11 Janeiro 2025
Emmanuel Todd (Saint-Germain-en-Laye, 1951) é um dos intelectuais franceses cujo trabalho é um dos mais comentados no mundo. Suas obras A queda final (1976), que previu a queda da União Soviética, e Depois do Império (2002), que antecipou a derrota estadunidense no Oriente Médio, deram-lhe uma notoriedade que ultrapassa as fronteiras francesas.
A entrevista é de Rafael Karoubi, publicada por Diario Red, 05-01-2025. A tradução é do Cepat.
Antropólogo e demógrafo de formação, defende a tese de uma diversidade política fundamental entre as nações do mundo, devido às diferenças nas estruturas familiares originárias presentes no planeta. Todd voltou recentemente a ser tema de debate no mundo ao publicar sua última obra, A derrota do Ocidente, alertando as nações do mundo sobre o perigo representado pelas nações ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, para a estabilidade do mundo.
Descreve um mundo ocidental submerso em uma grave crise interna social, política e religiosa, que cai no niilismo e na autodestruição, e consequentemente fomenta os principais conflitos armados que sacodem o mundo. Neste sentido, Todd afirma que a OTAN é responsável pela eclosão da guerra na Ucrânia, mas não é capaz de vencê-la devido ao seu declínio econômico, industrial e educacional.
Para o antropólogo, o inevitável fracasso militar e econômico da OTAN contra a Rússia na Ucrânia marca o início do fim da dominação ocidental no mundo.
Até no título de seu livro você prediz “a derrota do Ocidente”. Para começar, o que você entende por “Ocidente”?
Em termos políticos, trata-se do Império Americano. Para ser mais preciso, eu diria que o conceito de “Ocidente" corresponde ao sistema de dominação estadunidense. É importante entender que os Estados Unidos exercem uma dominação financeira, política e militar sobre inúmeros países no mundo. Essa dominação pode ser natural em alguns casos, especialmente nos países da anglosfera (Reino Unido, Austrália, Canadá) ou então uma servidão voluntária, como no caso dos países escandinavos e a França. Também incluo no sistema estadunidense os países que foram conquistados pelos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial: Alemanha, Itália e Japão.
No entanto, sei que se fala muito de um “Ocidente” uniforme nos marcos religioso e cultural. Esta noção, na minha opinião, não faz sentido: não existe uma única cultura ocidental, mas, sim, uma grande diversidade entre os países que associamos ao mundo ocidental. Isto produziu diversos fenômenos políticos, caso reflitamos bem: democracia liberal, fascismo, nazismo, entre outros. A ideia de “valores” ocidentais uniformes é ridícula para o antropólogo que sou.
Sendo assim, minha análise antropológica das estruturas familiares antigas dentro da esfera ocidental me levou a distinguir dois grupos diferentes.
Em primeiro lugar, um Ocidente estruturalmente liberal em suas estruturas antropológicas e familiares, que inclui a França e os países anglo-saxões. Esses países se caracterizam historicamente por contar com estruturas familiares flexíveis, compostas por lares nucleares e um papel mais notório das mulheres em comparação a outras regiões, bem como por uma rápida saída dos filhos do lar familiar. Nesses países, a democracia liberal se desenvolveu com maior facilidade do que em outros lugares.
Em segundo lugar, um Ocidente mais autoritário, que inclui principalmente o mundo germânico, o Japão e a Coreia do Sul. Nesses países, as estruturas familiares tradicionais eram mais verticais, caracterizadas pela convivência do pai com um único filho herdeiro, dentro de uma casa matriz, e por um status limitado das mulheres. São países “não liberais”, mas certamente “ocidentais” devido ao seu desenvolvimento econômico e a sua proximidade política com os Estados Unidos.
É muito importante entender a diferença entre esses dois grupos de países para entender como a atual crise no Ocidente se desenvolve.
Em seu livro, você considera que a ascensão do protestantismo levou ao êxito do Ocidente. Que relação você estabelece entre uma religião particular e essa ascensão econômica?
O protestantismo original - que nada tem a ver com a sua versão herética, o evangelismo – é pouco conhecido em regiões de tradição católica como França, Espanha e América Latina.
Esse protestantismo se caracterizava por um sistema de constrição extrema sobre o indivíduo, manifestado em um superego rígido e autoritário, bem como por uma forte pressão exercida pela coletividade. Isto se traduzia, entre outras coisas, em uma ética do trabalho implacável e uma obsessão pela educação, considerada necessária para ter acesso aos textos sagrados sem a intermediação de um padre. Além disso, demonstrava indiferença em relação à noção de igualdade, devido à doutrina da predestinação.
Conforme demonstrado por Max Weber, o protestantismo foi um motor central na ascensão econômica do Ocidente. Eu penso que, por uma série de circunstâncias, esse protestantismo, ao alfabetizar e disciplinar populações inteiras, facilitou a ascensão econômica de uma parte do mundo. Por exemplo, a Alemanha foi o primeiro país a alfabetizar sua população em massa, muito antes da Revolução Francesa, e se tornou a principal potência industrial da Europa no início do século XX. A Inglaterra iniciou a Revolução Industrial, enquanto Suíça e Suécia alcançaram níveis notáveis de prosperidade e organização social.
Em seu livro, você demonstra que o capitalismo atual se libertou da ética protestante. Quais são as consequências desta transformação?
Meu livro reflete sobre as consequências do desaparecimento da prática religiosa protestante, que tanto contribuiu para o desenvolvimento econômico e educacional dos países onde se estabeleceu. Observamos hoje o desaparecimento da vantagem econômica e educacional das nações protestantes em comparação ao resto do mundo. Desde 1965, o nível educacional dos Estados Unidos está em declínio, como demonstram os resultados dos exames de aptidão em matemática e leitura.
Também somos testemunhas de um retrocesso na valorização do trabalho manual especializado e na formação de engenheiros. Os Estados Unidos e a Inglaterra estão se tornando incapazes de produzir industrialmente em larga escala, e a proporção da indústria em seu PIB cai frente aos serviços, especialmente as atividades financeiras. Em ambos os países, a proporção de estudantes que escolhem carreiras em engenharia é agora muito menor do que em outras economias ocidentais e nos países BRICS.
Afinal, esses dois países foram pioneiros de um novo sistema econômico – que eu chamaria de sistema de destruição econômica –: o neoliberalismo, cuja ideia central é ganhar dinheiro não apenas sem produzir nada, mas destruindo as forças produtivas. Uma ganância sem limites, em suma.
O desaparecimento da ética protestante marca, portanto, o declínio econômico, cultural e moral de nações como a Inglaterra e os Estados Unidos. Estes países estão agora submersos em crises sociais internas que ameaçam a estabilidade do mundo.
Você considera que as nações ocidentais estão perdendo a guerra na Ucrânia. Esta derrota é inevitável?
Absolutamente. A Ucrânia perdeu a guerra, tenho certeza disso. A indústria estadunidense não conseguiu produzir em massa para equipar o exército ucraniano, apesar das enormes ajudas financeiras conferidas ao governo da Ucrânia. Isto não era difícil de prever: os Estados Unidos formam significativamente menos engenheiros do que a Rússia, embora tenham uma população duas vezes maior.
Penso que a derrota estadunidense também pode ser explicada por sua incapacidade em mobilizar plenamente seus principais aliados industriais, como Alemanha, Japão e Coreia do Sul. Entre esses três países, a Alemanha era o alvo prioritário dos Estados Unidos, cuja obsessão estratégica era cortar seus laços econômicos e energéticos com a Rússia. Essa aproximação germano-russa ameaçava, a longo prazo, excluir economicamente os Estados Unidos da Eurásia. Por isso, ativaram um conflito inútil na Ucrânia que prejudica as relações entre a Rússia e a Alemanha.
A sabotagem dos gasodutos Nord Stream, claramente realizada pelos Estados Unidos, manifesta uma realidade sombria para a Alemanha: este país nunca foi verdadeiramente independente, desde a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha é um estado de soberania limitada, ainda ocupado militarmente pelos Estados Unidos e encaixado dentro da OTAN. Tem um governo democraticamente eleito, mas que não é soberano: só é livre para seguir os Estados Unidos, seja com má vontade ou com entusiasmo.
Os Estados Unidos parecem ter fracassado em seus esforços de mobilizar plenamente a Alemanha neste conflito. No entanto, nem tudo está dito: se a Alemanha e sua potência industrial chegassem realmente a se envolver na guerra, estaríamos em um grande perigo.
Você descreve os Estados Unidos como uma sociedade sem objetivos, nem valores, onde subsistem apenas “obsessões residuais pelo dinheiro e o poder”. Esta configuração também não existe em outros países, inclusive fora da esfera ocidental?
Entendo o sentido da sua pergunta, mas para melhor respondê-la, quero antes de tudo me referir à história religiosa das nações.
Na França, existe uma escola de pensamento que reúne inúmeros intelectuais, entre eles Marcel Gauchet, Olivier Roy e Régis Debray, que refletem sobre as consequências políticas e sociais do desaparecimento da matriz religiosa em uma sociedade. Isto não é particularmente surpreendente no país da laicidade e do anticlericalismo.
Inspirando-me em seus trabalhos e em minhas pesquisas, cheguei a distinguir três etapas na história religiosa de uma sociedade. Em primeiro lugar, a etapa da religião ativa, onde os valores religiosos estruturam e regem a vida social dos indivíduos. Depois, a da religião “zumbi”, onde o colapso da crença em Deus é compensado por religiões substitutas que impõem morais muito exigentes. O comunismo, o socialismo e o republicanismo me parecem ser exemplos desta categoria de “religiões zumbis”. Por fim, a terceira etapa, correspondente à nossa época, é a da “religião zero”: não existe mais nenhuma crença, e nenhum projeto religioso ou político consegue mobilizar as populações.
Neste ponto, levanto uma hipótese de trabalho: o surgimento de pulsões niilistas na sociedade. O indivíduo, em princípio libertado de toda crença e de qualquer valor restritivo, enfrenta a vertigem de sua nova liberdade. Diante da complexidade desta nova condição humana, observam-se fenômenos de conformismo social e intelectual, especialmente nas classes dirigentes, mas, sobretudo, vejo como reação mais comum uma deificação do vazio e uma perigosa rejeição da realidade tal como uma atração pela violência. Isto se chama niilismo. Voltarei a isto mais detalhadamente ao falar dos Estados Unidos contemporâneo.
Também penso que cada sociedade reage de forma diferente diante do vazio religioso e ideológico. Na Rússia, Alemanha e China, este vazio existe, é claro, mas o legado de estruturas familiares mais densas e complexas permite a estas sociedades manter uma forte organização social e industrial. A China e a Alemanha são hoje as principais potências industriais do mundo, ao passo que a Rússia está conseguindo vencer a sua guerra contra o Ocidente.
Ao contrário, nos países onde as estruturas familiares eram mais flexíveis e nucleares, os valores religiosos desempenhavam um papel muito mais importante na estruturação dos indivíduos. Seu colapso causa uma desorganização social muito mais acentuada.
Estamos assistindo a uma guinada histórica repleta de certa ironia. Durante a primeira crise da modernidade, marcada pela industrialização e pelo desenvolvimento do capitalismo, as sociedades que experimentaram transições menos violentas foram aquelas onde o individualismo era mais marcante, como o mundo anglo-americano e escandinavo. Ao contrário, na Alemanha, Rússia e China, a transição para a modernidade capitalista e industrial foi marcada por fases totalitárias de uma violência extrema: nazismo, stalinismo e maoismo.
Hoje, o desconcerto e a angústia mais intensos são encontrados nas sociedades desprovidas de um legado de estruturas familiares complexas. Esta falta de estruturação social constitui um terreno fértil para desvios políticos perigosos.
Gostaria de compartilhar uma reflexão que pode interessar aos leitores espanhóis e sul-americanos: o mundo anteriormente protestante me parece estar imerso em um processo de degradação social e moral ainda mais acentuado do que mundo anteriormente católico. Pergunto-me se países como os Estados Unidos e o Reino Unido, onde as desigualdades alcançam níveis repugnantes e onde as taxas de mortalidade estão aumentando, não alcançaram o que eu chamaria de “estágio -1” das crenças religiosas e políticas. Agora, penso na ideia de negatividade para descrever a sociedade estadunidense. Não observo nada tão extremo em países anteriormente católicos.
O que o leva a afirmar que a sociedade estadunidense atual é niilista e “negativa”?
Para entender a dimensão da angústia social nos Estados Unidos, não pretendo me basear em uma indignação moral, mas, ao contrário, ater-me aos fatos. Como bom herdeiro do sociólogo Durkheim, apoio-me em estatísticas que medem a saúde pública, como a taxa de suicídios, a mortalidade infantil e o nível de mortalidade acidental, para avaliar o estado de anomia de uma sociedade.
Os Estados Unidos não são esta sociedade em pleno dinamismo que as oligarquias europeias e sul-americanas costumam colocar em um pedestal… Ali, os conceitos de moda mobilizados pelos intelectuais são os de “diseases of despair” e “deaths of despair”, ou seja, as doenças e mortes relacionadas ao desespero. O diagnóstico é incontestável: a sociedade estadunidense alcançou um nível de degradação tal que as pessoas literalmente começam a morrer por conta disso.
Por exemplo, a taxa de suicídios quase duplicou desde o ano 2000 e agora ultrapassa a das nações europeias. Desde 2019, o aumento das mortes acidentais, violentas ou por insalubridade, especialmente por envenenamento ou doenças crônicas, levou a uma queda vertiginosa na expectativa de vida dos estadunidenses, que agora é inferior à dos chineses. Pior ainda, a mortalidade infantil – o indicador por excelência para medir a capacidade de uma sociedade de proteger os mais vulneráveis - está aumentando e já supera a da Rússia e talvez, logo, a da China.
Estes indicadores já dramáticos em si nem sequer conseguem ilustrar toda a dimensão da violência que o sistema estadunidense inflige à sua própria população. Existem fatos graves que refletem uma profunda imoralidade por parte das supostas “elites” estadunidenses. Por exemplo, o comportamento do sistema de saúde, que envenenou deliberadamente milhões de estadunidenses ao lhes fornecer analgésicos altamente viciantes e mortais, é revelador. Ainda mais grave é a incapacidade do Congresso em proibir essas substâncias, sob a influência de lobbies, o que ilustra o estado moral absolutamente deplorável das classes dirigentes.
É essencial que o leitor entenda que existe algo profundamente abominável no sistema estadunidense. Não se trata apenas de uma ausência de moralidade: é um niilismo ativo, que carrega consigo, como qualquer niilismo, uma atração pelo vazio e a morte. Isto se reflete na política externa do grupo dirigente do país, que sempre opta pela guerra ou pelo agravamento dos conflitos existentes.
Sua análise é particularmente sombria sobre os Estados Unidos, mas também sobre a Inglaterra. Você tem uma antipatia particular em relação a estes países?
Pessoalmente, gostaria que o leitor sul-americano entendesse que não tenho contas pendentes com os Estados Unidos. Historicamente, ao longo da minha vida, inclusive fui muito mais pró-americano e pró-anglo-saxão. Sinto uma dívida para com esse país, onde minha família materna judia se refugiou para escapar do nazismo. Esta análise severa dos Estados Unidos, mas também da Inglaterra, onde me formei como pesquisador na Cambridge, é para mim um verdadeiro drama pessoal.
Quero insistir brevemente na gravidade do declínio da nação inglesa para o mundo, não porque a Inglaterra continue sendo uma grande potência capaz de influenciar o destino global, mas porque constituía uma espécie de matriz intelectual e moral, um modelo de “referência” para as classes dirigentes estadunidenses, especialmente no âmbito educacional. Penso que o desaparecimento da cultura de referência inglesa gera consequências prejudiciais para a sociedade estadunidense.
Muitas vezes, você é chamado de “profeta” por ter previsto, em 1976, a queda da URSS. O que acontecerá nos próximos anos com os Estados Unidos?
O fracasso da guerra estadunidense na Ucrânia, tanto no campo de batalha quanto no terreno econômico, por meio das sanções, revela duas fragilidades principais: por um lado, a fragilidade industrial dos Estados Unidos e, por outro, o fato de terem se transformado em uma nação predatória, utilizando o dólar e sua supremacia financeira para dominar, intimidar e saquear outras nações. E, pouco a pouco, o mundo está percebendo esta realidade, exceto na Europa.
A curto prazo, os Estados Unidos enfrentarão uma derrota na Ucrânia. Isto me parece uma certeza. O primeiro papel de Donald Trump será administrar essa derrota nesta frente. Seu objetivo será claro: convencer a opinião mundial e seus rivais de que a derrota estadunidense na Ucrânia nada mais é do que uma derrota do exército ucraniano. Os Estados Unidos sempre tentaram jogar o peso de seus fracassos sobre os seus aliados. No entanto, desta vez, duvido que o mundo se deixe enganar por esse discurso. Testemunhamos algo extraordinário: na linha de frente, a indústria militar estadunidense foi superada por sua equivalente russa, e a economia do país de Vladimir Putin resistiu às sanções ocidentais.
No plano econômico, Donald Trump tentará revitalizar a indústria estadunidense, porque está consciente das graves carências de seu país neste marco. Por conseguinte, acentuará a guinada protecionista iniciada por Obama. À primeira vista, parece uma estratégia inteligente para resistir ao processo de desindustrialização: os Estados Unidos, graças ao seu tamanho e recursos, poderiam fazer uma política protecionista funcionar.
No entanto, penso que esta estratégia está condenada ao fracasso. O processo de declínio interno dos Estados Unidos está muito avançado.
Considera que Trump não conseguirá reindustrializar os Estados Unidos?
Não conseguirá, e por várias razões.
Primeiro, o país sofre uma desqualificação de sua mão de obra: faltam engenheiros e trabalhadores qualificados. Friedrich List, o grande teórico alemão do protecionismo, havia entendido perfeitamente que tal política só poderia ter êxito se uma nação contasse com uma mão de obra suficientemente competente. Caso intensifiquem suas medidas protecionistas, os Estados Unidos correm o risco de enfrentar desabastecimentos, o que traria consequências sociais incalculáveis em um contexto já marcado por uma forte degradação social.
Depois, um fenômeno igualmente grave dificultará o renascimento industrial esperado por Trump. A verdadeira riqueza dos Estados Unidos - seu PIB - não está em seus bens industriais, que exportam em quantidades muito inferiores a suas importações, mas na supremacia do dólar. Como moeda mundial, utilizada nos intercâmbios internacionais e como moeda de reserva para os ricos do mundo, o dólar confere à finança estadunidense um poder ilimitado de criação monetária e infla de forma artificial o PIB do país. Isto tem efeitos negativos nos povos de todo o mundo, mas também na economia estadunidense, que sofre uma patologia comparável à dos estados petrolíferos, onde a energia monopoliza os recursos nacionais em detrimento de outros setores econômicos.
Explico-me: nos Estados Unidos, grande parte da energia e dos investimentos da sociedade são dedicados à extração de dólares através do setor financeiro. Quando se tem dinheiro, sempre será mais lucrativo investir em atividades financeiras improdutivas do que na produção industrial. Além disso, um advogado tributário ou um banqueiro de investimentos ganhará muito melhor em sua vida do que um engenheiro ou um empresário industrial. Enquanto o dólar continuar sendo a moeda dominante do mundo, os Estados Unidos não conseguirão se reindustrializar.
O declínio brutal dos Estados Unidos é inevitável? Mesmo apesar do dinamismo de uma parte da sua sociedade?
Provavelmente. Especialmente porque tenho provas de que Trump parece não ter entendido as razões. Por exemplo, ameaçou os BRICS com tarifas altas, se parassem de usar o dólar como moeda de intercâmbio e de reserva. Ao agir dessa forma, Trump se apresenta tanto como defensor da supremacia do dólar quanto da indústria estadunidense, uma posição incoerente e contraditória.
Na realidade, os Estados Unidos são um império que teve muito êxito na história e que agora se baseia em rendas. A primeira é o dólar, a segundo são seus recursos excepcionais em hidrocarbonetos, e a terceira é o uso mundial do inglês, que lhes permite uma forte influência cultural e ideológica. Estas rendas também permitem que atraiam muitos jovens graduados do mundo todo, especialmente para polos dinâmicos como a tecnologia californiana e a finança de Nova York, mas, ao mesmo tempo, atrofiam o seu potencial produtivo. Sendo assim, aqueles que se apresentam como os “gênios” estadunidenses, como Elon Musk e Peter Thiel, nem sequer nasceram nos Estados Unidos. Pergunto-me se este país não tem o poder de emburrecer os jovens graduados mais promissores...
O caminho que os Estados Unidos estão tomando é preocupante. Acho difícil imaginar as consequências de um cessar abrupto do fornecimento mundial de mercadorias, que alimenta continuamente um país que produz cada vez menos bens reais para o mercado mundial. Não gosto dos desastres, mas é difícil não prever graves transtornos no futuro.
Menciona muito brevemente o conflito israelo-palestino no epílogo de seu livro. O que a política israelense te inspira? Trata-se do niilismo que você denuncia ou de “legítima defesa”?
Sejamos claros: independentemente da opinião que se possa ter sobre ambos os lados, uma pessoa psicológica e moralmente normal deve concordar com um fato: o que o Estado de Israel comete na Faixa de Gaza é monstruoso. Diante do drama que se desenvolve, não se trata mais de ser “pró” algo, mas simplesmente de estar do lado da humanidade. A política israelense vai contra todos os valores humanos fundamentais.
Também transparece uma realidade: os bombardeios israelenses são, na verdade, bombardeios estadunidenses, já que os Estados Unidos fornecem o material necessário para este massacre. Sem a ajuda estadunidense, Israel nunca teria sido capaz de massacrar tantas pessoas. Portanto, coloco esta atrocidade em paralelo ao estado de degradação moral absoluta das “elites” estadunidenses e seu niilismo. Estas elites não têm interesse, nem sequer em termos de poder, em apoiar uma guerra que, a longo prazo, as afasta de todos os seus aliados árabes. Isto se assemelha mais a uma forma de fascinação niilista pela violência e a guerra do que com uma estratégia de poder reflexiva e racional.
O problema é semelhante na Europa, especialmente na França: enquanto os cidadãos comuns entendem a monstruosidade do que está acontecendo, as classes dirigentes parecem dispostas a ignorar esta atrocidade. Mais uma vez, é difícil não ver sinais de um colapso moral aqui.
Sou extremamente pessimista quanto ao desencadeamento do conflito. Aqueles que olham com consternação as atrocidades cometidas pelo exército israelense em Gaza não parecem perceber que isto é apenas o começo do horror.
Considera que sofrimentos maiores virão para as populações do Oriente Médio?
Certamente, a situação no Oriente Médio piorará, pois a população israelense, devido ao efeito de entrada e saída do país, está se tornando cada vez mais violenta.
Os israelenses razoáveis, pressentindo a tragédia que se aproxima, estão deixando o país. Esta tendência, que começou há vários anos, foi acelerada desde os atentados de 7 de outubro de 2023. Esses migrantes se dirigem para os Estados Unidos, Europa e Rússia. Por outro lado, aqueles que se sentem atraídos pelo Estado de Israel, que nem sempre são judeus, parecem estar motivados principalmente pela violência e o desejo de combater os árabes.
Admito que ainda tenho dificuldade em entender como o Estado de Israel pôde chegar a esse ponto, embora eu esteja começando a me aprofundar na pesquisa sobre o assunto. Isto continua sendo um imenso drama para a história ocidental: proteger o povo judeu, vítimas do horror do Holocausto, era um imperativo moral indiscutível para os países ocidentais. Ver hoje um Estado que se autoproclama judeu envolvido em uma espiral de violência contra outro povo certamente provoca uma profunda angústia metafísica.
Como pessoa de origem judaica, descendente de uma família que fugiu do nazismo, tenho dificuldades em considerar que o Estado de Israel ainda seja realmente um “Estado judeu”. Massacrar pessoas de forma indiscriminada me parece totalmente contrário aos valores talmúdicos. É difícil não ver, neste país, como em muitos países ocidentais, uma forma de “religião zero” - um vazio de valores que alimenta o niilismo e a necessidade de violência.
Para encerrar esta entrevista, que lugar a América Latina e a Espanha ocupam no mundo de hoje?
Em suas estruturas familiares, assim como na Espanha, na França e no mundo anglo-americano, a América Latina se caracteriza por uma predominância histórica de famílias nucleares, o que a aproxima cultural e politicamente do Ocidente liberal. Penso que nela se encontra uma cultura às vezes ainda mais individualista.
No entanto, a América Latina sofre evidentemente a predação econômica dos Estados Unidos, o que explica o anti-imperialismo da esquerda latino-americana, que não se vê, por exemplo, na Europa Ocidental. Assim, ao se unir ao BRICS, formado por países que são muito diferentes em termos antropológicos, o Brasil se posiciona como um rival político dos Estados Unidos em todo o continente americano.
Quanto à Espanha, sem ser um grande conhecedor, identifico como principal ativo deste país o fato de não estar completamente fechado na Europa e no mundo ocidental. A internet e as redes sociais não aproximaram tanto aos povos geograficamente próximos quanto àqueles que compartilham uma mesma língua. Graças ao castelhano, que é seu principal ativo, a Espanha mantém assim um forte vínculo com a América Latina.
Sem dúvida, isto contribui para o dinamismo do país, apesar das restrições impostas pela sua pertença à União Europeia.
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“A crise do Ocidente é a crise do mundo”. Entrevista com Emmanuel Todd - Instituto Humanitas Unisinos - IHU