01 Julho 2024
“Diante da decomposição do sistema-mundo e a crise de legitimidade dos estados, pode ser a hora dos movimentos e dos povos”, conclui o jornalista e pesquisador Raúl Zibechi (Montevidéu, 1952), em um dos artigos publicados no jornal La Jornada (Entre la caída de occidente y transiciones inciertas), 31 de maio.
O escritor militante apresentou o ensaio de 252 páginas, Mundos otros, pueblos en movimento: debates sobre anti-colonialismo y transición en América Latina - publicado em maio por Zambra-Baladre, na Feira Alternativa de Valência (8 de junho). Outros livros recentes de Zibechi, junto com Décio Machado, são: El Estado realmente existente: del Estado de bienestar al Estado para el despojo (2023) e Navegar nuestras geografías (2023). A entrevista a seguir foi realizada por e-mail.
A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 25-06-2024. A tradução é do Cepat.
Em novembro de 1983, foi fundado o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que se levantou em 1º de janeiro de 1994, em Chiapas. Você dedica um artigo do livro ao zapatismo (Semear sem colher). Quais são as principais contribuições do movimento?
Muitas. Talvez a principal delas é a de que é possível, mesmo neste período tão difícil, continuar transformando o mundo. Não se renderam, não claudicaram, nem se venderam. A dignidade continua sendo a direção do zapatismo, segundo o que posso compreender. Penso que é muito para esta época.
Contudo, o que mais surpreende e entusiasma no EZLN é a sua capacidade de mudar a si mesmo, não apenas de mudar o mundo. Criaram os municípios autônomos e a juntas de bom governo, e agora as fecham porque acreditam que não são adequados para as situações que se avizinham. Fizeram uma autocrítica muito profunda, algo que a esquerda deixou no esquecimento, ao dizer que essas estruturas funcionavam de forma piramidal, separando as autoridades dos povos, e decidiram cortar a ponta da pirâmide ou invertê-la.
Nos últimos tempos, você constata novidades nas práticas do EZLN?
As iniciativas zapatistas sempre vão além. Agora, nestes novos 20 comunicados, apostam no “comum”, superando o conceito de propriedade, mesmo o de propriedade comunal ou comunitária. Convidam as pessoas que concordarem a ir até essas terras comuns para trabalhá-las, algo que nenhum movimento anticapitalista é capaz de fazer hoje, porque encarnam uma rejeição concreta ao capitalismo, não só discursiva como estamos acostumados em outros lugares.
Se eu tivesse que resumir, diria que a sua maior contribuição é a ética. Eles nos mostram que é possível fazer política a partir da ética de fazer o que dizem e de dizer o que fazem, e toda uma série de “princípios” que vêm divulgando nestes 30 anos, como o “mandar obedecendo”. E se propõem a lutar desde já para que as meninas e os meninos que nascerem dentro de sete gerações, 120 anos, sejam livres. No meu modo de ver, este semear sem eles próprios colher supõe uma mudança de fundo na cultura revolucionária.
Que análise geral você faz dos seis anos na presidência de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), após a vitória eleitoral - em 2 de junho - da candidata progressista Claudia Sheinbaum?
Militarizou o país, os desaparecimentos e os crimes continuaram, mas, além disso, as fronteiras, os aeroportos e as obras de infraestrutura foram entregues às forças armadas que agora impedem o protesto com a aplicação em massa da força.
Aprofundou o capitalismo no México. Fragilizou os movimentos e as resistências com programas sociais que concretamente agridem o tecido comunitário. Desempenha o papel de atenuar as migrações para impedir que mais pessoas cheguem aos Estados Unidos.
Em absoluto, não foi um governo popular. O seu apoio em massa se deve ao enorme desprestígio dos partidos da direita tradicional, como o PRI e o PAN, e às transferências monetárias para os setores populares.
Por outro lado, para os movimentos populares na Argentina, quais são as consequências da presidência, desde dezembro de 2023, do ultraliberal Javier Milei?
Agora, há mais repressão e mais pobreza. O alinhamento com os Estados Unidos e Israel mostra a cara geopolítica regressiva que também impede a integração regional, que já vinha em franca decadência. No entanto, não conseguiu romper com a China, como disse durante a campanha, porque o país asiático é o principal mercado das exportações agropecuárias argentinas.
Apesar da sua política profundamente antipopular, Milei mantém um amplo apoio em todos os setores da sociedade, o que se explica em grande medida pelo desprestígio da oposição, pois o governo progressista de Alberto Fernández deixou o país muito mal, com 100% de inflação anual e metade da população na pobreza.
Milei é o produto de uma sociedade em decomposição, um processo de longa data que teve um salto qualitativo na ditadura militar (1976-1983). Uma sociedade polarizada em que os jovens não têm futuro e cada parte considera a outra como se fossem estranhos ou estrangeiros. Uma sociedade que não reconhece as e os outros como parte do mesmo conglomerado humano.
Quais consequências prevê em relação às possibilidades de organização e mobilização dos coletivos sociais?
Há muita raiva acumulada e um grande desgaste nos movimentos, que passam por um período de acentuada fragilidade organizacional e falta de horizontes próprios. No curto prazo, não vejo alguma chance de recuperação dos movimentos, pois a deterioração ocorreu ao longo de mais de uma década em que as políticas sociais desempenharam um papel determinante na conversão dos movimentos em meros administradores desses programas e em colaboradores dos governos.
No entanto, existem pequenos núcleos que permanecem autônomos, mas não possuem mais a projeção que o movimento piquetero alcançou em torno do Argentinazo de dezembro de 2001. A minha perspectiva é que a reconstrução e a refundação dos movimentos devem superar a dependência das políticas sociais.
Em que sentido?
Em um primeiro momento, após 2001, fazia certo sentido utilizar os programas sociais para gerar organização, mas ao longo de duas décadas os movimentos se tornaram aparelhos de gestão com doses de corrupção interna e de controle da população receptora dos planos sociais.
Algumas organizações mapuches, alguns núcleos territoriais nas periferias urbanas e um pouco mais, seguem resistindo. Contudo, a maioria se mobiliza contra Milei para restaurar algum tipo de governabilidade progressista em que voltem a ter um papel de intermediários entre o governo e os movimentos. Será um processo longo e doloroso, porque há necessidades urgentes que ninguém cobre e uma repressão preocupante.
Em ‘Mundos otros y pueblos en movimiento’, você não se concentra apenas na América Latina. Que lições destacaria da resistência das mulheres no Curdistão?
As mulheres curdas e o pensamento crítico de Abdullah Öcalan são referências imprescindíveis para as lutas anticapitalistas e antipatriarcais.
As mulheres desenvolveram o seu próprio pensamento feminista (a Jineolojî) que não deve nada ao Ocidente, mas, sim, à sua própria experiência. São muito críticas ao feminismo acadêmico que busca somente um lugar melhor para as mulheres com formação universitária e exclui os homens.
Elas ergueram o Instituto Andrea Wolf, onde as mulheres do movimento trabalham com os homens em seu processo de despatriarcalização. Penso que é uma proposta muito interessante, muito complexa para ser implementada, mas necessária porque não se pode almejar a emancipação de apenas metade da humanidade.
Você mencionava o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Abdullah Öcalan, fechado nas prisões do Estado da Turquia há mais de duas décadas...
Quanto ao pensamento de Öcalan, penso que a sua crítica profunda ao marxismo economicista é tão necessária quanto pertinente. Öcalan diz que o capitalismo não é economia, mas poder, o tipo de poder que os Estados-nação encarnam. Por isso, o movimento curdo não luta pela criação de um Estado curdo, o que seria o mesmo que reproduzir a opressão que já sofrem.
Ao longo de seus livros, o líder curdo desenvolve um conjunto de análises que enriquece o pensamento crítico, muito estagnado e em retrocesso no Ocidente, onde a esquerda fez do pragmatismo a sua principal marca. Sinto que o EZLN e o PKK são os movimentos mais interessantes para nós que seguimos empenhados em superar o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.
Quais são as últimas ações protagonizadas na Colômbia pelo Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC): cerca de 200.000 pessoas de oito grupos étnicos?
O CRIC está passando por situações muito complexas. Por um lado, há uma presença cada vez mais forte de paramilitares e traficantes de drogas, em seus territórios do Cauca, assassinando homens e mulheres que se destacam na defesa das comunidades. Por outro, há um cerco político do progressismo de Gustavo Petro, que com suas políticas de apoio aos grandes proprietários de terra, combinadas com discursos que dizem defender os povos, geram confusão entre os indígenas nasa, misak e outros grupos.
Apesar da tendência à cooptação e à desorganização, considero que a Guarda Indígena continua sendo uma instância autônoma, capaz de assumir a defesa do território e avançar em ações muito fortes, como a que aconteceu durante a paralisação de três meses em Cali.
O que aconteceu durante a revolta social de 2021, na capital do Valle del Cauca?
Cali é uma cidade de dois milhões de pessoas, a maioria afrodescendentes que são a parcela mais pobre da população. Durante a paralisação, foram criados 25 pontos de resistência onde as juventudes ensaiaram as formas de vida que desejam, com muita confraternização e criatividade. No entanto, houve uma repressão brutal que deixou 40 mortos na cidade e também um grande número de desaparecidos.
Nessa situação, cerca de 10.000 guardas foram até Cali, com mais de uma hora e meia de estrada, para apoiar jovens que não conheciam, que têm uma cor de pele diferente, outros modos e costumes. Permaneceram por semanas em Cali, contribuindo com os seus conhecimentos de autodefesa. Penso que este gesto fala por si da capacidade dos povos originários do Cauca e, concretamente, da Guarda Indígena, em agir de forma solidária, generosa e autônoma.
Na coletânea de artigos, você destaca as análises do filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis acerca do marxismo, bem como as interpretações do sociólogo peruano Aníbal Quijano. Por quais motivos você se interessa por estes dois autores?
Castoriadis porque compreendeu a fundo os problemas da herança revolucionária comunista, os seus limites e os aspectos que reproduzem o sistema. Compreendeu em especial as amarras daqueles que militam em um partido hierárquico no momento de formular críticas ou abandoná-lo, os problemas que uma atitude independente traz para os militantes formados em uma cultura opressiva e hierárquica.
O pensamento de Quijano é muito importante para nós que vivemos na América Latina. Seu trabalho posterior à queda do socialismo real demonstra criatividade e compreensão da realidade. Analisa em detalhes as particulares relações sociais existentes, que sintetiza na “heterogeneidade histórico-estrutural”.
Pela primeira, entende as diversas origens e trajetórias dos povos que habitam este continente, pertencentes às duas civilizações que povoam o planeta, um caso único no mundo. A segunda supõe compreender que existem cinco relações com o trabalho: salário, escravidão, servidão, reciprocidade e iniciativa mercantil e produtiva familiar, ou seja, a chamada informalidade. Todas elas controladas pelo capitalismo, mas com espaço-tempos próprios.
Por que considera que essa conceituação é relevante?
Isto é muito importante porque os movimentos mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial (como os sindicatos), mas de espaços em que predominam a reciprocidade, a servidão e a informalidade. O zapatismo, os nasa e misak, os mapuche, nascem em propriedades onde existiam relações de servidão, mas também em comunidades onde a reciprocidade é uma prática crucial, para dar um exemplo.
Estamos acostumados a pensar a política de esquerda ancorada nos assalariados organizados, mas não sabemos como se faz política em chave comunitária, partindo dos mercados populares e dos bairros periféricos.
Qual é a diferença?
Quando se faz política a partir da comunidade, da produção de valores de uso e não de mercadorias, os lugares e os modos dessa política vão ser muito diferentes daquela que se funda na representação diante do Estado.
Então, Quijano nos abre uma porta para compreender melhor as resistências em nosso continente. É profundamente antieurocêntrico, mas não a partir de um teoricismo abstrato, mas da realidade concreta dos povos que lutam.
Por último, quais movimentos sociais emergentes – e quais setores – você destacaria na América Latina?
Há povos e lutas que já são patrimônio dos que resistem: o zapatismo e o povo mapuche, no Chile e na Argentina, pelo menos. No entanto, vejo que os povos amazônicos no Brasil e no Peru estão transitando caminhos de autonomia e autogoverno como a melhor forma de defender seus territórios frente ao extrativismo e a violência do capitalismo.
No Peru, existem nove governos territoriais autônomos, na região fronteiriça com o Equador, e no Brasil 64 povos indígenas, em 48 territórios, estão criando protocolos autônomos de demarcação de seus territórios. Também no Brasil existe a Teia dos Povos (Rede de Povos) onde convergem povos indígenas, quilombolas (comunidades negras) e assentamentos sem terra (não o MST), em uma nova e combativa coordenação não hierárquica que está se expandindo de forma notável.
Vejo como as comunidades garífunas de Honduras e as maias da Guatemala se adiantam em resistências muito importantes à expansão do modelo de espoliação e que as comunidades aymaras do sul do Peru estão debatendo como seguir a luta contra o governo de Dina Boluarte e a oligarquia.
Em conclusão…
Há muito mais e acredito que surgirão novas resistências da decomposição da sociedade argentina, menos centralizadas do que aquelas que já conhecemos, que entraram em colapso frente ao progressismo. E os feminismos continuarão nos surpreendendo positivamente, em particular os populares, negros e indígenas.
Enfim, assim como existe um regime cada vez mais repressivo e opressivo, também há poderosas resistências e renovação, o nascimento de novos coletivos e confluências aos quais devemos estar atentos.
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“Os movimentos mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial”. Entrevista com Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU