01 Abril 2024
O Santa Sé acredita que Israel está conduzindo um genocídio em Gaza? O Papa Francisco pediu à Ucrânia que se rendesse quando se referiu a "levantar a bandeira branca" em uma entrevista com a Rádio e Televisão Suíça em fevereiro? A Santa Sé pretende renovar o acordo provisório com a China sobre a nomeação de bispos?
Essas são algumas das perguntas às quais Dom Paul R. Gallagher, secretário das Relações com Estados e Organizações Internacionais do Vaticano – comumente conhecido como seu ministro das Relações Exteriores – respondeu nesta entrevista exclusiva com o correspondente da revista America no Vaticano. A conversa foi realizada na manhã de 25 de março na Secretaria de Estado do Vaticano.
Nascido em Liverpool, Inglaterra, em 1954, Gallagher ingressou no serviço diplomático da Santa Sé em 1984 e, posteriormente, serviu em suas missões diplomáticas na Tanzânia, Uruguai, Filipinas e no Conselho da Europa em Estrasburgo, antes de servir como núncio na Burundi, Guatemala e Austrália. O Papa Francisco o nomeou secretário das Relações com Estados em novembro de 2014.
A entrevista com Paul R. Gallagher é de Gerard O’Connell, publicada por America, 26-03-2024.
O senhor participou da Conferência de Segurança de Munique em fevereiro, que discutiu os principais problemas de segurança enfrentados pelo mundo hoje. Quais conclusões o senhor trouxe dela?
Em primeiro lugar, havia uma ansiedade palpável sobre a situação internacional e de segurança, para onde o mundo está indo, para onde a sociedade está indo. Havia grandes preocupações com a Ucrânia e Gaza. Houve, ao mesmo tempo, um esforço para ver o lado positivo porque há um perigo de estarmos em uma situação de "perder-perder". Não há dúvida: há um clima diferente, mais preocupado, dentro da comunidade internacional neste momento.
A maior preocupação na conferência de Munique foi para a Ucrânia ou Gaza?
Acredito que a preocupação está igualmente dividida. Mas acho que a situação humanitária extrema, a gravidade da situação humanitária em Gaza, era muito evidente nas preocupações das pessoas. Infelizmente, a guerra na Ucrânia tem sido longa, e as pessoas estavam cientes do perigo indesejável de resignação diante da situação de um conflito que não parece ter um fim à vista.
O Papa Francisco repetidamente pediu um cessar-fogo em Gaza, a libertação de reféns, a provisão de ajuda humanitária e o respeito ao direito internacional. Como o senhor interpreta a recusa de Israel em interromper os bombardeios em Gaza e abrir as portas para a ajuda humanitária?
Eu suponho que a percepção da ameaça representada pelo Hamas para Israel seja muito diferente em Israel do que é para a comunidade internacional. É por isso que eles são tão inflexíveis em sua posição e nas políticas que estão seguindo. O ataque de 7 de outubro foi uma experiência tão traumática para os israelenses que eles sentem que esta é a única escolha que têm no momento. Como Santa Sé, discordamos da reação militar. Como você disse, o Santo Padre pediu um cessar-fogo e a entrega de ajuda humanitária. Obviamente, Israel concorda muito com os apelos do Santo Padre para a libertação dos reféns, que têm sido constantes.
Os Estados Unidos repetidamente usaram seu veto no Conselho de Segurança da ONU para proteger Israel. Desde 7 de outubro, eles o utilizaram três vezes para bloquear resoluções que pedem um cessar-fogo. Como o senhor interpreta esse tipo de política?
A estreita aliança de defesa entre os Estados Unidos e Israel é um pilar muito importante de ambas as políticas, e portanto é extremamente difícil para eles modificarem sua política. Assimi, penso que a posição americana é continuar a insistir na modificação da política de Israel.
Muitos afirmam que o que está acontecendo em Gaza é genocídio ou algo próximo ao genocídio. Como a Santa Sé interpreta isso?
Não cabe à Santa Sé determinar o que é uma situação genocida. Existem organizações internacionais que têm essa responsabilidade, e tenho certeza de que assumirão essa responsabilidade no devido tempo.
Pessoalmente, sinto que não se pode usar o substantivo "genocídio" porque isso é um julgamento tão definitivo, que tem um significado preciso no direito internacional. No entanto, dadas as estatísticas, o sofrimento, os 32.000 mortos, de acordo com algumas estimativas – muitos mais feridos e milhões de pessoas deslocadas – acho que muitos estão usando o adjetivo "genocida" como característico disso. De qualquer forma, temos que continuar insistindo e tentar acabar com isso. Nossa preocupação é ver um fim ao sofrimento e ao conflito, um fim aos assassinatos e, portanto, acho que não é útil para nós sermos os que emitem um julgamento neste momento.
Muitos dizem que Israel está realizando punição coletiva e o uso da fome como arma de guerra contra o povo de Gaza. Seria correto dizer que a Santa Sé considera isso uma violação do direito internacional e um crime contra a humanidade?
O papa e a Santa Sé denunciaram essas coisas e a total insuficiência da ajuda humanitária que chega, sem mencionar os relatórios do iminente perigo de fome, que são profundamente preocupantes.
A Santa Sé concorda com o corte de financiamento da UNRWA conforme proposto por Israel e agora sendo realizado por vários países, incluindo os Estados Unidos? [Em janeiro, as Nações Unidas demitiram 12 de seus funcionários que foram acusados por Israel de participar do massacre de 7 de outubro.]
Não! A Santa Sé leva a sério as alegações que foram feitas contra a UNRWA. Ao mesmo tempo, no entanto, vemos a UNRWA como fazendo uma contribuição crucial neste momento, e não apenas em Gaza, mas também em quatro ou cinco países do Oriente Médio onde estão os palestinos. Encorajamos alguns dos países que retiraram seu financiamento a reconsiderarem isso. Apoiamos muito o que a UNRWA está fazendo. Aceitamos que seria extremamente difícil substituir isso. Quando as investigações [sobre as conexões da UNRWA com o Hamas] forem concluídas, quando as decisões forem tomadas, haverá mudanças. Mas eles já estão fazendo mudanças, e isso continuará.
O senhor visitou recentemente a Jordânia. Encontrou-se com os bispos e representantes das igrejas na região; encontrou-se com o rei da Jordânia, o ministro das Relações Exteriores e o chefe da UNRWA. O que você retirou de todas essas reuniões?
Acho que no contexto jordaniano – e lembre-se de que a Jordânia e o Egito foram os dois países do Oriente Médio que chegaram a acordos com Israel ao longo dos anos – saí com a impressão de que havia uma tristeza profunda e decepção pelo fato da situação ter se deteriorado tanto em suas relações com Israel. Esta é uma situação que resultou da falta de progresso ao longo das últimas décadas em tentar trazer uma solução para a questão palestina.
Ainda vê a solução de dois estados como o caminho para a paz entre israelenses e palestinos?
Sim. Pode ser um indicativo, mas se voltarmos alguns anos atrás, a Santa Sé ainda estava falando sobre a solução de dois estados quando muitas pessoas a descartaram e acharam que era impossível. Agora, talvez isso seja um pouco de luz no fim do túnel em uma situação muito sombria, já que as pessoas estão começando pelo menos a falar sobre isso novamente, e algumas pessoas realmente acreditam que este é o único caminho a seguir.
Mas não entramos na questão de Jerusalém e qual deveria ser sua capital. Acreditamos que, como capital religiosa das três grandes religiões monoteístas, Jerusalém deveria ter um status especial, que deveria ser garantido por meio de alguma forma de garantias internacionais.
Acha que Israel, por sua presente intransigência em Gaza, está minando sua própria segurança? Afinal de contas, ele está vivendo em uma região árabe.
Acho que é um perigo, sem dúvida. Mas não se pode deixar de sentir que os objetivos que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estabeleceu no início da guerra – ou seja, a destruição do Hamas, a desativação do Hamas para que nunca mais representasse uma ameaça para Israel – bem, obviamente, isso pode ser parcialmente obtido. Mas é tão grande o sofrimento do povo palestino, tantas são as vítimas, vítimas inocentes, que não se pode deixar de sentir que isso está preparando uma geração futura de terroristas que representarão uma ameaça para o futuro de Israel.
O Papa Francisco pediu negociações para encerrar a guerra na Ucrânia. Alguns interpretaram sua sugestão de que a Ucrânia levante "a bandeira branca das negociações" como um apelo à rendição; a Rússia aplaudiu isso, mas o Vaticano disse que isso não era verdade. O senhor poderia explicar a posição de Francisco? Ele está pedindo que a Ucrânia levante a bandeira branca para se render?
Não. Ele não está. Não há dúvida de que ele esteja pedindo à Ucrânia que se renda. Trata-se de sua preocupação com a Ucrânia e de sua compreensão da situação em que o país se encontra. Afinal, a imagem da bandeira branca foi algo introduzido pelo jornalista suíço [na entrevista com o papa]; eles estavam falando sobre o simbolismo do branco. Acredito que para o papa, era mais sobre a bandeira branca no sentido de invocar proteção a um processo de negociações, que no final deve acontecer. Todas as guerras terminam de alguma forma em negociações.
Ele não está dizendo que a Ucrânia deve se render, mas está dizendo que em algum momento é preciso encontrar coragem para avançar e invocar a proteção para negociar. E essa também é a posição da Santa Sé, porque a Rússia frequentemente afirmou estar disposta a negociar.
Mas, para nós, a Rússia não estabelece as condições necessárias. As condições necessárias, que estão no poder da Rússia, são parar os ataques, parar os mísseis. Isso é o que a Rússia tem que fazer.
Quando o entrevistei em julho de 2022, o senhor afirmou que a Santa Sé pede por uma "paz justa" na Ucrânia, e quando questionei o que significa uma paz justa, ouvi que, para a Santa Sé, significa "que a Rússia deve se retirar de todos os territórios da Ucrânia". Essa ainda é a posição da Santa Sé?
Ainda apoiamos a integridade territorial da Ucrânia. Não endossamos que os limites dos países devam ser alterados pela força. Portanto, essa continua sendo nossa posição. Consideramos isso uma posição justa, e essa é nossa posição em relação à Ucrânia.
Ao mesmo tempo, também reconhecemos o direito da Ucrânia de tomar quaisquer medidas que possam viabilizar um acordo para uma paz justa, mesmo em relação aos seus territórios. Mas isso não é algo que podemos impor ou esperar da Ucrânia. Se a Ucrânia e seu governo desejarem fazer isso, isso está inteiramente a seu critério.
Qual é o verdadeiro estado da relação da Santa Sé com Moscou nos níveis mais altos? Pergunto isso porque notei que quando o Cardeal Matteo Zuppi foi a Moscou como enviado do papa, ele foi recebido em um nível governamental muito mais baixo do que em qualquer dos outros três países para os quais ele foi, ou seja, Ucrânia, Estados Unidos e China. Parece que enquanto a Rússia faz comentários públicos simpáticos à imprensa sobre o Papa Francisco, na prática, ela mantém uma certa distância dele.
A Rússia repetidas vezes afirmou que acreditava que aquele era o nível certo para um enviado do Santo Padre ser recebido, ou seja, por alguém que fosse um conselheiro presidencial. Isso aceitamos, mas gostaríamos de pensar que no futuro, se o Cardeal Zuppi retornar a Moscou, ele poderá ser recebido em um nível mais alto. Achamos que isso seria apropriado.
Existe a possibilidade de o Cardeal Zuppi retornar a Moscou?
Eu acredito que o papa está disposto a fazer o que for necessário. Se ele acredita que isso ajudaria a encerrar a guerra e alcançar uma paz justa, acho que sim.
Existe alguma possibilidade de o papa ir a Moscou? Eu acredito que não há nenhum convite de qualquer tipo vindo de Moscou.
Que eu saiba, não. Mas, como você sabe, o papa sempre disse que iria às duas capitais juntas, ou que programaria duas visitas – a Moscou e a Kiev.
A Santa Sé e a China assinaram um acordo provisório sobre a nomeação de bispos no continente em Pequim em setembro de 2018. Esse acordo já dura quase seis anos, apesar das desvios unilaterais de Pequim. Pergunto: Será revisado, renovado por mais dois anos ou renovado permanentemente em outubro próximo, quando está previsto para terminar?
Ele expirará em outubro próximo e, se quisermos continuar, terá que ser renovado. Ainda acreditamos que o acordo seja um meio útil para a Santa Sé e as autoridades chinesas lidarem com a questão da nomeação de bispos. Gostaríamos de vê-lo funcionando melhor, com mais resultados, e ainda acreditamos que seja capaz de melhorias. Por isso, não acredito que estejamos falando de qualquer possibilidade de [terminá-lo]. Como acreditamos que melhorias poderiam e deveriam ser feitas, não parece apropriado decidir de forma definitiva.
Entendo que vocês desejam melhorias nesse acordo provisório, mas lembro que, antes da Santa Sé assinar o acordo, ela queria discutir outras questões também, mas o lado chinês sempre disse que lidaríamos com as outras questões apenas após a assinatura do acordo. Pelo que entendi, agora os chineses têm sido muito relutantes em abordar ou avançar em outras questões. Até agora, vimos algum movimento ou desenvolvimento real em outras questões?
Não, porque o acordo trata da nomeação de bispos, e é sobre isso que o diálogo ainda está ocorrendo. Obviamente, quando os delegados se encontram, eles discutem outros aspectos da vida da igreja na China, mas no momento não há negociações significativas sobre outras questões.
Então, a possibilidade de um escritório da Santa Sé em Pequim não está em debate?
Bem, sempre acreditamos que algo assim seria útil.
Mas não há disposição ou abertura deles até o momento sobre essa questão.
Não.
Há algum movimento por parte de Pequim em relação à questão dos bispos e comunidades clandestinas?
Acreditamos em discutir a normalização da situação.
Há algum movimento positivo por parte de Pequim sobre este assunto?
Estamos lidando com o que estamos lidando.
Quanto à permissão para que os bispos chineses venham livremente a Roma e para que o Vaticano possa enviar seus representantes à China, houve algum desenvolvimento?
Estamos muito felizes que isso tenha acontecido em algumas ocasiões. Estamos esperançosos de que esses bispos [que participaram do sínodo de outubro de 2023] possam voltar ao Sínodo em outubro.
Os mesmos?
Como o sínodo de outubro será composto pelos mesmos membros que participaram do último sínodo, suponho que os mesmos chineses virão também. Mas eles podem não ser os mesmos, e tenho certeza de que se eles disserem: "Vamos enviar outros dois", isso também pode ser aceitável para nós.
Além disso, não devemos esquecer que houve boas trocas entre o bispo de Hong Kong e os bispos no continente. As visitas fraternas estão ocorrendo, embora não sejam muitas. Mas alguns bispos estão saindo e tendo mais contatos, e só podemos encorajar isso.
Mas o senhor não se encontrou com seu colega na conferência de Munique como aconteceu há alguns anos?
Não, ele não pediu, e eu não pedi. Você sabe, os chineses querem que as coisas se desenvolvam gradual e naturalmente, e podem querer levar o diálogo para um nível ligeiramente mais alto.
Então, há a possibilidade de o Cardeal Pietro Parolin se encontrar com seu colega em algum momento?
Sempre há uma possibilidade, mas não há nada concreto planejado.
Quanto ao papa se encontrar com o presidente chinês, há alguma possibilidade de isso acontecer?
Bem, como você sabe, o papa diz que está sempre disposto a se encontrar com o presidente, mas no momento não há nenhum convite. Os chineses diriam: "O momento não é certo; os tempos não estão maduros".
O senhor vai ao Vietnã em abril. O que é necessário para estabelecer relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Vietnã?
É uma questão de estabelecer a vontade política para isso. Estamos muito satisfeitos com o progresso que foi feito e temos um representante papal residente em Hanói. Acredito que nossa prioridade no momento é garantir que isso funcione – o que é benéfico para a comunidade católica, para os bispos e fiéis no Vietnã – e que as autoridades se acostumem com o fato de ter alguém representando a Santa Sé lá. Acredito que essa é nossa prioridade.
Entendo que é possível que o papa vá ao Vietnã sem relações diplomáticas.
Seria um pouco incomum, mas nada deve ser descartado.
Entendo que a visita do papa a Indonésia, Singapura, Timor Leste e Papua-Nova Guiné agora foi transferida para o início de setembro.
Sim, é o que eu entendi.
E o Vietnã poderia ser adicionado a essa visita?
Poderia ser.
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Ministro das Relações Exteriores do Papa Francisco sobre Gaza, Ucrânia e o futuro da igreja na China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU