04 Outubro 2011
"Um novo mandato para Cristina é a melhor coisa que pode acontecer à Argentina", disse Ernesto Laclau e assim inicia uma conversa na qual afirmará também que "a real esquerda no país é o kirchnerismo". O filósofo político, radicado há mais de 30 anos em Londres, esteve em Buenos Aires para a abertura, no domingo, de um ciclo de diálogos com outros pensadores do mundo e que foi transmitido pelo Canal Encuentro.
Além de antecipar detalhes de seu novo projeto, durante sua conversa traçou um panorama da atualidade política. Assim como destacou as realizações da Administração kirchnerista, sublinhou que "a oposição teve um papel patético no país durante os últimos anos".
A entrevista é de Ailín Bullentini e está publicada no jornal argentino Página/12, 02-10-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que características deveria ter o novo mandato de Cristina Kirchner, antecipado pelo resultado das primárias e ratificado pelas pesquisas?
A consolidação das linhas traçadas durante o segundo mandato kirchnerista. O primeiro foi importante, mas o segundo especialmente teve uma série de medidas práticas, como a Renda Universal por Filho e a reforma do regime de aposentadoria, que estão mudando a ótica a partir da qual se percebe a política argentina. Também devem conformar-se forças políticas novas no interior do kirchnerismo. Sua proposta política rompeu com vários limites impostos por sua matriz histórica, o peronismo. É preciso avançar nessa linha.
O kirchnerismo segue sendo uma força política construída a partir da transversalidade?
Evidentemente, a transversalidade é um princípio que deve ser afirmado. Mas não tem que ser uma transversalidade de cima para baixo. Por construir de cima nos ligamos a (o vice-presidente, Julio) Cobos. Trata-se de uma transversalidade antes de base. E, desde esse ponto de vista, me parece que o processo está bem encaminhado. Martín Sabbatella é um exemplo. Vem da esquerda, continua sendo de esquerda, mas ao mesmo tempo se inscreve dentro da matriz histórica da ruptura kirchnerista em 2003. É preciso multiplicar este tipo de experiências.
Há uma clara aposta do kircherismo na juventude. Pode-se dizer que este grupo populacional substituiu os movimentos sociais protagonistas da construção política kirchnerista de 2003?
Sim. São forças que antes não haviam participado do espaço público e que estão começando a fazê-lo a partir do kirchnerismo. Tenho muitas esperanças sobre o que La Cámpora pode chegar a representar na vida política argentina nos próximos anos.
Por que o início da participação política desses setores se deu a partir do kirchnerismo?
Os outros espaços políticos não representaram nenhuma vontade de mudança no país. Que coisas novas vieram da (presidente da Coalizão Cívica, Elisa) Carrió, do radicalismo, do resto das entidades de oposição? Nenhuma gerou um processo novo. Do outro lado está a esquerda tradicional, que também não representou um processo de mudança. A real esquerda no país é o kirchnerismo.
E o surgimento da Frente Ampla Progressista (FAP)?
(O governador de Santa Fe e candidato à presidência pela FAP, Hermes) Binner representa uma centro-direita decorosa. Dele poderá vir uma oposição real ao kirchnerismo. Será a próxima segunda, embora frágil, maior força política do país. Se com o passar do tempo começar a haver setores que estejam contentes com o Governo, a FAP poderá se alimentar deles. (O chefe de Governo portenho, Mauricio) Macri também pode ser uma oposição real. Não descarto uma aliança entre ambos para o futuro, coisa que hoje é impensável.
A reivindicação dos povos originários por seus territórios é um exemplo de demandas não resolvidas pelo Governo.
As demandas dos povos originários não foram respondidas pontualmente, mas também não são centrais para a estruturação da política.
Se essa for a análise da situação, esses temas são uma oportunidade que a oposição desperdiça.
A oposição teve um papel patético no país durante os últimos dois anos. Têm um discurso autista que não estabelece vínculos com a sociedade, que está unicamente ligado à partidocracia tradicional, a uma estruturação do poder hoje caduca. Houve uma enorme expansão de forças sociais novas às quais apenas o kircherismo deu vazão. A oposição sempre esteve cega a eles, imersa em um círculo vicioso do qual não consegue sair. Não têm nenhuma capacidade expansiva na direção dos movimentos sociais que estão ocorrendo na sociedade em geral.
Você aconselhou a oposição a construir uma frente comum. A única coisa que fizeram foi dividir-se. A que se deve essa impossibilidade de se unir?
Ao fato de que não há vontade social que os una. Em determinado momento, a oposição foi efetiva porque se unificou em torno da chamada "crise do campo", mas se não tivesse existido uma demanda desse setor social, os espaços políticos nunca teriam sido capazes de estruturar nada. A frente do campo começou a se desarticular, a tal ponto que hoje não existe mais.
Por que seguem aparecendo personagens como o candidato a presidente pela União Popular, Eduardo Duhalde?
Não creio que esteja tendo entrada em nenhum setor da sociedade. Pode chegar a tê-lo em um setor em uma estrutura burocrática tradicional do peronismo, onde ainda tem certa capacidade de manipulação através de impulsos clientelísticos. Duhalde nunca venceu uma eleição. E desta derrota – as eleições primárias de agosto – creio que não se levanta mais. Nem sequer (o governador de Chubut e candidato a vice-presidente na chapa de Duhalde) Mario Das Neves o continuará apoiando.
Vê como inviável uma aproximação depois entre o kirchnerismo e a FAP?
Vejo possível que tenham um diálogo fluido e cordial. As condições para isso já estão dadas. Binner está fazendo pequenos galanteios a Cristina. Mas, além disso, necessitamos de uma oposição. Se não é capaz de se construir a si mesma, devemos inventar uma para que o sistema funcione. Caso contrário, começa a crescer o mito do unipartidarismo, que não é bom em um regime democrático.
É hora de o kirchnerismo começar a pensar em um sucessor?
Em primeiro lugar, é preciso ver se Cristina pode ser reeleita, sem modificar a Constituição. Sei que ela não gosta que se mencione o assunto, mas me parece que uma democracia real na América Latina se baseia na reeleição indefinida. Uma vez que se construiu toda possibilidade de processo de mudança em torno de certo nome, se esse nome desaparece, o sistema se torna vulnerável. No Brasil, a transição não foi fácil. Não obstante, o kirchnerismo produziu excelentes quadros: Agustín Rossi, Carlos Tomada, Amado Boudou. Não vão faltar sucessores.
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"A real esquerda na Argentina é o kirchnerismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU