16 Outubro 2019
O triunfo de Axel Kicillof nas eleições primárias da província de Buenos Aires será central na eleição geral da Argentina. Um candidato controverso, poderá ser o governador da província mais importante do país.
O artigo é de Agustín Cesio, publicado por Nueva Sociedad, outubro de 2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na Argentina, as eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) deveriam servir para selecionar as candidaturas que se apresentarão nas eleições gerais. Nas celebradas em 11 de agosto, no entanto, nenhum partido teve competição interna, que então serviram como simulação das gerais. E assim ocorreu também nos níveis provinciais. Não se decidia nada porém, se decidiu quase tudo. Em torno da metade dos argentinos votaram por Alberto Fernández, acompanhado por Cristina Fernández de Kirchner como candidata a vice-presidente, e castigaram o atual presidente, Maurício Macri, por descumprir suas promessas: durante seu governo a inflação foi cada vez maior, os investimentos prometidos não chegaram e a economia passou da recessão da crise, com o endividamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI) como espada de Dâmocles. Longe de modernizar o país, Macri cometeu o mesmo pecado que outros governos da direita: aprofundou os problemas que vinha a resolver.
Assim, se abriu na Argentina uma transição presidencial de quatro meses, enquanto que o primeiro turno eleitoral de 27 de outubro já se vive quase como o segundo. Macri vive na própria carne a tensão de ser presidente e candidato, enquanto se faz mais próximo da condição de ex-presidente. Por outro lado, Fernández é o candidato presidencial da Frente de Todos, funciona como um tipo de presidente eleito para o empresariado, os mercados e a cidadania, assim como para vários mandatários estrangeiros que o receberam em duas giras recentes.
O certo é que a eleição argentina (e a eterna transição) está na boca de todos. Se analisam as razões e as formas que conduziram o candidato peronista a se impor nas primárias sobre o presidente Macri, um homem que, baseado nas estratégias do marketing político contemporâneo (e dos gurus do “algoritmo"), parecia indestrutível. No momento, e a menos que se sucedam fatos políticos extravagantes, se espera que Fernández confirme sua vitória em 27 de outubro. Há algo, não obstante, do que se fala menos: de como na principal província do país o ex-ministro da Economia Axel Kicillof ganhou por uma ostentável margem, nas zonas mais populosas da Argentina, da atual governadora, Maria Eugenia Vidal, até agora a estrela que mais brilhava no firmamento governista e que inclusive era considerada uma candidata presidencial melhor que Macri. E ainda que se fale pouco dela, há uma verdade evidente: que a eleição de Buenos Aires é crucial para os comícios nacionais. A província mais importante do país está produzindo uma mudança de sinal político que, até pouco tempo, parecia impensável para muitos. Kicillof é um candidato sindicado e acusado de ter o perfil muito associado às classes médias urbanas universitárias para seduzir os setores populares.
Igual ao que aconteceu em termos nacionais, o resultado das PASO bonaerenses deixou a impressão de que a eleição está quase decidida: Kicillof se impôs a Vidal por 18 pontos (52% e 34%). Se trata de uma vitória rutilante, talvez mais que a do próprio Fernández: Kicillof venceu a figura mais destacada do governismo. Para alguns, a vitória foi surpreendente. Vidal, uma conservadora em um governo liberal, foi uma das grandes vencedoras nas eleições de 2015 e 2017 e criou ao seu redor uma sensação de ser imbatível. Porém, se pensar a província de Buenos Aires em relação com o governo federal, poderá se ver que a derrota de Vidal não foi tão surpreendente. Comecemos, então, pelos ganhadores: quem é Kicillof?
