31 Agosto 2023
Convidado desta semana do BdF Entrevista, Juan Grabois afirma que ascensão da ultradireita tem base em setores populares.
A reportagem é de Patrícia de Matos, publicada por Brasil de Fato, 29-08-2023.
No último 13 de agosto, boa parte da sociedade argentina sentiu um gosto amargo: Javier Milei, candidato da coalizão "La Libertad Avanza", de ultradireita, chegava em primeiro lugar nas eleições prévias para a presidência, mais conhecidas como Paso (Eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), com 31% dos votos.
O resultado convulsionou ainda mais um país imerso em uma profunda crise econômica e em que as incertezas sobre o futuro parecem ter criado raízes profundas.
A Argentina vive mergulhada em uma inflação anual de 113,4%. Em agosto deste ano, o índice de pobreza chegou a 38,7% da população, segundo compilado anual do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec).
Um total de 11 milhões de argentinos, de pouco mais de 45 milhões de habitantes, esperam a qualquer momento ser despejados de casa por não terem como arcar com o aluguel, enquanto o governo enfrenta um cabo de guerra com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a quem deve US$ 2,7 bilhões.
As Paso existem na Argentina desde 2009 e definem o candidato de cada coalizão que vai concorrer às eleições presidenciais no país, previstas para o próximo 22 de outubro. Sergio Massa, que até a reta final figurava como o favorito na disputa, encabeçava a coalização "Frente de Todos", composta por outros candidatos do mesmo campo político.
Juan Grabois, à esquerda de Massa no espectro político, estava nessa mesma trincheira da disputa para tentar, segundo ele, emplacar "medidas de recomposição da renda perdida [pela população, em virtude da crise econômica]". Grabois chegou atrás nas urnas, com 5,7% dos votos, mas não sem fazer barulho.
Voz crítica do atual governo, apesar de se distanciar dos setores de oposição à direita, o ex-candidato afirma, em entrevista ao Brasil de Fato, que a administração de Alberto Fernandez, atual presidente da Argentina, não foi eficaz, pois não "houve nenhuma reforma profunda", nem "redistribuição da riqueza" e que isso, ao final, "permitiu que o movimento nacional e popular tivesse sua hegemonia sequestrada e que a hegemonia tenha ficado com setores de centro-direita."
Para ele, a chegada de um candidato de ultradireita em primeiro lugar não foi um caso isolado, pois o seu segmento conseguiu, diante da debilidade do campo peronista, "penetrar os setores populares" e que, portanto, a ascensão de Javier Milei não é "um fenômeno das classes médias, nem um fenômeno dos grandes centros urbanos. É um fenômeno das províncias e das classes médias baixas, que buscam um falso messias."
Juan Grabois faz parte da Frente Patria Grande. A organização nasceu em 2018 pelas mãos de um grupo de jovens "cansados dos partidos políticos tradicionais", segundo consta em manifesto no site institucional do movimento. Juan afirma que a sua luta é, sobretudo, no campo da "contracultura".
O advogado, que também é próximo do Vaticano e do Papa Francisco, seu conterrâneo, é avesso à linguagem e comportamentos próprios dos políticos tradicionais e diz que sua luta está ligada a "certos valores éticos", como "a simplicidade de seus dirigentes."
Em 2018, Juan Grabois foi nomeado, pelo Papa Francisco, consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano. (Foto: Arquivo pessoal)
Apesar de ser um crítico da candidatura de Sergio Massa, Grabois vê chances de vitória do candidato vencedor da chapa que compôs. Segundo ele, Massa não é apenas um candidato, mas sim um "ministro da Economia, que tem mais poder do qualquer outro na história da Argentina."
Na última segunda-feira (28), Massa viajou a Brasília para se encontrar com o presidente Lula e o ministro da Economia, Fernando Haddad, e o das Relações Exteriores, Mauro Vieira, para tratar de temas comerciais e o recém ingresso da Argentina no Brics.
A entrada do país vizinho no bloco foi um pleito do Brasil e deve, segundo analistas, criar condições para que a Argentina negocie melhores condições junto ao FMI. A viagem aconteceu apenas um dia após o ministro argentino e candidato à presidência anunciar medidas econômicas para conter a inflação e o crescimento da pobreza em seu país.
Para entender o que acontece na Argentina e saber como se organiza o tabuleiro eleitoral, na visão de quem viveu o processo por dentro, leia a íntegra da entrevista de Juan Grabois para o Brasil de Fato.
Tivemos um dos piores resultados para o peronismo nas eleições na Argentina. O que está acontecendo na sociedade argentina que os políticos não estão vendo?
Nosso povo vem de duas grandes decepções. De quase oito anos de degradação social e econômica, de um aumento da desigualdade, uma deterioração dos salários dos trabalhadores registrados, tanto no setor público quanto no setor privado. E isso se agrava entre os setores informais, que são quase metade da classe trabalhadora argentina. A primeira decepção foi o governo de Mauricio Macri, que chega ao poder na Argentina com um discurso que está longe da narrativa bolsonarista.
E a Argentina termina esse governo [de Alberto Fernandez] com um aumento de dez pontos percentuais na pobreza, que passa de 25 a 35% e com um endividamento com organismos multilaterais de créditos que é o mais alto da nossa história e da história de nosso credor, o Fundo Monetário Internacional.
O que aconteceu foi que não houve nenhuma reforma profunda, não houve processo de redistribuição da riqueza. E assim chegamos ao final do mandato do Alberto com outros 6 a 7 pontos de aumento na pobreza. Com quase 40% de pobreza na Argentina, agora com certeza é mais. E com 70% de pobreza infantil.
Acredito que o povo critica esse status quo, que não se modificou substancialmente nos últimos oito anos, ao menos em termos econômicos. Por outro lado, há um questionamento forte ao que gostamos de chamar de "nominalismo", a narrativa totalmente dissociada da realidade material do povo. Uma narrativa progressista e popular e um povo pauperizado e com direitos violados em sua realidade efetiva, concreta e cotidiana, ou seja, os direitos são ampliados nominalmente, verbalmente, mas se reduzem em termos práticos.
Nesse contexto, surge um fenômeno do ponto de vista, em princípio, fortemente acentuado pelo sistema, pela burguesia nacional, pelos principais conglomerados de mídia. É o fenômeno de uma direita libertária, de neoliberalismo extremo, que se autodefine anarcocapitalista, ou seja, de destruição do Estado para a implementação de um sistema exclusivamente regido pelo mercado, que inclui pautas estranhas para o nosso modo de vida, como a legalização da venda de órgãos.
Ou seja, a mercantilização absoluta de tudo. A privatização da educação pública, a privatização dos organismos científicos e técnicos. Mas, apesar desse discurso, desse posicionamento, dessa ideologia ultraindividualista e ultraliberal, propõe um diagnóstico muito acertado.
Então, sobre a base de um diagnóstico acertado, chegam a conclusões desumanizadoras. Mas o diagnóstico acertado se baseia em dois pilares: a existência de uma casta política que representa, de algum modo, um sistema de poder baseado em relações de amizade, de nepotismo, de encapsulamento da política, ensimesmamento em seus próprios interesses, corporativização da política.
Historicamente, sempre tivemos o peronismo contra a direita tradicional. Agora temos [Javier] Milei na liderança. Você acha que Massa tem condições reais de ganhar?
Nosso objetivo é que cada voto desses permita condicionar a política da União pela Pátria, tanto no presente crítico, porque estamos vindo de uma desvalorização de 20% e há uma situação de aumento exorbitante de preços, como em um eventual programa de governo para o futuro, mas com uma consciência absoluta de que será preciso lutar. Realmente há uma crise no peronismo.
Essa crise parte da existência de uma condução estratégica que marca diretrizes muito claras e muito afins ao nosso pensamento, encarnadas por Cristina Kirchner. Mas essa condução estratégica não pode exercer posições eleitorais por uma proscrição de fato do sistema mafioso judicial e do sistema de comunicação e de grande parte do sistema político, porque a consideram a única dirigente competitiva eleitoralmente que pode enfrentar esses interesses e, portanto, já fizeram tudo o que você pode imaginar, incluindo uma tentativa de homicídio, para impedi-la de ser candidata ou ser protagonista nas decisões.
E isso permitiu que o movimento nacional e popular tivesse sua hegemonia sequestrada e que a hegemonia tenha ficado com setores de centro-direita. São a hegemonia do movimento hoje. Isso significa uma crise enorme, porque gera na própria militância, que é muito intensa, sindical, estudantil e social, uma enorme desorientação.
Então é uma crise que pode fazer danos muito profundos ao movimento, somada à dificuldade eleitoral que temos, que, em minha humilde opinião, pode ser revertida, porque a derrota obtida é comparável à derrota da direita clássica.
Nós tivemos 27,5 pontos, a direita clássica teve 28,5 pontos, o macrismo, e o Milei teve 30 pontos. Estamos a um ponto da direita clássica e a três pontos da ultradireita neoliberal. A diferença fundamental entre este e outros momentos é que a ultradireita neoliberal tem base popular. Conseguiu penetrar os setores populares. E, racionalmente, os setores populares estão dando as costas a nós, que afirmamos defender seus interesses, mas, na prática, não estamos fazendo isso corretamente. Ou seja, não é um fenômeno de classes médias, nem um fenômeno dos grandes centros urbanos. É um fenômeno das províncias e das classes baixas e médias baixas, que buscam um falso messias.
Frente à perda de toda esperança, buscam um falso messias que, na verdade, é o flautista de Hamelin que vai levar o nosso povo a um suicídio coletivo, mas que, infelizmente, a reação da classe política é ficar brava com o eleitorado em vez de fazer uma forte autocrítica do fracasso absoluto das políticas de governo em mudar a vida das pessoas.
Quais ações vocês estão planejando tomar no curto prazo para garantir a vitória nas eleições de outubro?
Acho que há condições para ganhar, desde que sejam tomadas medidas a partir de hoje. Porque o Massa não é só o candidato, é o ministro da economia. E tem mais poder do que qualquer outro na história da Argentina. É praticamente o presidente.
Se não houver medidas de compensação frente à desvalorização da moeda, ou seja, de recuperação do salário real tanto dos trabalhadores assalariados formais quanto dos trabalhadores autônomos e informais, não há possibilidade de prever o resultado.
Então, por uma questão que combina a perspectiva de justiça social com a perspectiva de uma vitória eleitoral, nós usamos nosso volume de votos para pressionar para que haja uma política de recuperação da renda, que é o que estamos negociando nos últimos dias.
Além disso, há uma crise habitacional muito profunda na Argentina. Estamos pressionando para que lancem um programa que já está preparado de distribuição de terras fundamentalmente urbanas, também rurais, mas fundamentalmente urbanas. A Argentina é um país super urbanizado, 93% da população é urbana.
E há mais de 6 milhões de pessoas vivendo em "villas", que são favelas. E 11 milhões de pessoas vivendo de aluguel. Ou seja, há uma crise habitacional brutal, porque a desvalorização gera reajuste em todos os contratos de aluguel e a angústia das milhões de famílias que estão a ponto de serem desalojadas precisa ser sanada com medidas muito firmes, como a distribuição de terrenos e também o congelamento dos contratos de aluguel por, ao menos, seis meses.
Então há uma série de medidas duras que é preciso tomar e não são medidas extremas. No nosso programa, propomos uma medida extrema para um país que está dentro do capitalismo ocidental e da hegemonia geopolítica norte-americana, que é cancelar agora o programa acordado com o FMI.
Não estamos pedindo isso ao Massa. Também não estamos pedindo a nacionalização do lítio e dos bens estratégicos da Argentina. Não pedimos isso. Pedimos simplesmente medidas de recomposição da renda perdida, medidas de nivelação da distribuição social da renda, medidas de acesso à terra urbana para a construção de moradias e medidas paliativas para a crise imobiliária e alimentar, porque, neste momento, os refeitórios comunitários estão trabalhando em sua capacidade máxima pela falta de alimentos a preços razoáveis para os setores populares.
Nossa geração se formou, fundamentalmente, durante a crise de 2001. Nós, que hoje temos 40 anos, somos os mais velhinhos da Frente Pátria Grande. Nossa organização é "sub-40". O mais velho deve ter 45 anos. E essa é a geração do "fora todos!".
É a geração do movimento piqueteiro, do movimento rural, do movimento dos catadores, das fábricas recuperadas, do movimento estudantil independente. É uma geração que se formou fora das estruturas políticas tradicionais e que depois foi adquirindo, de certo modo, uma consciência sobre a necessidade de intervir no processo de luta pelo Estado, sem perder a própria identidade.
Então o esforço que fazemos é que a participação no sistema político eleitoral não tire de nós a perspectiva revolucionária, de mudanças profundas, de colocar o ser humano no centro, acima das teorias macroeconômicas, porque vemos uma desumanização, não só na política como também na cultura e na sociedade.
Então a nossa luta é contracultural. Está ligada a certos valores éticos, por exemplo, a simplicidade de vida dos dirigentes. Nosso campo já sofreu muitos danos pelo fato de que a maior parte dos dirigentes é multimilionária. É muito difícil explicar por que nós, que lutamos por justiça social, temos uma dirigência que vive como a alta burguesia. Por outro lado, há questões que são tabu na Argentina, como a reforma agrária, que são necessidades estratégicas.
E propomos tudo isso sem nos considerar uma ruptura, como se a história tivesse começado quando nós chegamos. A história do movimento popular na Argentina e na América Latina tem centenas de anos desde a luta dos povos originários, as guerras de independência, o peronismo, os governos populares latino-americanos, Evo, Lula, Néstor, Cristina, Correa, Chávez.
Nós reivindicamos a história dos governos populares latino-americanos, agora com Petro, López Obrador, Lula de novo. Por isso fizemos as brigadas internacionais de solidariedade, no Brasil, Peru, Equador, Colômbia. Registramos violações na Bolívia, violações aos direitos humanos durante os processos de ditadura e de perseguição em cada um desses países.
Temos uma equipe muito sólida de advogados e antropólogos que trabalham com a questão dos direitos humanos. E estivemos presentes nos momentos difíceis de cada processo. Porque também acreditamos que o problema macroeconômico da Argentina não pode ser resolvido sem a unidade latino-americana, assim como acreditamos que os problemas sociais, territoriais e ambientais do Brasil ou do Paraguai não serão resolvidos sem a unidade latino-americana, por questões de perspectiva histórica, mas também por questões muito práticas, como as mudanças climáticas, o desmatamento, a extração de madeira, a contaminação das águas, que não têm fronteiras políticas.
E no nosso caso, em particular, a evasão permanente de divisas não se pode ser evitada com um mercado central apertado como o nosso. Precisamos de uma unificação monetária em primeiro lugar com o Brasil, criar uma moeda regional, um euro da América do Sul, da América Latina, um Banco Central comum, reproduzindo criticamente a experiência da União Europeia, compreendendo seus erros e limitações, dando um impulso latino-americano, mas também assumindo que nosso espaço territorial latino-americano foi balcanizado por interesses imperiais e que a reunificação é uma necessidade estratégica, sem a qual não é possível humanizar a política, a geopolítica, a economia e a sociedade, porque as escalas locais não permitem.
A juventude foi muito importante para parar Bolsonaro no Brasil. E na Argentina a juventude parece ter simpatia por Milei. A esquerda perdeu a capacidade de canalizar a revolta da juventude?
Perdeu a capacidade de canalizar qualquer transgressão ou revolta. E quando canaliza é para moderar, para frear ou para conter a revolta. Isso ocorreu nos movimentos sociais, no movimento rural, indígena, feminista. Ou seja, ficou preso em uma estatização lamentável.
Nos últimos quatro anos, enquanto as pessoas perdiam direitos, as organizações se empoderavam. E isso gerou um descrédito muito grande nas organizações. Porque as organizações estão mais fortes e a população está mais empobrecida e com menos direitos.
Isso vale para todos os movimentos, incluindo o estudantil ou de juventudes. Então acredito que há uma forte reação a essa hipocrisia e que a briga para se recuperar disso vai ser difícil, muito difícil mesmo. Mas a possibilidade de uma vitória hoje é apertada, mas muito viável.
Porque não é como se Milei tivesse tido 50% dos votos. Ele tem um terço do eleitorado. A direita tradicional tem um terço. E nós temos um terço do eleitorado. Provavelmente vai ter segundo turno e no segundo turno infelizmente não teremos um freio progressista popular contra a direita, mas podemos ter um esquema mais similar ao do Macron, na França, com uma aliança de centro frente ao perigo que o Milei representa não só para os interesses populares, como também para a burguesia, ou seja, um setor com propostas irracionais, abertamente desumanizadoras, dogmáticas e ideológicas não será o preferido do sistema econômico, político e corporativo da Argentina. Não será.
Então a coisa toda tem sua complexidade. Não é linear, em termos de bons e maus. Está tudo misturado, como o joio e o trigo. E nesse sentido nossa força, que hoje está ampliada em uma coalizão, que é a "Argentina Humana", tem a obrigação de desenvolver a contradição principal, que hoje é contra a direita e a ultradireita, mas sem perder de perspectiva a contradição secundária.
A contradição secundária é muito aguda também. A contradição dentro da "União pela Pátria" é muito aguda também. E nós temos que fazer um esforço muito grande para mudar a orientação da proposta política hegemônica do nosso espaço a uma orientação com mais distribuição da riqueza, com mais distribuição de renda, com mais cuidado da natureza e com menos frivolidade na política.
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“Há uma crise no peronismo”, diz líder político que disputou eleições na Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU