01 Agosto 2023
"É necessário entregar a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e o que (quem) nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro", escreve Frei Betto, escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.
O Brasil precisa dar tratamento adequado à questão militar. A intentona golpista de 8 de janeiro deu lugar, no âmbito criminal, a uma série de investigações e prisões. Na esfera política, começa a caminhar uma CPMI em que, guardadas as discordâncias, parece existir um acordo: não chamar todos os militares envolvidos no episódio para depor e deixar a questão apenas para o Poder Judiciário. Assim, cuida-se do varejo e se esquiva de um problema cuja causa mora no atacado: para que (ou a quem) servem as Forças Armadas brasileiras? Antes de buscar a resposta, é necessário ampliar o número de pessoas para quem é feita.
A soberania nacional passa pelo princípio da autodeterminação dos povos. Nesse caso, uma política de Defesa Nacional serve para diminuir os constrangimentos externos à tomada autônoma de decisões ou, em outras palavras, permitir aos povos e Estados da periferia dizerem não às demandas dos países mais poderosos. Entretanto, a soberania popular implica perceber a nação como comunidade formada de múltiplos pontos de vista, cada qual com um diferente olhar sobre o que deve ser defendido no Brasil e para o seu povo, o que (quem) nos ameaça. Os movimentos populares, por exemplo, pensam que o principal objeto de defesa do Brasil precisa ser uma vida digna para o nosso povo. A política de defesa brasileira e a questão militar vêm sendo tratadas como se o fatídico 8 de janeiro não tivesse ocorrido. É necessário alterar este cenário e convocar os diversos segmentos da sociedade a participar das definições políticas, rompendo com o tradicional elitismo político-acadêmico e com a autonomia militar que tutela a área.
As discussões das relações internacionais são elitistas, tanto a condução da política externa quanto a política de defesa. São comuns comentários como “o povo não sabe”, “não tem visão de longo prazo”, “não tem interesse”. Daí a esquerda alimentar dois tipos de reações: todo militar é suspeito, por isso é preciso acabar com as Forças Armadas. Ou o inverso: na ausência de força de sustentação social própria, seguir à procura de um seguro militar, buscar “um general para chamar de seu”.
Trazer os princípios da democracia e da participação popular para a gestão das relações internacionais do Estado implica subordinar a discussão sobre o que se defende, do que e de quem à apreciação pública. Supõe também subordinar “o braço forte e a mão amiga” a um projeto popular de país, criar conselhos, discutir coletivamente documentos orientadores de Defesa Nacional, de forma a traduzir para o cotidiano temas considerados técnicos. Quando salientamos que a tarefa atual dos movimentos populares é organizar a esperança enquanto verbo, como ensina Paulo Freire, o dever se estende às áreas que aparentam maior distância do nosso dia a dia, como a de defesa.
A tutela militar sobre a política brasileira não é um fenômeno do governo Bolsonaro, embora tenha se mostrado de maneira aguda naquele período, assim como durante a ditadura militar, ao longo de 21 anos. Existem propostas de curto, médio e longo prazos para alterar a situação, e algumas já fazem parte do debate público, como a necessidade de rever o artigo 142 da Constituição (que trata das atribuições das Forças Armadas); alterar a metodologia e o conteúdo curricular da educação dos militares; separar as polícias das Forças Armadas; e revogar privilégios que a caserna mantém quando comparada a outras categoriais civis, desde a ditadura. Mas sem força social nada disso se torna um projeto.
O presidente Lula inicia um governo de frente amplíssima, e é natural e positivo que queira diminuir a temperatura das relações com a caserna. O caminho, atualmente sinalizado, de oferecer recursos para investimentos em equipamentos, coincide com a opção política dos primeiros mandatos. Entretanto, destinar dinheiro aos militares vem se mostrando um poço sem fundo, talvez ainda maior que o do Congresso Nacional, insaciável na sua demanda por emendas.
Porém, a conjuntura apresenta uma oportunidade histórica, pois a tutela militar sobre a política brasileira é questionada: por setores populares, que avaliam negativamente a instituição em decorrência da superexposição ocorrida durante o governo Bolsonaro; pela imprensa, que todos os dias descobre um esqueleto no armário entre os muitos documentos protegidos por sigilo nos últimos anos; por algumas elites nacionais, que viveram a contragosto a divisão de espaços (e dividendos) políticos com parte da caserna no último período; internacionalmente, pois não há apoio para quarteladas militares neste momento por parte das grandes potências.
Diante dos desgastes na caserna, revisar os documentos de Defesa Nacional apenas como obrigação normativa é um equívoco. As novas Estratégia Nacional de Defesa e Política Nacional de Defesa precisam ser objetos de amplo debate, convidar diferentes setores da sociedade para se sentar à mesa naquela que seria a I Conferência Nacional de Defesa. Mais gente discutindo permite arejar o tema e melhorar a correlação de forças na condução do assunto, muito centrada nas figuras do Presidente e dos comandantes de cada Força. Além disso, oferece resposta a uma antiga reclamação da caserna, a de que ninguém externo às Forças Armadas se interessa pela corporação ou pela política de defesa.
É necessário entregar a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e o que (quem) nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro. A conferência não é um fim em si mesma, mas um processo através do qual a democracia participativa pode chegar a uma área cuja condução foi historicamente autoritária e antipopular. Será uma oportunidade de proporcionar educação política de segmentos diversos sobre o assunto.
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Por uma Conferência Nacional de Defesa. Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU