão mais rasa, foi o papa da modernidade com a encíclica "Rerum Novarum" de 1891, com a qual, relutantemente, o papa reconhecia que o mundo havia escapado ao seu controle e que a "questão trabalhista" precisava ser tomada pelos chifres, caso contrário, outros a assumiriam e a Igreja, mais uma vez, teria feito a figura do fóssil paquiderme, incapaz de viver nos tempos que lhe foram destinados.

O papa estadunidense-peruano-italiano-francês-espanhol vê na Inteligência Artificial outra questão de época, um divisor de águas que atravessa os interesses da Igreja (acho vou anotar isso agora!). Ele escolheu se chamar Leão XIV somente por esse motivo. Ele se aplaudiu sozinho, os estadunidenses estavam satisfeitos por ter um mestiço, mas branco o suficiente para não figurar mal como papa, "vestido de branco" com um toque de vermelho que sempre cai bem e os outros cardeais seguiram o exemplo porque compreenderam imediatamente que ele jamais seria uma reedição de Francisco. Francisco chegou 800 anos depois do primeiro Francisco, e agora, para ver outro, teremos que esperar pelo fim do mundo (aliás, bem próximo, considerando as sombras escuras que rondam por aí).

No começo, eu mesmo o acolhi com o benefício da dúvida e lhe dando o crédito que um novo cliente merece, salvo mudanças ao longo do caminho. Não demoramos muito para entender que a vocação de bombeiro lhe cai como uma luva. Por outro lado, é um "filho de Santo Agostinho" (autocertificação dele), alguém que se jogou totalmente à direita com Platão (séculos V-IV a.C.), mediado por Plotino (século III a.C.), para quem a matéria é feia e má, enquanto apenas a alma é bela e fascinante, a ponto de condená-la à prisão perpétua e vitalícia no corpo mortal de seres desprezíveis. Levou oito séculos para que a Agostinho respondesse à altura alguém como Tomás de Aquino (século XIII). Leão acredita ser o Moisés no Mar Vermelho da epopeia da IA, pretendendo enfrentar riscos e montanhas-russas da mudança de época.

Infelizmente, seus sonhos (e os nossos também) foram imediatamente destruídos pela realidade, que é mais inteligente do que qualquer intelecto artificial. Assim que foi eleito, ele se deparou, ardendo de sangue fresco e jovem — ou melhor, infantil — com o palco mundial onde estava sendo encenada, em estreia mundial, Gaza, please! obra única de Benjamin Netanyahu, de seu governo e dos governos de dois terços do mundo que o apoiam "porque é um país democrático" (sic!), incluindo os EUA de Trump, outro modelo de democracia ao molho barbecue.

Em vez de simplesmente se debruçar na sacada para dizer: "Vou para Gaza e parto hoje mesmo; quem quer vir comigo? Vamos por mar até Gaza, depois viraremos à esquerda (pelo menos uma vez na vida, só para satisfazer o capricho) e atracaremos na praia. Depois veremos!” Não, nada disso. O nosso Leão decidiu nem mesmo ligar para a paróquia da Sagrada Família em Gaza, para onde o Papa Francisco ligava todas as noites às 19h para sorrir e conversar com as pessoas ali abrigadas.

Leão é prisioneiro da etiqueta diplomática e, por isso, não foi para Gaza, mas, como Aníbal, para a ociosidade de Castel Gandolfo. Os esforços dignos de hérnia que ele fez foram “implorar o fim da guerra; sinto grande dor por Gaza; aos chefes de Estado, digo: não sejam travessos" e, "dulcis in fundo", mas bem, bem "in fundo": A Santa Sé não entende, por enquanto, chamar de 'genocídio'" o 'genocídio' que está se consumando na pele dos mártires modernos, como aconteceu no Holocausto judeu nos campos de extermínio nazistas, dos meninos, das meninas, dos idosos, das mulheres e dos desesperados de Gaza. O Papa é chefe de Estado e, portanto, não é de bom tom usar a linguagem da verdade, porque "diplomacia é a arte de dizer mentiras com estilo e educação".

Depois que alguém, mas um século e meio depois, deve ter lhe dito que o mundo inteiro esperava um sinal dele, quanta bondade, ele deixou escapar: "Irei para Lampedusa". Não dá para entender a lógica, pois ele poderia também ir às Bermudas, às Seychelles, a Arzachena ou Calangianus, na Sardenha... teria recebido hospitalidade da mesma forma, com um copinho de "Filu 'e ferru" e não teria corrido o risco de sujar a capinha vermelha. O povo é muito mais avançado e até os 550 padres de 21 nações, que decidimos nos chamar de "Padres contra o genocídio" (massivo e esmagador 1,2% em todo o mundo). O Papa não se manifesta, mas sofre, se entristece, convida, exorta, suplica e... age como bom estadunidense. Talvez, se tivesse pensado alguns segundos a mais, deveria ter escolhido se chamar Leãozinho I, terno filhotinho.

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