A invasão da Ucrânia pela Rússia e a resposta do Ocidente a isso estão forçando a Igreja Católica a discernir novamente como testemunhar as exigências evangélicas de paz e justiça.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, em artigo publicado em La Croix International, 14-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os problemas de comunicação nunca são apenas problemas de comunicação. E isso é verdade também na Igreja. É o caso do Papa Francisco e de sua recente entrevista à emissora suíça RSI, na qual ele usou palavras pouco claras para apelar à paz na Ucrânia.
Gravada no mês passado, embora só seja transmitida no dia 20 de março, essa entrevista – durante a qual o papa nem sequer menciona a Rússia – representa algo mais do que uma “barrigada” da mídia. Sim, Francisco deveria dar menos entrevistas e não ser casual em sua linguagem sobre questões incrivelmente delicadas e complicadas, como as guerras atualmente travadas na Ucrânia e em Gaza.
Mas há algo mais profundo aqui, que tem a ver com “os sinais dos nossos tempos”. O Concílio Vaticano II (1962-1965) afirmou que “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho” (Gaudium et spes, n. 4). O Concílio ocorreu há 60 anos, quase 20 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e bem no meio da Guerra Fria. A expressão “os sinais dos tempos” referia-se a uma série de coisas: um novo senso de consciência do papel da Igreja na história; a melhoria de vida da classe trabalhadora; o novo papel social das mulheres; a formação de uma consciência internacional; a libertação do colonialismo; e, especialmente, o fato de os cristãos terem aprendido algo com os acordos com o fascismo e o nazismo na primeira metade do século. Havia a sensação de que a humanidade estava dando um passo à frente.
Mas hoje, no século XXI, a noção de sinais dos tempos é mais complicada. Há alguns sinais positivos: o reconhecimento de que as mulheres devem ter um papel mais importante, não apenas na sociedade, mas também na Igreja; uma nova compreensão da homossexualidade; e o Antropoceno na corrida urgente para proteger a criação. Esses são sinais sobre os quais a Igreja global não tem uma voz unificada, embora haja um horizonte à nossa frente.
Mas existem dificuldades ainda mais profundas em lidar com os nossos tempos históricos. O “dever de investigar os sinais dos tempos” significa olhar para as mudanças de longo prazo na nossa cultura que não podem ser identificadas em um momento singular. Significa também prestar atenção aos grandes acontecimentos mundiais que dizem algo sobre as trajetórias que percorremos como comunidade de indivíduos, assim como uma comunidade de nações, países e organizações internacionais.
Um dos sinais dos nossos tempos – e não é um sinal sobre o qual a Igreja seja clara ou unânime – é a expansão da aliança militar pós-Segunda Guerra Mundial, em grande parte dominada pelos Estados Unidos, conhecida como OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Desde sua criação em 1949, o número de membros da OTAN aumentou de 12 para 32 países ao longo de 10 rodadas de expansão. A Suécia tornou-se o último país a aderir à aliança em 7 de março, depois da Finlândia ter tornado se membro em abril do ano passado.
Em um artigo publicado recentemente na eminente revista jesuíta Theological Studies, o eticista católico estadunidense Gerald Beyer oferece uma história sintética, mas reveladora, da avaliação da Otan pela Igreja Católica desde a Guerra Fria até ao presente. Ele defende de forma convincente a razão pela qual é um dever moral para o Ocidente expandir a aliança a fim de se proteger da Rússia de Vladimir Putin.
Beyer argumenta que a existência e a ampliação da OTAN se justificam à luz do direito das nações à autodeterminação e à defesa legítima de acordo com a ética da solidariedade, tal como entendida na tradição social católica. Ele argumenta ainda que a expansão da Otan não só se justificava após o colapso da União Soviética em 1989, mas também deveria estar aberta a permitir que a Ucrânia e os países da região aderissem à aliança de acordo com os princípios acima mencionados do ensino social católico.
A ampliação da Otan é um dos sinais dos tempos porque faz parte de um quadro mais amplo que se desdobrou desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022 – a saber, o rearmamento da Europa (mesmo em países como a Alemanha, onde isso era um tabu depois de 1945) e o retorno das doutrinas da guerra justa (não apenas na Igreja).
Há também um contexto histórico mais amplo a ser considerado. Após a retirada da Grã-Bretanha da União Europeia em 2016 (Brexit), houve uma tentação de “continentalizar” a Europa – não apenas cortando os laços com sua ala ocidental no Reino Unido e com o Oriente com a Rússia, mas também através da fortificação da fronteira meridional com o Mediterrâneo, que já não é um “mare nostrum”, mas sim uma zona-tampão contra o Oriente Médio e uma África muito mais distante.
Quais são os valores que orientam hoje o nosso modo de “investigar os sinais dos tempos”? É evidente que há uma diferença entre o apelo do Papa Francisco ao desarmamento como um “dever moral”, que ele afirmou durante seu discurso no Ângelus do dia 3 de março, e a mensagem sobre a guerra e uma paz justa que o Sínodo dos Bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana emitiu quase um mês antes. Intitulada “Resgatar os oprimidos das mãos do opressor”, a mensagem foi aprovada durante a 96ª sessão do Sínodo, que foi realizada de 7 a 8 de fevereiro em Lviv. Vê-se um forte contraste entre a visão do papa sobre a guerra na Ucrânia e a advertência vinda da Igreja Greco-Católica Ucraniana.
“A fim de alcançar uma paz fictícia, os pacifistas estão frequentemente dispostos – consciente ou inconscientemente – a tirar a responsabilidade dos perpetradores da paz. Os argumentos variam e às vezes são até altamente morais, como o desejo de evitar mais perdas humanas. Esse é o argumento que é frequentemente levantado no contexto da agressão em grande escala da Rússia contra a Ucrânia”, diz a mensagem da Igreja Greco-Católica Ucraniana.
Essa tensão palpável entre o Vaticano e os católicos da Ucrânia não é apenas um problema diplomático ou político. A questão que todos enfrentamos agora é onde podemos encontrar uma expressão mais plena para o Evangelho no nosso contexto histórico, onde vemos os “sinais dos tempos”. Será trabalhando por um cessar-fogo e depois forjando a paz por meio da renúncia aos meios militares e da prática da “não violência ativa”? Ou será defendendo os valores da democracia, da autodeterminação dos povos e do respeito pelas minorias, confrontando militarmente agressores como Putin, que nunca guardou mistério sobre o que quer fazer da Ucrânia?
Independentemente do que se pense sobre essas duas opções, é claro que se abrem enormes lacunas diante de nós: entre um papa que demonstrou uma abertura nova e sem cerimônias em relação aos meios de comunicação social e um Vaticano que tem uma longa tradição diplomática de trabalhar discretamente nos bastidores; entre a visão de mundo de Francisco e o segundo presidente católico dos Estados Unidos (que conta com o apoio dos líderes dos católicos ucranianos também na diáspora); entre as visões do “Velho Mundo” defendidas pelos líderes políticos na Europa e na América do Norte e as perspectivas muito diferentes adoptadas pelas Igrejas emergentes no Sul Global.
Esse é um problema para a geopolítica do catolicismo. Francisco, que não vem do “primeiro mundo”, enterrou um certo alinhamento que existia nas últimas décadas entre o Vaticano e a geopolítica do catolicismo nos países da Otan, em que os católicos liberais-progressistas enfrentam agora o dilema do que fazer com a Rússia de Putin. Os católicos na Ásia, na África ou na América Latina não enfrentam esse dilema.
Outra coisa também aconteceu nos últimos dois anos. A abordagem do papa à invasão russa da Ucrânia também reabriu indiretamente uma discussão sobre o significado, para os católicos que levam a sério o Vaticano II, de “investigar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho”. Não é a rixa habitual entre liberais e conservadores, católicos pró-Vaticano II e católicos anti-Vaticano II. Há questões profundas que o Concílio não abordou.
A tradição teológica e magisterial pós-conciliar, com a ajuda de Francisco, ainda está tentando encontrar seu caminho para enfrentá-los. Uma dessas questões diz respeito aos limites morais da autodefesa na era da guerra nuclear.
A tarefa mais urgente é distinguir a mudança profética e evangélica no ensino da Igreja rumo a um cristianismo empenhado na construção da paz de um certo tipo de pacifismo católico do pós-Vaticano II que era um devaneio pós-Guerra Fria, a versão teológica do “fim da história”.
Mas não houve nenhum fim da história, e Francisco mudou a posição do Vaticano no mapa geopolítico. Uma nova cortina de ferro desceu e desta vez ela passa diretamente pela Praça São Pedro.