Axel Kicillof nasceu na cidade de Buenos Aires, em 1971 e finalizou os estudos secundários no Colégio Nacional de Buenos Aires, dependente da Universidade de Buenos Aires. Se graduou como economista e realizou seu doutorado com uma tese que pinta cabalmente suas ideias: era sobre a teoria do economista John Maynard Keynes. Por aqueles tempos, Kicillof militava em uma agrupação independente dos partidos tradicionais (Tontos pero No Tanto) e exercia a docência. O kirchnerismo ainda não havia chegado ao poder e a disputa se dava entre peronistas alinhados a posturas neoliberais e opositores que tampouco pretendiam tocar as características mais gerais desse modelo. A hora de Kicillof chegou, porém, com o kirchnerismo. Durante o primeiro governo de Cristina Fernández de Kirchner, começou a ocupar cargos de transcendência: na Aerolíneas Argentinas e em empresas nas quais o Estado nacional possui assentos na direção. No segundo mandato da ex-presidente, Kicillof se mostrou como uma estrela em ascensão e chegou à posição mais alta que poderia aspirar como economista: primeiro foi designado secretário de Política Econômica e depois, em 2013, como ministro da Economia. Em 2015, ano da derrota kirchnerista, Kicillof foi eleito deputado nacional.
O plano significou um novo desafio para o economista progressista e heterodoxo: começou a recorrer a vasta geografia bonaerense com o olhar para o governo. Em meio a isso, teve que lidar com acusações dos próprios partidários, como também de alheios. E é que Kicillof foi acusado de ser marxista e foi apontado como membro de La Cámpora, o grupo do ex-presidente que é resistido pela oposição e por grande parte do peronismo. Embora tenha 48 anos, ele mantém um estilo jovem de ativista universitário. Longe de ser marxista, Kicillof se definiu como, porque “o peronismo é colocar um modelo industrial acima de um modelo simplesmente primário e financeiro”. Alguma vez se definiu como “um filho recuperado pelo peronismo”, referindo-se aos netos recuperados pelas avós da Plaza de Mayo, cujos pais desapareceram durante a última ditadura militar. Mas seu relacionamento com La Cámpora é instável: dono de sua própria carreira, Kicillof transcende a estrutura desse grupo porque soube criar vias de comunicação com todos os setores do peronismo.
Kicillof também foi acusado (especialmente por seus rivais internos) de “extraterritorial”, de não ter “nascido e crescido” em Buenos Aires. Ou seja, de ser portenho e de ter um habitus cultural diferente daquele da tradição do peronismo bonaerense. Kicillof evitou discutir esse pedigree e visitou cidades, conheceu em primeira mão a estrutura produtiva da província e os problemas que a afligem. Além disso, teve o apoio inestimável de Cristina Fernández, que, apesar de perder as duas últimas eleições na província, tem uma força inegável por lá. Assim, Kicillof chegou ao início do processo eleitoral bem posicionado, enquanto um grupo de prefeitos peronistas que contestavam sua candidatura acabou se concentrando em intrigas palacianas (o que no jargão argentino é conhecido como “la rosca”). Quem conhece Kicillof destaca sua ductilidade: durante a campanha, lixou as asperezas com os prefeitos, os conteve e os fez parte da sua campanha. Ele tornou-se seu próprio condutor.
A vitória de Kicillof ocorreu em um território chave para as eleições gerais, mas também em um local muito particular na Argentina. A província de Buenos Aires é um dos estados subnacionais mais hipertrofiados do mundo: concentra aproximadamente 40% da população do país (quase 17 milhões de pessoas) e 36% do eleitorado total (pouco mais de 12 milhões). Desses percentuais, quase 60% está lotado em 24 municípios que compõem a Grande Buenos Aires, nos arredores da capital do país. Para qualquer candidato a presidente, a eleição na província de Buenos Aires é fundamental por causa de seu tamanho eleitoral.
A província se destaca por sua mistura. De dimensões gigantescas, agrupa localidades com importantes bolsões de pobreza e outras conhecidas por seu alto poder de compra. No mesmo território, San Isidro (uma área rica e poderosa, mas também com suas favelas) convive com bairros marginalizados como La Matanza (um território que possui mais de 100 vilarejos e assentamentos de emergência, mas também vive em situações de pobreza fora da região). O cenário da província de Buenos Aires é o de um território de desigualdades e contrastes. Foi lá que Kicillof venceu, um jovem que poucos viam a capacidade de ter sucesso em um território onde, supostamente, era preciso ser um “durão da política”.
Buenos Aires é o estado mais importante em termos econômicos: produz e arrecada quase 40% do total produzido e arrecadado no país. Apesar disso, a província não administra sua economia: depende das transferências fiscais do governo federal. Tomemos como exemplo a coparticipação: por esse sistema de redistribuição de impostos, Buenos Aires recebe aproximadamente 21% dos fundos coparticipáveis, ou seja, quase metade do que arrecada. Isso é algo sobre o qual Kicillof está claro: e será um dos problemas que ele enfrentará como uma nova figura política.
A atual governadora, Maria Eugenia Vidal, demonstrou anteriormente o que Kicillof agora demonstra: que a província pode ser conquistada por alguém que não faz parte do “mesmo de sempre”. De fato, Vidal se fortaleceu mostrando-se como um “rosto humano” diante dos clássicos “governantes peronistas”, diante dos “barões do Conurbano”. Em 2015, ninguém acreditava que ele poderia ganhar a eleição. E ainda assim ele ganhou. Mas, diferentemente de Kicillof, ele fez isso de um espaço não-peronista. Ambos, no entanto, têm um apoio inestimável de figuras históricas na política provincial.
Vidal não soube, no entanto, fazer valer o peso do seu próprio êxito eleitoral. Em seus quatro anos de governo, não pode reverter os termos desfavoráveis que, de antemão, já tinha a província. Ao final, esta lei de ferro pesou mais que o fato de que Vidal seja parte da mesma equipe de Macri. Quando a economia cresce, isso passa despercebido. Quando a Argentina está em crise, esse aspecto ganha relevância. Recentemente o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) apresentou cifras de desemprego e pobreza, e três regiões da província de Buenos Aires ostentam números que, em alguns casos, se encontram acima da média nacional: Mar del Plata (13,4% de desocupação e 29,5% de pobreza), a Grande Buenos Aires (12,7% e 39,8%) e La Plata (a capital provincial, com 10,5% e 31,9%, respectivamente).
Frente a isso, Vidal esteve de pés e mãos atadas. Assim reconheceu no início de setembro. Em uma visita à localidade bonaerense de Junín, reconheceu a crise e assegurou que o governo provincial, em termos econômicos, não pode fazer mais para paliar seus efeitos. Porém desde o político, sim pôde. Tendo em conta a implicação de Buenos Aires à eleição nacional, a governadora teve a possibilidade de adiantar a eleição a governador para plebiscitar seu mandato e, em caso de uma eventual vitória, impulsionar a eleição presidencial de Macri. Nada disso aconteceu: Vidal deu o braço a torcer frente à “ala talibã” do macrismo e manteve sua eleição junto à presidencial. Seguramente, Vidal deve estar se lamentando.
A única certeza é que, em vez de ser governadora dos bonaerenses, Vidal escolheu ser uma governadora de Macri. Escolheu, de fato, ser parte de uma equipe que sustentou (e sustenta) um presidente que leva adiante um ajuste que submergiu o país em uma crise que afetou tanto a classe média quanto os setores vulneráveis. Desde 10 de dezembro, um governo nacional da Frente de Todos afrontará a resolução da crise e o próximo governo bonaerense deverá encarar a mesma tarefa, adaptado a seu estilo: hoje a equipe de Axel Kicillof diagnostica a gestão que, supõe, deixará Vidal, com uma situação financeira frágil, altos níveis de endividamento em dólares e um “default virtual”.
Axel Kicillof é uma figura perturbadora da política de Buenos Aires da mesma maneira que Vidal foi em 2015. Nesse ano, “Heidi” (como seus detratores a apelidaram por sua imagem de “boa”) gerou expectativas por ter se imposto aos “barões do Conurbano” e por moldar uma maneira de fazer política marcada pela juventude e pela proximidade. Este ano, perdeu em sua lei contra o “Heidi de Heidi”, como o consultor Ignacio Ramírez definiu Kicillof. Assim, a transição em andamento coloca a política de Buenos Aires em uma harmonia global: jovens líderes, que emergem de fora dos partidos tradicionais, são criados pelos cidadãos. E ele também tem um capital ético que não tem muito do Kirchnerismo: ele nunca foi acusado de corrupção.
Se os argentinos foram punidos por Macri por piorar a qualidade de vida dos argentinos, foram punidos por Vidal pela Buenos Aires por serem seus cúmplices. Kicillof obtém, agora, a confiança de Buenos Aires. Não há dúvida de que é um fenômeno único. E certamente pesará nas eleições gerais de 27 de outubro.
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Argentina. O Efeito Kicillof. Quem é o jovem da vitória peronista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU