Em análise técnica, Assessoria Jurídica do Cimi destaca principais pontos da proposta legislativa que tramita no Senado e apresenta grave risco aos direitos constitucionais indígenas.
A nota foi publicada por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 24-08-2023.
No final de maio, a Câmara dos Deputados aprovou, por 257 a 123 votos, o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que reúne uma série de ataques aos direitos constitucionais dos povos indígenas – os quais têm, nos últimos anos, se manifestado enfaticamente contra a proposta. Desde então, o projeto tramita no Senado sob um novo número: PL 2903/2023.
Nesta quarta-feira (23), a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado aprovou o relatório apresentado pela relatora Soraya Thronicke (Podemos/MS), favorável à aprovação do PL, por 13 votos a 3. Agora, o projeto deve seguir à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, em seguida, ao plenário do Senado.
A Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) produziu uma nota técnica analisando a legalidade, a constitucionalidade e os principais aspectos do projeto. A análise aponta que o PL 2903 é uma aberração jurídica, tanto pela inadequação de sua forma, com vícios insanáveis, quanto pelo seu conteúdo, que busca restringir os direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988.
A nota destaca as principais inconstitucionalidades da proposta legislativa em tramitação. Uma das inadequações mais evidentes está em sua forma: trata-se de um Projeto de Lei ordinária – ou seja, um PL comum, com tramitação simplificada – que busca alterar a Constituição, redesenhando os artigos 231 e 232, que garantem aos povos indígenas seus direitos.
A nota técnica aponta que estes artigos da Constituição Federal, por tratarem de direitos fundamentais, são cláusulas pétreas – e, por isso, não podem ser alterados nem por Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que tem tramitação mais complexa, pois precisa da aprovação de três quintos da Câmara e do Senado e deve ser votada em dois turnos de discussão em cada Casa legislativa.
O PL 2903 busca restringir direitos fundamentais dos povos indígenas, num movimento flagrantemente inconstitucional, razão pela qual a Assessoria Jurídica do Cimi aponta que o projeto tem vícios insanáveis.
Os direitos garantidos nos artigos 231 e 232 somente poderiam ser alterados, quiçá, por meio de nova constituinte – mesmo assim ainda haveria dúvidas sobre tal possibilidade, já que são direitos pré-existentes, aponta a análise.
Essa interpretação também é adotada pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que possui repercussão geral e está em análise pela Suprema Corte.
Manifestação dos povos indígenas contra o marco temporal em Brasília (DF), em junho de 2023. (Foto: Verônica Holanda/Cimi)
Um dos aspectos centrais do PL 2903 é o estabelecimento da tese do marco temporal como critério para a demarcação de terras indígenas. A tese, além de não ser prevista pela Constituição Federal de 1988, está em análise pelo STF no Recurso Extraordinário de repercussão geral que trata da matéria.
Na prática, a proposta busca inviabilizar novas demarcações de terras indígenas e barrar os processos demarcatórios em curso.
A tese do marco temporal estabelece que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988 ou se conseguissem comprovar o “renitente esbulho” da terra reivindicada – ou seja, comprovar que na data da promulgação da Constituição Federal, os indígenas disputavam a área “pelas vias de fato ou por uma ação judicial”.
“Até a data de 5 de outubro de 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado e não possuíam capacidade jurídica ou capacidade postulatória. Então, como poderiam ingressar com ação judicial naquela data se isso não era juridicamente possível?”, questiona a nota técnica.
“Não se pode exigir que os indígenas comprovem litigância judicial, pois eram tutelados, assim como é impossível exigir que estivessem disputando em embate físico, diante de tamanha violência e ameaças sofridas, o que poderia levar as etnias à extinção”, destaca a análise.
Ao incorporar a tese do marco temporal, o PL 2903 propõe que o Estado ignore os crimes que foram cometidos contra os povos indígenas antes da promulgação da Constituição de 1988, amplamente registrados em documentos como o Relatório Figueiredo e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigaram e identificaram diversos crimes cometidos contra povos indígenas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pela Ditadura Militar.
A nota também cita as violências brutais – como genocídio, com assassinatos inclusive de crianças – cometidas contra o povo Xokleng, cujo território está no centro da disputa de repercussão geral em análise pelo STF.
O PL 2903 “tem como objetivo a anistia de crimes de natureza hedionda” e “não leva em consideração o histórico de violação de direitos dos povos indígenas. Foram expulsos de suas terras e, agora, o Congresso Nacional busca, além de legalizar os crimes cometidos contra os indígenas e seu patrimônio, anistiar os responsáveis pelo genocídio”, aponta a Assessoria Jurídica do Cimi.
Justamente pelo fato de estas questões estarem sob análise da Suprema Corte, a análise aponta que, ao avançar com a tramitação do PL 490, agora 2903, o Congresso Nacional pratica uma “clara invasão” da competência do STF.
“Dentre os três poderes, é o STF quem detém a competência para interpretar a Constituição Federal. Não há necessidade de elaboração de novas leis, mas sim de interpretação das que já existem”, aponta a nota.
Na avaliação da Assessoria Jurídica do Cimi, o próprio fato de o STF ter reconhecido a repercussão geral do julgamento do Recurso Extraordinário “tem força de impedir a tramitação do PL”.
Manifestação dos povos indígenas contra o marco temporal em Brasília (DF), em junho de 2023. (Foto: Hellen Loures/Cimi)
Entre os pontos mais graves do projeto está a determinação de que a União possa retomar e dar “nova destinação” a reservas indígenas onde tenha ocorrido “alteração dos traços culturais” (sic) da comunidade ou povo.
Esse ponto, revela “desconhecimento da realidade sociocultural do país” e “é um preconceito face às comunidades indígenas e seu direito de autodeclaração e autodeterminação, destaca a análise.
“Além do atraso teórico em que se baseia tal dispositivo, ele é sustentado por racismo, preconceito e também por supremacia cultural, aponta a Assessoria Jurídica do Cimi.
Outro ponto central do projeto é a flexibilização do direito dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de seus territórios, também garantido pelo artigo 231 da Constituição Federal.
Além de abrir as terras indígenas para projetos de exploração econômica, o PL 2903 estabelece que este direito dos povos indígenas não poderia se sobrepor a um suposto “interesse da política de defesa e soberania nacional”.
A análise destaca que foi adotado no PL “um conceito alargado de política de defesa e soberania nacional, em que se inclui quaisquer intervenções militares, expansão da malha viária, exploração energética e resguardo das riquezas de cunho estratégico – aí pode estar o interesse do setor agrícola nas terras indígenas”.
Essa previsão, aponta a nota, “é materialmente inconstitucional”. Além disso, o projeto elimina a necessidade de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé às comunidades afetadas por esses projetos, como determinado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A obrigatoriedade de autorização do Congresso Nacional para essas atividades também é excluída pelo projeto, contrariando frontalmente o artigo 231 da Constituição. Essa proposição é caracterizada na nota técnica como “uma aberração jurídica”.
Outra determinação do PL 2903 é a proibição do que o projeto chama de “ampliação de terras indígenas”. O próprio termo é um equívoco conceitual, propositalmente difundido pela bancada ruralista.
Existem, no Brasil, terras indígenas que foram demarcadas ou reservadas numa área muito menor do que a reivindicada e tradicionalmente ocupada por diversos povos indígenas – normalmente, por meio de processos administrativos que não foram embasados em estudos técnicos e científicos, como ocorre nas demarcações realizadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Nesses casos, os povos indígenas reivindicam a revisão dos limites incorretamente delimitados pelo Estado. Esses procedimentos, desde 1996, são regulados pelo Decreto 1775, cuja adequação constitucional já foi confirmada pelo próprio STF.
A tese de que essas revisões seriam “ampliações” e poderiam ser proibidas por um Projeto de Lei “é equivocada, dado que o direito indígena além de ser declarado, pré-existente, ele é imprescritível, aponta a nota técnica.
Outro aspecto grave inserido na versão atual do projeto é a possibilidade de contato com indígenas em isolamento voluntário “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
“A prática do contato forçado de povos indígenas em isolamento foi abandonada pelo Estado brasileiro motivada pela tragédia que provocou em numerosos povos indígenas, muitos dos quais foram drasticamente reduzidos por epidemias ou mesmo exterminados, explica a nota técnica.
Segundo o documento, a possibilidade do contato forçado é justificada “de forma vaga e genérica” no PL 2903. A proposta “é uma grave ameaça à vida dos povos indígenas em isolamento e abre caminho para toda sorte de abusos e violações dos seus direitos, além de contrariar a Constituição e declarações internacionais de direitos indígenas das quais o Brasil é signatário.
A justificativa da bancada ruralista, principal patrocinadora do PL 2903, para a sua tramitação e aprovação é de que “o STF já teria pacificado a matéria quando do julgamento do caso Raposa Serra do Sol”. O projeto, assim, estaria apenas adequando a legislação às decisões já tomadas pela Corte.
Na avaliação da Assessoria Jurídica do Cimi, essa posição é falaciosa. “O Supremo nunca fixou uma tese ou pacificou a matéria indígena. Tanto é verdade que foi conhecida a repercussão geral” do RE 1.017.365, aponta a análise.
Além de impor uma interpretação parcial do caso Raposa Serra do Sol – que, por ter natureza de ação popular, não serve para fixar entendimento de repercussão geral – os ruralistas baseiam seus argumentos em apenas três decisões da Segunda Turma do STF que aplicaram o marco temporal.
A nota técnica, contudo, destaca que duas destas três decisões aguardam análise de recurso das comunidades indígenas, e a outra, que transitou em julgado, teve uma ação rescisória da comunidade admitida pelo STF.
Por outro lado, os ruralistas ignoram uma série de decisões do plenário do STF que confirmaram o caráter originário dos direitos territoriais indígenas, em oposição à tese do marco temporal, e a determinação de que dispositivos do julgamento de Raposa Serra do Sol não fossem descontextualizadas e aplicadas a outros casos.
“Por estes e outros motivos jurídicos, é flagrante a inconstitucionalidade da medida legislativa que ora tramita no Senado Federal”, conclui a análise.