04 Março 2024
Uma desvalorização da moeda dois dias após assumir. Um protocolo antipiquetes que não se adequa aos padrões internacionais de direitos humanos. Um decreto desnecessário e desregulatório que muda as leis econômicas e o funcionamento do país. Um projeto de lei inabarcável e regressivo que não teve sucesso nem entre os parlamentares aliados e que o governo teve que retirar da discussão. Javier Milei assumiu a presidência na Argentina há apenas dois meses, mas o dano que já causou à classe trabalhadora é maior até mesmo - segundo estimativas de alguns governadores - do que o causado em seus quatro anos de governo pelo seu aliado na direita local, o empresário Mauricio Macri.
A reportagem é de Paula Sabatés, publicada por ctxt, 27-02-2024.
Já se falou muito sobre as causas de sua vitória sobre o candidato do peronismo e sobre o surgimento da grande base social que o apoia e que até alguns meses atrás parecia oculta na sociedade. Liberal na economia, conservador na política, autoritário no social. As perguntas agora giram em torno de se o ultradireitista conseguirá consolidar efetivamente um "movimento popular de direita" ou se seus eleitores perderão cedo ou tarde a esperança inicial. Eles também sairão às ruas para protestar contra a violação de seus direitos? Milei será capaz de conter o descontentamento de uma sociedade empobrecida e com um cansaço sideral?
Magdalena Chirom (Buenos Aires, 1990) é socióloga, especialista em comunicação política e coordenadora da consultoria Disputar. Antes das eleições, ela realizou vários estudos focais e identificou que os eleitores "libertários" tinham fé, além de raiva. Agora, dois meses após a posse, ela usa a metáfora do clickbait, aquele título sensacionalista que faz você clicar no link para encontrar um conteúdo frequentemente decepcionante, e diz que "a dimensão material da vida das pessoas é fundamental para a consolidação do governo" e que, se as coisas não mudarem, em março a situação de La Libertad Avanza vai se complicar.
Como você vê esses primeiros dois meses de Milei?
Há mil traços dependendo da ótica em que se olhe, mas quero destacar um em particular que é o que eu chamo de "governo-isca". Até mesmo, pode-se ir além e perguntar se não se quer construir um "populismo-isca". Sua principal força, com a qual chegaram ao governo, é a viralidade que conseguem nas redes sociais com seus comentários, intervenções e propostas. A partir da utilização da provocação estratégica, que consiste em fazer algo fora do politicamente correto ou do esperado para gerar uma reação tão grande que faça crescer a mensagem, eles foram expandindo suas ideias, somando apoios e ultrapassando o limite do debate. Claro que isso foi possível graças a um contexto de crise econômica e política profunda que podemos retomar em outro momento. Isso não é novo, é o ABC da alt-right em todo o mundo. O que eu acho que é mais novo é que, por enquanto, parece que eles pensam que o governo pode se sustentar quase que exclusivamente nessa força e, portanto, essa é a principal medida pela qual avaliam o sucesso de suas políticas. Sem ir mais longe, Milei está obcecado com as métricas de suas redes. Claro que também há o apoio de multinacionais e grandes empresários, mas esse apoio, como sabemos, assim como vem, pode ir embora se perceberem que não há condições de governabilidade.
Que características tem esse "governo-isca"?
Acho que pode ser dividido em três categorias: discurso-isca, repressão-isca e governabilidade-isca.
O discurso-isca é um discurso pensado exclusivamente para ser viral e consolidar os próprios. Não busca gerar consensos, ampliar o público ao qual se fala. Reforça constantemente quem são os inimigos: "a casta", "os esquerdistas". Não é um discurso com características de comunicação de governo nem parece buscar sê-lo.
Chamo de repressão-isca duas formas de disciplinar o protesto social através da comunicação. Por um lado, com a espetacularização da repressão. O governo celebra a violência contra "os esquerdistas" e por vezes até se diverte com ela. Busca que a repressão seja viral e assim gerar um efeito disciplinador. A outra maneira, que é a mais nova, é a repressão via redes sociais através do doxxing e do assédio.
Por último, a governabilidade-isca implica buscar que seu sustentáculo principal seja a própria força gerada pelas redes sociais. Aqui um elemento interessante é que, pelo menos por enquanto, o governo não conseguiu nenhuma manifestação de apoio social massiva nas ruas. Diante da falta dessa foto, a massividade "se mostra" através da criação de imagens de inteligência artificial onde se vê um leão (Milei) rodeado de milhares de pessoas. Isso difere muito dos demais projetos de ultradireita como o de Bolsonaro ou Trump, que conseguiram ter sua própria base mobilizada. Veremos se isso se mantém assim e o apoio ultrapassa as telas ou se a crise econômica impacta muito rápido para permiti-lo.
Quanto à construção do inimigo, qual é a estratégia de Milei? Parece ter uma fixação com o socialismo em um sentido muito amplo...
A construção do inimigo em Milei é fundamental para que funcione seu relato completo. O apelo para despertar leões para recuperar a liberdade não funciona sem se irritar com quem "rouba" essa liberdade. No seu caso, esse inimigo é a política tradicional. Embora a construção de um inimigo seja uma parte necessária de qualquer discurso político transformador, a de Milei é, e devemos dizer com todas as letras, típica do fascismo. Surgem a obsessão com os "esquerdistas", a violência e o rancor com quem pensa diferente.
Antes de Milei, falava-se de uma divisão entre peronismo e antiperonismo, ou entre kirchnerismo e antikirchnerismo. À luz desses dois meses, você acha que isso persiste ou devemos falar de uma pós-grieta, entre outras coisas?
A divisão kirchnerismo-antikirchnerismo ainda é usada, pelo menos em termos de discurso, pelo partido fundado por Macri, o PRO, e alguns setores do Juntos pelo Cambio, a aliança que integra. Mas se observarmos os principais comunicados de La Libertad Avanza, a coalizão de Milei, a briga é com a "casta", que é uma categoria mais ampla. Ao meu ver, está se formando uma nova divisão, mas acho que é cedo para dar respostas definitivas sobre esses assuntos.
Na véspera das eleições, que diferença você notou nos grupos focais entre aqueles que votaram em Milei e aqueles que escolheram a opção peronista?
Nas entrevistas em grupo, uma das perguntas que fazíamos era como as pessoas se sentiam em relação à eleição que estava por vir. Alguns nos diziam que estavam muito angustiados, preocupados, incertos, que estavam com raiva. Outros tinham fé, tinham vontade de votar. Com o desenvolvimento dos encontros, percebemos que o que esses últimos tinham em comum era que queriam que Milei vencesse a eleição, enquanto os primeiros se identificavam mais com o peronismo ou pelo menos já tinham votado nessa força em outra oportunidade. Essas pessoas estavam mais angustiadas, não viam a luz no fim do túnel. Os únicos que a viam eram os que votavam em Milei.
E essa fé em que se baseava?
Diria que era um estado emocional em que essas pessoas se encontravam, que me parece mais significativo do que simplesmente dizer se acreditavam ou não em algo. Sobretudo havia esperança na ideia de que, finalmente, conforme entendiam, haveria uma mudança. Elas percebiam que fazia muitos anos, pelo menos oito, que era sempre a mesma coisa. Várias dessas pessoas tinham uma opinião positiva sobre [a ex-presidente] Cristina Fernández de Kirchner, mas viam que naquele momento todos os políticos estavam brigando entre si enquanto elas recebiam cada vez menos salário e tudo estava mais difícil. Milei aparecia então como alguém que poderia quebrar a roda, melhorar a economia, permitir-lhes projetar novamente. Era muito surpreendente, mas uma grande parte sabia de cor o programa de Milei. Tinham muito claro suas propostas e gostavam que ele não fosse um "político profissional".
Essa fé que tinham/têm os eleitores de Milei era coletiva? Ou estamos em uma época do individual?
Uma das narrativas principais com as quais Milei chega ao poder é que há um sujeito coletivo que deve enfrentar o poder para conquistar sua liberdade. Depois vamos discutir o conteúdo desse sujeito coletivo, mas acho importante dizer que esse esquema é muito semelhante ao esquema de utopias construído desde a esquerda e desde o peronismo em outro momento. Isso é importante para entender por que há um núcleo que acredita em suas ideias. Acredito que não há dúvidas de que Milei chega ao governo com um novo "nós", pelo menos entre essas pessoas mais convencidas. Por isso, não me convence a ideia de que seu governo seja resultado de um profundo individualismo, embora exista, porque acho que não nos permite analisar a complexidade do fenômeno. Depois há os limites, quem fica de fora e quem fica dentro. Mas acho que isso, em todo caso, vai estar um tempo em movimento.
Você escreveu que "a história indica que aqueles movimentos que surgiram como catalisadores da raiva podem se politizar e se tornar ideologia". Acredita que na Argentina pode estar se gestando um movimento popular de direita?
Acredito que está por se ver. A lógica de construir o poder de Milei vai nessa direção e se vê um arraigo social de suas ideias que não se via há muito tempo em espaços fora do peronismo. Mas se suas ideias se traduzirão em um movimento popular que as defenda, ou se se desfaz porque era mais líquido, frágil, acho que está por se ver. Devemos estar atentos aos sinais de alerta.
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“O governo de Milei é um governo-isca”. Entrevista com Magdalena Chirom - Instituto Humanitas Unisinos - IHU