28 Fevereiro 2025
“Imaginemos que os habitantes da União Soviética nunca tivessem ouvido falar de comunismo. É mais ou menos assim que estamos no momento: a ideologia dominante de nosso tempo, que afeta quase todos os aspectos de nossas vidas, não tem nome para a maioria de nós. Se você a menciona, provavelmente, será ignorado pelas pessoas ou, então, reagirão com uma mistura de perplexidade e desdém: “O que você quer dizer? O que é isso?””.
A entrevista é de Andrés Actis, publicada por La Marea-Climática, 23-02-2025. A tradução é do Cepat.
O primeiro parágrafo de A doutrina invisível: a história secreta do neoliberalismo é um punhal profundo, uma interpelação incômoda, mas necessária, aos milhões de cidadãos que se opõem a um capitalismo selvagem que, mais do que nunca, ameaça todos os pilares das democracias modernas.
Nas primeiras vinte páginas, seus autores, o jornalista britânico George Monbiot e o cineasta estadunidense Peter Hutchison, nos dão várias bofetadas. A mensagem seria: como esperamos deter a ascensão dos Trumps e os Milei, se nem sequer conhecemos a ideologia - seus postulados, seus lobbies, seus mecanismos – que os impulsiona?
“As crises acontecem, mas não compreendemos suas raízes comuns. Não conseguimos reconhecer que todos os desastres surgem ou são agravados pela mesma ideologia coerente, uma ideologia que tem, ou ao menos tinha, um nome. “Qual pode ser o poder maior do que operar sem um nome?”, questionam.
Os autores definem o neoliberalismo como “uma ideologia cuja crença central é que a competição é a característica que define a humanidade”. É uma doutrina que nos apresenta como “gananciosos e egoístas”, algo nada ruim, porque essa ganância e egoísmo “iluminam o caminho para melhorar a sociedade, gerando a riqueza que acabará enriquecendo a todos”.
Sentado no escritório de sua casa em Londres, Monbiot – jornalista, estudioso, escritor, ambientalista e ativista político, a quem Nelson Mandela entregou um Prêmio Global das Nações Unidas por ser um destacado defensor ambiental – aceita a proposta de apresentar o fio condutor do livro.
Admite que está preocupado com a apropriação da palavra “liberdade” pelos neoliberais. O autoritarismo presente para ocultar que estamos diante de um sistema econômico “que leva ao colapso ambiental”.
Pede foco no triângulo formado por fascismo, neoliberalismo e redes sociais – “pensávamos que os meios de comunicação tradicionais eram ruins o suficiente, mas em comparação a Elon Musk ou Mark Zuckerberg, os empresários dos meios de comunicação parecem dirigir uma clínica de yoga”, ironiza –, e convida para a construção de “contranarrativas eficazes” para lutar contra este monstro enorme.
Poucas vezes na história moderna convivemos com tantas crises simultâneas: crise das democracias liberais, crise climática, crise da desinformação, crise da saúde pública. Existe alguma dessas crises que não seja influenciada pelo neoliberalismo?
Acredito que o neoliberalismo contribuiu para todas elas. Não é a única causa. Há outros sistemas que também contribuíram para essas crises. No entanto, sem dúvidas, o neoliberalismo as acelerou e exacerbou. O problema é que quando mais precisamos de uma ação política eficaz para enfrentar todas essas crises, o neoliberalismo nos diz que os governos não existem para produzir qualquer ação política eficaz. Muito pelo contrário. Os governos devem ficar de lado e não estorvar. Os governos devem permitir que o poder econômico faça o que quiser. Os governos devem derrubar as proteções públicas e todas aquelas regulamentações que incomodam o poder econômico. Temos a pior ideologia dominante, no pior momento possível.
Por que essa ideologia dominante é tão invisível?
O neoliberalismo fez um esforço muito grande e deliberado para disfarçar suas ideias. Desde aproximadamente meados dos anos 1950, os pensadores neoliberais pararam de usar o termo neoliberalismo. De fato, não usaram nenhum termo para se descreverem, pois queriam criar a impressão de que estavam descrevendo a ordem natural. É assim que o mundo funciona, é assim que a seleção natural funciona.
Para o neoliberalismo, os seres humanos são egoístas e gananciosos. Não só temos que aceitar e abraçar isto, pois o egoísmo e a ganância tornarão todos mais ricos e, por um efeito cascata, o dinheiro chegará aos pobres. No entanto, graças a um amplo leque de estudos científicos, sabemos que os seres humanos não são primordialmente egoístas e gananciosos, exceto uma pequena proporção que chamamos de psicopatas.
A maioria de nós tem algo de egoísmo e ganância, mas outros valores são mais importantes para nós, como a empatia e o altruísmo, a comunidade, a família, a pertença e a bondade para com os outros. Queremos um mundo melhor para nós, mas também para as outras pessoas. No entanto, o neoliberalismo nos diz que somos psicopatas e que essa é a nossa única maneira de ser.
Estamos entrando em uma nova fase do neoliberalismo? A Argentina, por exemplo, teve um governo com essa ideologia nos anos 1990, o de Carlos Menem. Como um personagem tão disruptivo como Javier Milei se encaixa?
Milei é um exemplo clássico de neoliberalismo. Chegou ao poder com a ajuda de uma rede neoliberal, a Rede Atlas, que coordena as atividades dos think tanks neoliberais de todo o mundo. Eles forneceram grande parte de sua política, de sua mensagem e seu marketing. Vemos um esforço coordenado a nível mundial, apoiado por algumas das pessoas e corporações mais ricas do planeta, para implementar uma forma específica de política.
A Argentina é agora um exemplo clássico de como esse sistema funciona e Milei é um exemplo perfeito de um político neoliberal que corta o Estado de bem-estar social, que destrói os serviços públicos, que abre os recursos às corporações, que derruba regulamentações que protegem os cidadãos comuns. Sua única preocupação é satisfazer o capital e seus lobistas. Milei representa o grande sonho neoliberal.
Precisa do autoritarismo para enterrar as desigualdades que gerou?
Uma das grandes ironias do neoliberalismo é que aqueles que primeiro formularam essa ideologia, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, disseram que estavam salvando o mundo do totalitarismo. Afirmavam que qualquer tentativa de gerar ação e tomada de decisão coletivas, de usar a política para mudar a vida das pessoas, era um caminho escorregadio em direção ao stalinismo ou ao nazismo. Que isso nos levaria ao totalitarismo. No entanto, como essas políticas são extremamente impopulares e afetam a maioria dos cidadãos, os Estados precisam se tornar cada vez mais autoritários. E enquanto desregulamenta a economia, oprime aqueles que tentam interferir em seu programa pró-capital.
Voltemos ao exemplo da Argentina. Milei diz que defende a liberdade, fala sempre em liberdade. Contudo, é um presidente muito autoritário. A liberdade é uma palavra que o neoliberalismo usa como arma. Se se opõe ao que eles pedem, você é contra a liberdade. São muito cuidadosos em não especificar a liberdade para quem, porque há bem poucas liberdades universais. A liberdade para um grupo é cativeiro para outro grupo. A liberdade do chefe para explorar seus trabalhadores é cativeiro para os trabalhadores. A liberdade da corporação para despejar produtos químicos em um rio é uma perda de liberdade para as pessoas que vivem daquele rio. Milei e tantos outros líderes políticos buscam a liberdade dos ricos, o que leva ao cativeiro dos pobres.
Como se combate esse triunfo narrativo? A palavra liberdade é muito poderosa e mobiliza.
Esse triunfo narrativo é muito perigoso. Somos todos a favor da liberdade. Todos nós queremos liberdade. E a liberdade é um valor excelente. É um valor que todos nós devemos buscar. No entanto, devemos reconhecer que a liberdade geral da sociedade depende da restrição das liberdades de pessoas extremamente poderosas e destrutivas. Então, quando Elon Musk é livre, as liberdades em todo os Estados Unidos são amplamente reduzidas.
Um caso clássico é o desmantelamento que está promovendo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). O homem mais rico do mundo quer destruir esta agência. E o resultado é que algumas das pessoas mais pobres do mundo precisam ficar sem comida, sem remédios, sem a ajuda essencial que necessitam. Ele é mais livre. Em consequência, eles são menos livres. Então, a liberdade é sempre um equilíbrio. Se quer libertar a população em seu conjunto, você tem que restringir muitas atividades do capital.
Julia Steinberger, uma estudiosa de referência no movimento climático, diz que não há vitória possível para o conhecimento científico, caso os tentáculos do neoliberalismo não sejam desmascarados. Você concorda?
Concordo plenamente. Julia é uma heroína para mim. É uma pensadora e cientista maravilhosa e uma das poucas que é capaz de contextualizar a ciência climática politicamente. O neoliberalismo é fortemente contra a ciência climática e a ambiental. Está constantemente buscando caluniá-las, retirar o seu financiamento, restringi-las. Ajudou a espalhar ficções conspiratórias escandalosas sobre cientistas do clima, dizendo que pesquisam só por dinheiro. Porque, como todos sabemos, se você quer ser um bilionário, torne-se um cientista do clima, assim, um dia você conseguirá até pagar o seu aluguel. Não se torne um executivo do petróleo porque que não recebem dinheiro algum.
Ironia à parte, é tudo tão ridículo que as pessoas que geram conhecimento valioso por muito pouco dinheiro são consideradas opressoras. Simplesmente por dizer aos neoliberais coisas que não querem ouvir: que esse sistema econômico não regulamentado leva ao colapso ambiental.
As redes sociais são o braço comunicativo do neoliberalismo?
Precisamos entender que o capitalismo é muito criativo em seus ataques à democracia. E encontrou duas ferramentas muito poderosas: o fascismo e o neoliberalismo. Agora, vemos um híbrido de fascismo e neoliberalismo em figuras como Trump, Milei ou Victor Orbán, e um de seus instrumentos mais poderosos são as redes sociais.
Pensávamos que os meios de comunicação tradicionais eram ruins o suficiente. Víamos a Fox News e a Rupert Murdoch como desproporcionalmente poderosas. No entanto, em comparação a Elon Musk ou Mark Zuckerberg, os empresários dos meios de comunicação parecem dirigir uma clínica de yoga.
Agora, vemos surgir um conjunto de poderes ainda muito mais perigosos dos que os meios de comunicação tradicionais. E a razão para isso é que as redes sociais penetram em nossas vidas de forma muito mais profunda do que os meios de comunicação tradicionais. Envolvem nossas mentes de forma muito mais eficaz e nos recrutam como soldados rasos contra nossos próprios interesses.
Portanto, mais desinformação, mais neoliberalismo.
A desinformação é essencial para qualquer sistema que atue contra os interesses da maioria da população. Trata-se de um sistema deliberadamente desenhado para agir em benefício das pessoas mais ricas do mundo, interesses que são diametralmente opostos aos interesses da grande maioria dos cidadãos do mundo. Portanto, sim, a única maneira de manter esse sistema vivo é por meio da desinformação. O neoliberalismo se sente muito cômodo no campo da desinformação.
Qual o papel da Inteligência Artificial nessa ideologia?
Estamos falando de uma tecnologia que pode ser usada de forma positiva e negativa, mas que não deixa de ser uma tecnologia muito ameaçadora. Atualmente, pode ser usada para nos manipular em um grau ainda mais sofisticado, com um nível superior ao que até agora as ferramentas informáticas padrão utilizaram. Isso representa uma ameaça adicional. Tornará muito mais fácil fazer vídeos deepfake, por exemplo, e que a reputação de muitas pessoas que lutam contra essa ideologia seja destruída por esses vídeos. Em definitivo, a IA vai gerar uma proliferação de desinformação muito maior do que a que vimos até agora.
Quais são os elementos que trazem esperança, se existem, para pensar que o neoliberalismo pode ser derrotado?
Uma coisa que aprendi nesses 40 anos em que trabalho como jornalista e ativista é que nunca se sabe de onde surgirá a esperança. Alguns anos atrás, eu estava me sentindo muito deprimido pelos problemas climáticos. Pensava que ninguém conseguiria lidar com isso, que nada iria mudar. De repente, uma estudante de 15 anos se senta fora do parlamento sueco e tudo começa a mudar. Os seres humanos são infinitamente inventivos. Temos um amplo leque de ferramentas à nossa disposição.
O que não está bem é que nos tornamos muito passivos. Não conseguimos desenvolver contranarrativas eficazes. Não conseguimos desenvolver uma história que explique para onde vamos e como chegaremos lá. Ficamos muito presos ao passado, obcecados com triunfos passados. Não há como voltar na história com uma política como esta. Temos que desenvolver novos sistemas, novos sistemas de pensamento, novas ideologias. E podemos aprender coisas com a forma como os neoliberais operaram. Eles entenderam como criar uma mudança de sistema. E é a mudança de sistema que devemos buscar. Nosso livro é uma contribuição para pensarmos no que podemos fazer para acabar com todas essas crises que estamos atravessando.