23 Agosto 2011
"Em um marco de mudanças epocais onde a própria sobrevivência do capitalismo está posta em questão – já não pelo "catastrofismo" de seus críticos, mas pelo diagnóstico dos "intelectuais orgânicos" do capital! –, a esquerda argentina tem a possibilidade e o dever de reconstituir-se de tal forma a poder incidir positivamente no curso dos acontecimentos, deixando de ser o que, apesar disso, foi durante décadas: uma presença testemunhal. Para que isto seja possível deverá abandonar todo dogmatismo e saber ler, nas intrincadas e contraditórias dobras da conjuntura atual, as oportunidades que poderiam existir para desenvolver um projeto emancipatório para o nosso povo e agir em consequência", escreve o cientista político argentino Atilio Boron, em artigo publicado no seu blog, 20-08-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
As eleições "primárias", que acabam de ser realizadas na Argentina, deixaram numerosos ensinamentos. Seria impossível resenhar todos e cada um deles em um breve texto como este. Impõe-se, portanto, a necessidade de sintetizar e privilegiar algumas questões, postergando o tratamento de outras para outros momentos. Centraremos a nossa análise em três eixos principais: (a) as razões de sua espantosa vitória; (b) a agenda do governo para os próximos anos; (c) as tarefas da esquerda diante da atual conjuntura.
Escusado será dizer que para o autor destas linhas a eleição presidencial (o mesmo não vale para outros cargos em nível nacional, provincial e municipal) de 23 de outubro se converteu, depois das primárias, em um exercício supérfluo. Salvo por um catastrófico imponderável, a reeleição de Cristina Fernández de Kirchner no primeiro turno já está assegurada: obteve uma impressionante diferença de 38 pontos em relação a Ricardo Alfonsín e Eduardo Duhalde. Pior ainda, em Lomas de Zamora, suposto reduto do duhaldismo, Cristina Kirchner venceu o ex-presidente por 43 pontos: obteve 57% dos votos contra apenas 14% de seu adversário. E na mesa 26 da Escola Nº 9 onde Duhalde vota, Cristina alcançou espantosos 73% contra raquíticos 9% de seu rival. A Udeso, liderada por Ricardo Alfonsín e Francisco de Narváez, foi derrotada sem atenuantes em 132 dos 134 distritos da província de Buenos Aires. Tendo em conta estes demolidores antecedentes, qualquer especulação sobre as chances que poderia ter qualquer uma das duas candidaturas da oposição é um alarde de voluntarismo que carece de qualquer fundamento. Claro está que é preciso reconhecer que por trás desse infundado otimismo existem também razões táticas que obrigam a isso: a deserção de um candidato presidencial poderia acarretar em consequências muito negativas para os outros cargos (senadores e deputados nacionais, governadores, legisladores provinciais, intendentes, vereadores), ao mesmo tempo que debilitaria a capacidade dessa força para conquistar posições no terreno parlamentar e nos governos locais.
Por que Cristina Kirchner venceu?
A primeira coisa que é preciso dizer é que sua esmagadora vitória se deveu antes de tudo aos méritos próprios de sua gestão de governo. Vale a pena insistir nisto porque a tônica dominante de muitas análises parece sugerir que sua vitória foi acima de tudo causada pela fenomenal falta de aptidão da oposição. Esta é uma visão errônea porque deixa na sombra alguns fatores que, sem dúvida, influenciaram muito positivamente nas preferências cidadãs. Para começar, não se pode desconhecer o impacto "oficialista" que aqui e em qualquer outro país exerce a bonança econômica, por relativa que seja e para além de seus insatisfatórios e/ou limitados impactos redistributivos. Mas se, além disso, o crescimento econômico vai acompanhado de uma forte expansão do consumo (não importando, aos olhos dos beneficiários, os mecanismos mediante os quais é promovido); da criação de empregos (não importa se formais ou não); de uma modesta, mas bem-vinda melhoria em remunerações e salários e nas remunerações aos aposentados e pensionistas; da enorme ampliação da cobertura previdencial com a aposentadoria das donas de casa; da implementação de algumas políticas paliativas do grave problema da pobreza que o país vem sofrendo desde os anos 90 (Renda Universal por Filho, três milhões e meio de pessoas cobertas por diferentes planos sociais, retorno à escola impulsionado pela massiva entrega de netbooks, etc.), seria verdadeiramente uma anomalia que este conjunto de fatores se tivesse revelado incapaz de fomentar um sentimento de conformidade para com o governo federal.
Se a isso acrescentarmos outros componentes que expressam uma vocação progressista da Casa Rosada, como a Lei de Meios de Comunicação, o Matrimônio Igualitário, a política de direitos humanos, a estatização das AFJP (Administradoras de Fundos de Pensão) e das Aerolíneas Argentinas e a reorientação latino-americanista da política exterior ninguém deveria manifestar-se surpreendido com o categórico veredicto das urnas. Poderia haver surpresa no nível do apoio – mais de 50% – ou nos 38 pontos que separam a Cristina Kirchner de seus adversários mais imediatos, mas não na reconfirmação da sua liderança no terreno eleitoral.
O sucesso oficial serviu, de passagem, para demonstrar que os poderosos meios hegemônicos – verdadeiros "intelectuais orgânicos", diria Gramsci, do heteróclito arquipélago opositor – carecem dos poderes onímodos que muitos, tanto no governo como na oposição, lhes haviam atribuído. Podem aumentar o que existe, mas suas artimanhas e manipulações não são suficientes para inventar o que não existe. E a oposição, na Argentina pós-crise de 2001, pós "que se vão todos", não existe. O que aparece sob a equívoca etiqueta "oposição" é uma coleção de individualidades e precárias organizações políticas, mutuamente repulsivas, carente de unidade e de coerência, sem um claro programa alternativo que não seja o de voltar ao passado, o que a converte em presa fácil das iniciativas do kirchnerismo. No período transcorrido entre as eleições parlamentares de junho de 2009 e as de 14 de agosto deste ano seus expoentes exibiram excepcionais doses de inaptidão, egocentrismo, sectarismo e personalismo que deram a sua contribuição para tornar possível a vitória de Cristina. Em síntese: sobrou à oposição vaidade e lhe faltou grandeza. E os protestos sociais, vigorosos e recorrentes, transitaram por trilhos que não tinham contato com os partidos da oposição. Salvo, em alguns poucos casos, com as pequenas expressões da esquerda.
Foi devido a isso que o jornal Clarín não pôde, empregando a fundo sua vastíssima rede de propaganda e manipulação políticas, inventar uma opção onde não havia uma, ou fabricar um líder capaz de reunir a adesão de grandes segmentos da nossa sociedade. Por mais que alguns dos candidatos da oposição fossem exibidos ad nauseam, noite a noite, nos diferentes programas televisivos da multimídia – especialmente Eduardo Duhalde e Elisa Carrió e, em menor medida, Ricardo Alfonsín – e lhes fosse concedido, em alguns casos, até 25 minutos ininterruptos de tela (algo absolutamente extraordinário no timing televisivo!) nenhum dos favorecidos por tamanha "generosidade" do oligopólio conseguiu se converter em um adversário sério de Cristina Kirchner. Pior ainda: a venenosa campanha midiática contra o governo acabou por voltar-se contra quem, desde uma autodesignada função de consciência ética da república, a encarnou com singular veemência. Referimo-nos, é claro, a Elisa Carrió, que despencou dos 23% dos votos obtidos na eleição presidencial de 2007 para um triste 3% nas primárias de 14 de agosto passado. Uma queda, diga-se de passagem, que também não se pode atribuir aos poderes demiúrgicos da televisão oficial, cujo módico rating – inclusive em um programa como 6-7-8 – a inibem de acometer empresas tão demolidoras, supondo que o quisesse. E o mesmo se pode dizer da imprensa gráfica oficial ou identificada com a gestão de Cristina Kirchner: o "jornalismo militante" pode ter ajudado a consolidar a adesão dos já convencidos, mas jamais projetar Cristina acima dos 50% dos votos. Este limitado poder da mídia, de um ou de outro lado, não deixa de ser uma boa notícia para a democracia.
A agenda para o segundo turno
A arrasadora vitória de Cristina Kirchner enfrenta um perigo que, ao menos em alguns discursos recentes, pareceu ter sido advertido pela presidenta quando disse, textualmente, "não creio". Com efeito: o risco é pensar que diante da plebiscitária ratificação de seu mandato as coisas estejam bem e o rumo empreendido seja o correto. Na realidade, a situação econômica veio melhorando, mas as questões pendentes são muitas, e muito urgentes. A manutenção da torpe política com o INDEC, que equivale a destruir um termômetro, porque registra a temperatura produzida por uma inoportuna doença, conspira em primeiro lugar contra o próprio governo: as deficientes ou abertamente falsas informações oferecidas em algumas áreas pelo INDEC impedem o governo de elaborar com racionalidade e eficácia as políticas públicas que o país necessita. A intervenção nesse organismo, além disso, é um grave atentado contra a população porque a priva do acesso a dados básicos com os quais pode, por exemplo, defender seu nível de vida e seus salários nas paritárias. Neste sentido o subregistro da inflação adquire contornos escandalosos toda vez que não são as desacreditadas agências de consultoria privadas, mas as próprias oficinas de estatística das províncias governadas pela Frente da Vitória que mês a mês desmentem os fantasiosos números do INDEC. Não apenas elas: o mesmo fazem os sindicatos filiados à CGT, que negociaram reajustes salariais – para acompanhar o aumento dos preços internos – na ordem de 25% a 35%, reajustes que foram homologados pelas autoridades federais e, sobretudo, pelo Ministério do Trabalho. Acabar com este engano deveria ser uma das primeiríssimas tarefas da presidenta o mais rápido possível, consciente de que essa mentira não ofende apenas os cidadãos, mas que entorpece sua própria gestão de governo.
Quando o tema da agenda do próximo período é proposto são muitos os que no âmbito oficial e seus arredores dizem que é preciso "aprofundar o modelo". Não vamos reiterar nesta nota o que discutimos extensamente em publicações anteriores deste blog e que deu lugar a um apaixonado debate. Mas nunca é demais recordar que os principais acertos do kirchnerismo – como, por exemplo, a retirada dos bônus da dívida externa ou as estatizações das AFJP ou da Aerolíneas Argentinas – se deram quando foram deixadas de lado as prescrições do modelo de acumulação instaurado sob o primado do neoliberalismo desde o final da década de 1980 e cujos poderosos influxos podem ser sentidos ainda hoje. Para entender: se falamos rigorosamente um "modelo", não é uma somatória de políticas públicas, mas um tipo específico de articulação entre acumulação capitalista, dominação política e organização social. Ao dizer que o atual "modelo" tem sua gênese na última ditadura militar e sua consolidação na década menemista se está afirmando que, em consequência da refundação reacionária do capitalismo global desde meados dos anos 1970, o eixo central da acumulação capitalista se deslocou para os setores mais concentrados (e estrangeirizados) da economia, entre os quais sobressaem o petróleo, o gás, a grande mineração, o setor financeiro e o agroexportador (principalmente o complexo da soja), todos os quais foram (e seguem sendo) beneficiados por incentivos, subsídios, isenções de impostos e facilidades de todo tipo que explicam as fenomenais taxas de lucro que estes setores exibem. Este "modelo", neoliberal em seu espírito e em sua corporificação prática, tem como esteios:
a) a sobrevivência da Lei de Entidades Financeiras de Videla-Martínez de Hoz, peça legal fundamental para institucionalizar o predomínio da banca estrangeira e do capital financeiro em geral;
b) a vigência da Carta Orgânica do Banco Central estabelecida por Domingo F. Cavallo que ainda condiciona negativamente as atuais autoridades dessa instituição para agir em conformidade com as exigências da conjuntura;
c) a extraordinária regressividade do sistema de impostos, em virtude da qual a renda financeira fica isenta de obrigações tributárias assim como a transferência de ativos de sociedades anônimas, ao passo que uma parte crescente dos assalariados deve pagar o imposto sobre os lucros – a magia do neoliberalismo pode tudo: remunerações e salários se convertem em "lucros" e como tais sujeitos a um tributo – ao mesmo tempo que os setores de ingressos mais baixos veem encarecidos os itens da cesta básica de alimentos com um IVA de 10.5%;
d) o contínuo saque de nossas riquezas naturais, sem nenhum tipo de controle fiscal efetivo – especialmente nos hidrocarbonetos, mineração, pesca – que impede saber quanto se extrai e quanto se exporta. Se algum dado se tem é pelas declarações juradas que as empresas interessadas proporcionam às nossas autoridades;
e) a descontrolada "sojização" do agronegócio, com os graves prejuízos que implica não apenas uma acelerada "reprimarização" da economia, mas também a expansão da monocultura e a primazia adquirida pelo poderoso complexo transnacional do "agronegócio", em detrimento dos pequenos e médios produtores locais;
f) o elevado grau de concentração e estrangeirização da economia. Uma pesquisa periodicamente realizada pelo INDEC sobre este tema demonstrou que em 2010 as 500 maiores empresas do país eram responsáveis por nada menos que 22% do PIB da Argentina. Esse mesmo estudo assinalava que 324 das 500 maiores empresas – ou seja, duas de cada três – que operam no país são estrangeiras; e todas as seis maiores são estrangeiras: YPF, Cargill, Telecom, Petrobras, Carrefour e Jumbo. Estrangeirização que, como assinalam recentes estudos, se estende também à terra, inclusive em zonas de fronteira;
g) perpetuação da precarização do trabalho, da terceirização, do trabalho não registrado (inclusive na Administração pública!), penosas heranças dos anos 1990 que ainda persistem em nossos dias.
Estes traços, gestados durante os anos da ditadura e do menemismo seguem penosamente caracterizando a economia argentina. Houve mudanças, sem dúvida, mas as vigas mestras do "modelo", neoliberal até a medula dos ossos, seguem em pé. A isso se deve a persistência de elevados níveis de pobreza – próximos a 30% segundo as análises mais confiáveis – nos setores mais marginalizados e também a fragilidade econômica das camadas médias, onde para um casal em que ambos os membros trabalham como "registrados" e com boas remunerações, a aquisição de um apartamento de dois ambientes se apresenta como uma saga de difícil realização. Em suma, o "modelo", fiel às suas origens, cresce, mas ao fazê-lo concentra ingressos e riquezas, desnacionaliza a economia e não distribui. Quem o faz, a duras penas e com modestíssimos resultados, é o Estado.
A esquerda e a conjuntura
Para concluir: a presidenta tem a reeleição assegurada. Foi ratificada plebiscitariamente e graças a esta relegitimação dispõe de um amplo campo de manobra para introduzir as mudanças de que este país necessita. Caso tiver vontade para fazê-las, seguramente contará com um enorme apoio popular, como o atesta o resultado das primárias. Conta também com um Congresso que não terá força para interferir ou entorpecer suas iniciativas mais transcendentais e os poderes midiáticos demonstraram que podem desatar um incômodo barulho, mas não têm como frear as políticas governamentais. Este é o momento para avançar a todo vapor pelo caminho das reformas estruturais, deixando de lado os paliativos e as políticas de remendo. Além disso, faça o que fizer, os futuros historiadores e cronistas da direita já condenaram a presidenta. Continuará a ser submetida a toda sorte de pressões, chantagens e agressões pelos moderados avanços sociais produzidos durante estes últimos anos. Sendo assim, é preferível que a condenem pelas coisas boas que poderia fazer e não pelo que disse que queria fazer e depois não fez. Isso sim: Cristina Kirchner terá que se apressar, porque disporá de pouco tempo: um ano a partir do início de seu novo término presidencial. 2012 deveria ser o ano das grandes batalhas. Pouco depois começarão as disputas com vistas às eleições parlamentares de 2013 e, em seguida, explodirá abertamente a duríssima luta pela sucessão presidencial. Portanto, se não for agora, quando será?
Poderá objetar-se, com razão, que a colocação acima sofre de um forte voluntarismo. É assim porque optamos, metodologicamente falando, por suspender por um momento uma avaliação radicalmente crítica que considere os dados definidores da conjuntura atual como resultados inamovíveis de um processo que não admite correções ou retificações. Se bem que aderimos sem reservas à perspectiva crítica oferecida pelo marxismo – no sentido de que sabemos que dentro do sistema não há solução para a crise do capitalismo, e que este é uma máquina irrefreável de produzir injustiças, pobreza e exclusão econômica, social e política que apenas uma revolução socialista porá fim –, acreditamos que, ao menos hipoteticamente, se poderia conceder ao governo o benefício da dúvida. Em que sentido? No sentido de reconhecer que as renovadas e cada vez mais violentas contradições do capitalismo, aguilhoadas pela crise atual, vão desbaratar qualquer tentativa de administrar a economia e manter a ordem social apelando às ferramentas macroeconômicas convencionais, incluindo aquelas tidas como "heterodoxas". Empurrado por circunstâncias marcadas por profundos desequilíbrios na vida econômica e uma crescente agitação social e política mais cedo que tarde o governo enfrentará um dilema de ferro: avançar pelo caminho das reformas estruturais que lhe permitam neutralizar os efeitos perturbadores de um capitalismo em crise, ou antes ficar sepultado sob seus escombros, abrindo passagem para uma restauração conservadora que ponha fim a todas as suas ilusões progressistas.
Acérrimos críticos do capitalismo, Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci, entre outros, nunca deixaram de reconhecer as possibilidades de recomposição e mudança que os capitalistas sempre têm ao seu alcance mesmo em meio às mais profundas crises. Mais de uma vez Marx se censurou por ter errado em seus sombrios prognósticos sobre o curso futuro da França uma vez estabelecido o regime bonapartista, refutados implacavelmente por quase 20 anos de vigorosa expansão econômica que só a guerra franco-prussiana de 1870 poria fim. Atentos a esta lição é preciso desterrar a tentação de pensar que, diante da crise, o kirchnerismo jamais ousaria transitar pelo caminho das reformas estruturais. Suas relações com a classe dominante são complexas e às vezes contraditórias: promove seus lucros e facilita seus negócios – senão veja-se o que aconteceu com o voto "do campo" nas primárias, ou as declarações de Franco Macri ou de tantos outros chefões do empresariado local –, embora o faça em um clima de mútuo receio e permanentes puxões ocasionados pela insaciável voracidade de uma e outro.
Se estas tensões, exacerbadas ao calor da crise, viessem a ultrapassar um certo umbral não seria estranho que se desencadeasse uma ruptura entre a classe dominante e o governo, colocando o kirchnerismo diante do dilema enunciado mais acima: reformas estruturais ou capitulação. Fustigado por similares mas não idênticas circunstâncias Franklin D. Roosevelt optou pelo primeiro: fortaleceu o movimento operário e organizou o Partido Democrata, e a partir dali lançou o New Deal, um programa tenazmente combatido por grande parte da burguesia norte-americana que considerava confiscatória e "comunista" a nova legislação tributária – em um pleito que só se revolveu na Corte Suprema dos Estados Unidos – e os renovados poderes da Reserva Federal, ao passo que insultava como demagógicas as audazes iniciativas em matéria de segurança social e assistência médica impulsionadas pela Casa Branca. Obviamente, era um programa que não tinha a menor intenção de sair do sistema e abandonar o capitalismo; não obstante, urgido pelas urgências do momento, para salvá-lo era preciso outorgar significativas concessões às classes populares ao mesmo tempo que se recortavam algumas das mais irritantes prerrogativas do capital. Que não tivesse surgido um partido revolucionário capaz de aproveitar as oportunidades que se abriram nessa conjuntura é outra história. À luz da experiência histórica, desde Napoleão III a Roosevelt, deveríamos excluir a priori que uma saída "reformista burguesa" pudesse ser escolhida por Cristina Kirchner? Há numerosos indícios de uma crescente tensão no interior do kirchnerismo, originada pelas limitações e perversões do "modelo" e pelo crescente hiato que separa o discurso crítico do neoliberalismo do pesado legado neoliberal que ainda hoje informa boa parte das políticas oficiais. Quem estaria em condições de assegurar que, forçado pelas circunstâncias, o kirchnerismo preferiria suicidar-se antes que abraçar uma opção reformista, embora seja por razões táticas, oportunistas ou demagógicas de sobrevivência política?
E se tal coisa viesse a acontecer, estariam a esquerda e o movimento popular em condições de tirar proveito da situação? É evidente que a debilidade das forças socialistas, comunistas e de esquerda da Argentina, herdeiras de traumáticas experiências do passado, conspira contra sua capacidade para gravitar decisivamente na conjuntura. O tsunami peronista de 1945 mudou radicalmente a estrutura e a identidade da classe trabalhadora e do movimento popular, condenando a esquerda a exercer um papel marginal no desenvolvimento das lutas de classes durante décadas. Diante disso seria preciso estar sumamente atentos às inéditas possibilidades que poderiam se abrir no marco da crise atual e seus reflexos em um país da semiperiferia capitalista como a Argentina. Não há um único caminho para a emancipação da classe trabalhadora, e mais importante que o ponto de arranque são o itinerário, as novidades gerais ao longo de um contínuo processo de lutas sociais (que muda consciências, projetos, modos de organização e lideranças) e a meta para a qual apontam os conflitos e antagonismos do momento.
Para isso é preciso ter em mente que estamos ingressando em uma nova etapa da história do capital: a contraofensiva reacionária inaugurada nos anos 1980 através de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e João Paulo II se esgotou e se precipita estrondosamente. A comoção social que sacode a Europa, desde a onda de greves na Grécia até o repúdio aos banqueiros na Islândia, passando pelos incêndios em Londres, os "indignados" espanhóis e o fragilíssimo equilíbrio político sustentado apenas na França e na Alemanha, é um claro anúncio da mudança de época, e suas violentas reverberações se deixarão sentir em todo o mundo. A Argentina e a América Latina, por mais que se queira blindá-las, não serão exceção à regra. Fim de uma época que coincide com a inexorável decadência do império norte-americano, incapaz de ganhar guerras (embora destrua países), de ordenar o caos econômico internacional e de acomodar o tabuleiro político mundial em função dos interesses imperiais. Em um marco de mudanças epocais onde a própria sobrevivência do capitalismo está posta em questão – já não pelo "catastrofismo" de seus críticos, mas pelo diagnóstico dos "intelectuais orgânicos" do capital! –, a esquerda argentina tem a possibilidade e o dever de reconstituir-se de tal forma a poder incidir positivamente no curso dos acontecimentos, deixando de ser o que, apesar disso, foi durante décadas: uma presença testemunhal. Para que isto seja possível deverá abandonar todo dogmatismo e saber ler, nas intrincadas e contraditórias dobras da conjuntura atual, as oportunidades que poderiam existir para desenvolver um projeto emancipatório para o nosso povo e agir em consequência.
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Cristina ganha novo fôlego com vitória nas primárias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU