05 Março 2025
A vitória de No Other Land no Oscar marca um momento histórico no reconhecimento global das lutas palestinas.
O artigo é de Mahmoud Mushtaha, publicado por CTXT, 04-03-2025.
Mahmoud Mushtaha é jornalista e ativista dos direitos humanos de Gaza. Atualmente, está cursando um mestrado em Mídia Global e Comunicação na Universidade de Leicester, no Reino Unido. Recentemente, publicou seu primeiro livro em espanhol, "Sobrevivir al genocidio en Gaza".
O filme de Yuval Abraham e Basel Adra retrata a resistência palestina nas aldeias de Masafer Yatta, nas montanhas próximas a Hebron, que enfrentam o cerco dos colonos e do exército sionista.
“Há cerca de dois meses, me tornei pai. Minha esperança para minha filha é que ela não precise viver a mesma vida que eu vivo agora, com medo constante dos colonos, da violência, das demolições de casas e dos deslocamentos forçados”. Essas foram as palavras do jornalista e cineasta palestino Basel Adra ao subir ao palco após receber o Oscar por No Other Land. Seu discurso não foi apenas pessoal: foi um chamado à justiça, um manifesto contra a opressão israelense que continua a marcar a vida dos palestinos.
Yuval Abraham, seu codiretor israelense, seguiu com uma declaração poderosa:
“Fizemos este filme, palestinos e israelenses, porque nossas vozes juntas são mais fortes. Nós nos enxergamos uns aos outros. A terrível destruição de Gaza e de seu povo precisa acabar; e os reféns israelenses, brutalmente capturados no crime de 7 de outubro, devem ser libertados”.
No coração de No Other Land (2023) está Masafer Yatta, uma comunidade palestina na Cisjordânia ocupada, submetida há anos a tentativas sistemáticas de deslocamento forçado. O documentário, codirigido pelos jornalistas Basel Adra e Yuval Abraham, junto com Rachel Tzur e Hamdan Bilal, oferece um relato sem filtros e profundamente pessoal da resistência palestina diária contra a opressão militar israelense. Mais do que uma investigação jornalística, é um testemunho da realidade cotidiana de um povo cuja existência está constantemente ameaçada.
O filme não se limita a documentar a devastação material – as casas demolidas, as incursões militares, os bloqueios de estradas e os postos de controle –, mas também expõe o custo psicológico da ocupação. Adra, jornalista e ativista palestino, filma com sua pequena câmera a angústia de sua comunidade, entrelaçando cenas de resistência e desespero. Através de sua lente, os espectadores testemunham famílias que retornam às ruínas do que antes eram seus lares e que já foram destruídos várias vezes, pastores que lutam para acessar suas terras ancestrais e crianças que crescem sob a ameaça constante do controle militar.
Abraham, jornalista da revista +972 e ativista israelense, traz outra perspectiva: a do ajuste de contas interno. Seu papel no filme não é apenas o de uma testemunha, mas também o de um interrogador que questiona os sistemas profundamente enraizados que perpetuam a ocupação israelense. Como israelense, ele reconhece os privilégios e a cumplicidade que sua nacionalidade implica e usa sua plataforma para questionar as políticas de seu próprio governo. Sua presença no filme ressalta os dilemas éticos enfrentados por aqueles que se opõem à ocupação dentro da sociedade israelense, destacando a tensão entre solidariedade e as dinâmicas estruturais de poder que o separam de Adra.
No entanto, No Other Land é mais do que uma exposição sobre deslocamentos forçados; é também uma reflexão sobre solidariedade, culpa e a ética de documentar a opressão. O filme encara a desconfortável realidade de testemunhar a injustiça: o que significa registrar o sofrimento sem poder evitá-lo? Como se navega na linha tênue entre amplificar vozes e explorar o trauma? Essas questões estão presentes na narrativa do documentário e desafiam tanto seus criadores quanto o público.
O documentário foi filmado ao longo de quatro anos, de 2019 a 2023, capturando momentos cruciais de violência e resistência. As gravações terminaram poucos dias antes do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, um evento que mudou o panorama geopolítico e intensificou as operações militares israelenses nos territórios palestinos ocupados. As imagens diretas e a narrativa profundamente pessoal fazem do filme uma denúncia urgente e intransigente das políticas israelenses de limpeza étnica, além de uma reflexão sobre o poder e os limites do cinema documental como forma de ativismo.
Para compreender plenamente a importância de No Other Land, é necessário situá-lo no contexto histórico e político mais amplo da resistência palestina. O filme não existe isoladamente, mas emerge de uma luta prolongada contra o colonialismo, a ocupação e a limpeza étnica.
A luta retratada no documentário remonta à Nakba de 1948, o deslocamento massivo de mais de 750 mil palestinos durante a criação de Israel, um evento que moldou a identidade nacional palestina e o movimento de resistência. Essa despossessão se aprofundou ainda mais com a ocupação da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e de Jerusalém Oriental em 1967, quando Israel lançou uma campanha militar que resultou na anexação de territórios palestinos, uma realidade que persiste até hoje. Desde então, as autoridades israelenses expandiram assentamentos ilegais, impuseram controle militar e implementaram políticas sistemáticas destinadas a apagar a presença palestina de suas terras.
Um dos casos mais emblemáticos dessa estratégia é Masafer Yatta, o cenário de No Other Land. Situada nas colinas do sul de Hebron, Masafer Yatta tem sido alvo de deslocamentos forçados há décadas. Em 1981, as autoridades israelenses a designaram como "zona de tiro" para treinamento militar, um pretexto legal frequentemente utilizado para justificar a expulsão de comunidades palestinas. Essa declaração, na prática, criminalizou a existência dos palestinos em suas próprias casas, uma tática repetida em toda a Cisjordânia para expulsá-los enquanto o controle dos colonos israelenses se expande. Apesar de uma decisão da Suprema Corte israelense em 2022 que autorizou a expulsão de mais de mil moradores, as famílias palestinas de Masafer Yatta continuam resistindo, enfrentando sucessivas demolições de casas, violência de colonos e ataques militares.
No entanto, a campanha contra Masafer Yatta faz parte de uma escalada mais ampla das políticas israelenses nos territórios ocupados, especialmente após a guerra de Gaza iniciada em 7 de outubro de 2023. Enquanto a atenção mundial permanece voltada para Gaza, as forças israelenses intensificaram seus ataques contra Jenin, Nablus e outras áreas da Cisjordânia. Jenin, em particular, tem sido alvo de incessantes bombardeios aéreos, demolições de casas e detenções em massa, em um esforço de Israel para esmagar qualquer forma de resistência organizada.
Um exemplo claro da realidade retratada no documentário é a recente reaparição do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com um controverso plano para Gaza, alinhando-se às políticas da extrema-direita israelense. Sua proposta prevê o deslocamento forçado dos palestinos de Gaza e o “reassentamento” do território por atores externos, ecoando planos coloniais do passado destinados a remover populações nativas. Embora os detalhes ainda sejam vagos, a retórica de Trump sugere um projeto para alterar permanentemente a demografia e a política de Gaza, possivelmente por meio de deportações em massa ou de uma administração militar direta por Israel.
Tal proposta reflete uma tendência mais ampla no discurso político ocidental, que trata a existência palestina como um “problema a ser resolvido” em vez de reconhecer um povo com direito à autodeterminação. Além disso, coincide com os debates entre altos funcionários israelenses sobre a possibilidade de empurrar os palestinos para o deserto do Sinai ou qualquer outro lugar, uma continuação da política de expulsão étnica iniciada em 1948.
Como mostra No Other Land, não se trata apenas de um padrão histórico, mas de uma realidade atual. O retrato que o filme faz da resistência em Masafer Yatta é um microcosmo da experiência palestina: um povo que, apesar das dificuldades avassaladoras, continua desafiando as forças que tentam apagá-lo do mapa. Seja em Masafer Yatta, Jenin ou Gaza, a luta palestina continua sendo uma luta por sobrevivência, terra e dignidade.
O documentário se destaca não apenas pelo retrato sem filtros da vida palestina, mas também por seu ousado desafio às narrativas dos principais meios de comunicação. Durante décadas, a mídia ocidental enquadrou a ocupação israelense como um “conflito” entre dois lados iguais, ocultando deliberadamente o enorme desequilíbrio de poder que define a realidade no terreno. No Other Land desmonta essa falsa equivalência, oferecendo um retrato íntimo da resistência palestina enquanto expõe as estruturas enraizadas de ocupação e desapropriação.
O cerne do filme é sua recusa em aceitar o discurso dominante da mídia, que frequentemente recorre a uma linguagem asséptica e eufemismos para evitar descrever as políticas israelenses. Termos como “confrontos” e “violência de ambos os lados” apagam a realidade fundamental da ocupação militar, da violência de Estado e do colonialismo. Através de documentações de primeira mão, o filme obriga o público a encarar essas verdades incômodas, que o jornalismo convencional muitas vezes dilui ou omite por completo.
A obra também evidencia as falhas da cobertura ocidental sobre a Palestina. As reportagens dos grandes veículos de imprensa costumam ser moldadas por alianças geopolíticas, reforçando uma narrativa centrada em Israel que minimiza ou ignora o sofrimento palestino. A mídia amplifica desproporcionalmente as perspectivas israelenses, retratando os palestinos principalmente como vítimas ou agressores, mas raramente como agentes políticos com capacidade de ação. A obsessão com a “segurança” israelense obscurece a realidade cotidiana do roubo de terras palestinas, das demolições de casas, das incursões militares e das execuções extrajudiciais. Enquanto isso, jornalistas palestinos — os mais bem posicionados para reportar sua própria realidade — são sistematicamente censurados, desacreditados, presos ou até assassinados.
Em contraste, No Other Land surge como um ato de rebeldia, um desafio direto a esses preconceitos arraigados. O trabalho de Basel Adra encarna a coragem dos jornalistas palestinos que arriscam suas vidas para documentar a luta de seu povo. Em uma época em que as redes sociais censuram conteúdos palestinos e a grande mídia se recusa a chamar o apartheid pelo nome, este documentário se impõe como uma poderosa força de resistência, insistindo na verdade diante da supressão sistêmica.
Mas o impacto do filme vai além do jornalismo. Para Yuval Abraham, codiretor israelense, o projeto também é um ajuste de contas. Sua transformação — de jornalista que reportava sobre a ocupação a dissidente ativo que enfrenta a cumplicidade de sua própria sociedade — adiciona uma dimensão crucial à narrativa. Diferente de muitos israelenses que optam pela ignorância voluntária, Abraham se força a ver. O filme não oferece uma via fácil para a redenção, mas apresenta sua jornada como um confronto desconfortável, porém necessário, com a brutalidade do apartheid israelense.
A crítica implacável do documentário às políticas israelenses não passou despercebida pelas instituições políticas e midiáticas do Ocidente. Nos Estados Unidos, onde o apoio militar e diplomático incondicional a Israel define a política externa, o filme enfrentou diversas tentativas de censura. Nenhum estúdio americano quis exibi-lo, e até receber o Oscar, ele só havia sido projetado em 23 cinemas do país, graças a uma distribuição artesanal, organizada cidade por cidade. Isso reflete um padrão mais amplo de silenciamento das narrativas palestinas no discurso público ocidental, onde filmes, livros e debates acadêmicos que questionam as relações entre os EUA e Israel frequentemente enfrentam reações hostis.
A vitória de No Other Land no Oscar marca um momento histórico no reconhecimento global das lutas palestinas. Durante décadas, Hollywood e as principais corporações cinematográficas ignoraram ou marginalizaram as vozes palestinas. O reconhecimento de No Other Land sinaliza uma mudança, por menor que seja, na forma como o mundo percebe a ocupação e seu impacto devastador sobre as comunidades palestinas.
Esse marco não pode ser tratado como apenas mais um prêmio, pois carrega um profundo peso político e cultural. O sucesso de No Other Land obriga o público a encarar a dura realidade do regime militar, do colonialismo de colonos e do apartheid israelense.
No entanto, seria ingênuo supor que esse reconhecimento levará a uma transformação completa das atitudes ocidentais em relação à Palestina. A indústria cinematográfica, como muitas instituições globais, opera dentro de um quadro influenciado por pressões políticas e econômicas. Hollywood, em particular, há muito tempo é influenciada por grupos de lobby pró-Israel e pela relutância em promover conteúdos que desafiem os interesses da política externa dos EUA na região.
Ainda assim, o sucesso do filme forçou conversas que muitos tentaram suprimir por muito tempo. O alcance global do Oscar proporcionou uma plataforma que amplifica as vozes palestinas em um espaço onde, historicamente, elas foram apagadas. O próprio Basel Adra reconheceu isso em um artigo de opinião para a revista +972 Magazine: “Enquanto o mundo assiste a No Other Land, colonos israelenses atacam e incendeiam nossos vilarejos, soldados nos detêm, nos abusam e destroem nossas casas”.
Suas palavras ressaltam uma verdade fundamental: o reconhecimento do filme é uma vitória para a narrativa palestina, mas a violência que ele documenta não cessou.