"O trabalho de pacificação de memórias poderia desencadear um salto de qualidade pouco previsível neste momento, uma capacidade de visão que transforme o lugar onde ocorreram o cisma interortodoxo, a crise do ecumenismo e o fracasso da profecia cristã da paz...", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 14-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um ano e meio depois da agressão russa na Ucrânia, o panorama religioso do país vive uma progressiva secularização, um viés nacionalista ou identitário, um maior distanciamento entre as três grandes Igrejas (ortodoxa autocéfala, ortodoxa não autocéfala, ortodoxa greco-católica), uma visão incerta para o futuro.
O escândalo de uma guerra entre cristãos, o abundante uso do depósito simbólico religioso, o consenso acrítico da Igreja Russa à violência agressiva do exército de Putin e a correspondente dúvida sobre a confiabilidade da Igreja não autocéfala alimentam o progressivo distanciamento da fé, como intuiu o arcebispo maior dos ucranianos, Sviatoslav Shevchuk.
A urgência da compactação social na tempestade bélica enfatizou a conotação nacional da autocéfala Igreja de Epifânio e dos greco-católicos. O esforço para salvar o vínculo canônico-espiritual com Moscou levou a Igreja não autocéfala de Onúfrio à beira de um identitarismo pouco compreensível pelos fiéis e muito suspeito aos poderes administrativos e políticos, decididos a pedir um colaboracionismo às escondidas.
Um dos efeitos dos processos em curso é o maior distanciamento entre as Igrejas e a menor credibilidade do Conselho Nacional das Igrejas e das Religiões. Todos percebem a tarefa eclesial para o pós-guerra, mas sem uma liderança adequada e sem uma visão de conjunto.
Num artigo fundamentado, o Mons. Silvestre de Belgorod, reitor da academia teológica de Kiev, reconstrói os comportamentos de sua Igreja (não autocéfala) durante os meses da guerra.
Após a tempestiva denúncia da invasão proferida pelo metropolita Onúfrio no próprio dia da invasão (24-02-2022), relata o difícil planejamento do concílio (27 de maio de 2022) em um clima de grande incerteza. “Hoje podemos dizê-lo claramente; durante os meses de guerra, não ouvimos nenhuma condenação da agressão militar e nem mesmo um aceno de simples compaixão humana pelos ucranianos arrasados pela dor, de parte do clero da Igreja Ortodoxa Russa, com exceção de poucos clérigos".
Iniciada como uma simples reunião de bispos, a assembleia se transformou em concílio em poucas horas, com a inclusão de padres e leigos disponíveis. Depois daquela assembleia, a escolha e a entronização do metropolita não necessitam da bênção do patriarca Kirill, nenhuma decisão da Igreja passa por Moscou, o nome do patriarca não entra nos dípticos das celebrações, o metropolita não é mais membro do sínodo russo e a preparação do santo óleo crismal é feita em Kiev e não vem de outro lugar. A autocefalia não foi expressamente solicitada porque colocaria a Igreja ucraniana numa terra de ninguém, num cisma, sem diálogo possível com as outras Igrejas.
Apesar disso, o serviço nacional para a etnopolítica e a liberdade de consciência produziu, alguns meses depois, um texto de avaliação que afirma a permanência de um vínculo significativo e censurável com o patriarcado de Moscou. Uma conclusão considerada incorreta, pois incapaz de perceber o vínculo dos cânones eclesiásticos e pelas críticas diretas que permanecem à concessão da autocefalia à outra Igreja ortodoxa local por Bartolomeu de Constantinopla.
A suspensão da comunhão eucarística com o Fanar e com a Igreja autocéfala tem motivos eclesiais e não políticos. Um diálogo intraortodoxo é necessário para construir uma fórmula de consenso.
Em sua argumentação, Silvestre de Belgorod admite que, nos meses da guerra, "as relações se deterioraram consideravelmente" entre as duas Igrejas. A Igreja de Epifânio “tem hoje uma posição abertamente agressiva para com a nossa Igreja. Seus dirigentes estão usando a situação para literalmente derrubar a nossa Igreja”.
Desde novembro de 2022, também se deterioraram gravemente as relações entre a Igreja não autocéfala e os institutos estatais ucranianos que a acusam de colaboracionismo com o invasor. “Mesmo que tenha havido algumas dezenas de casos de colaboração, não se trata de um fenômeno de massa entre o nosso clero”.
O caso mais conhecido da tensão com o Estado diz respeito à Lavra da Gruta de Kiev, o maior complexo monástico do país que abriga 200 monges, 300 estudantes de teologia, a cúria do metropolita, algumas das maiores igrejas do país e uma série numerosa de atividades artísticas e comerciais. Propriedade do Estado, o mosteiro está sob a responsabilidade de uma fundação encabeçada pelo Ministério da Cultura.
A vontade política de remover a presença da Igreja não autocéfala interessou apenas em parte o complexo e dezenas de conflitos jurídicos estão em andamento. Nos últimos dias, a mudança do ministro e do responsável pela fundação parece congelar a situação com uma copresença conflituosa das duas Igrejas.
As propostas aos monges e à academia (passar para a obediência de Epifânio, colocar o mosteiro sob a proteção de Bartolomeu, mudar-se para um mosteiro russo) ainda estão sobre a mesa.
Nesse interim, um conflito judicial envolveu o bispo Paulo, responsável pelo mosteiro, submetido a julgamento e prisão e agora solto mediante o pagamento de uma fiança para a qual teriam contribuído cerca de mil fiéis. Figura muito discutida pelo luxo exibido em sua vida pessoal, viu tomarem partido em sua defesa o patriarca Kirill e o patriarca da Igreja sérvia, Porfirio. A mesma defesa para o bispo Jonathan de Tulcin, condenado em 7 de agosto a cinco anos de detenção.
A favor da Igreja não autocéfala temos a notícia de que os projetos de lei que visam declarar a sua ilegalidade não foram discutidos no parlamento. Contra ela, a decisão do governo que antecipa o Natal para 25 de dezembro (de acordo com o calendário gregoriano-corrigido das Igrejas helênicas) em vez de 6 de janeiro (calendário juliano defendido pelas Igrejas eslavas) e a decisão do tribunal administrativo de Kiev que considera legítima a rescisão do contrato entre a fundação da Lavra e a Igreja de Onúfrio.
Os maiores sinais de inquietação da Igreja de Onúfrio são a polêmica acalorada do bispo de Odessa contra Kirill, depois que um míssil danificou gravemente o principal templo da cidade, e o pedido de 430 padres, dirigido ao metropolita, por um esclarecimento definitivo em relação ao corte de relações com Moscou.
Em 23 de julho, mísseis russos atingiram Odessa e destruíram a catedral, reconstruída e consagrada por Kirill em 2010.
Diante do desastre, o bispo Victor de Artsyz escreveu ao patriarca de Moscou: "Continuamente em seus sermões você fala da unidade da Santa Rus', que você está destruindo radicalmente com suas bênçãos e suas ações. Peço que preste atenção ao fato de que é precisamente com a sua bênção pessoal que o exército russo comete atrocidades na guerra no território de um estado independente. Na minha opinião, você esqueceu que na Rússia, como na Ucrânia, existem (existiam) seus fiéis, que você considera como tais. E você abençoou aqueles que hoje os matam. Na última conferência dos bispos em Moscou, você não disse uma única palavra para acabar com esta guerra de Caim, para interromper os massacres e a destruição de cidades e aldeias”. “Quando vi que o míssil abençoado por você destruiu a parte mais sagrada do templo, entendi que a Igreja Ortodoxa Ucraniana (de Onúfrio) não tem mais nada em comum com você. Por causa de suas ambições pessoais, você perdeu a Igreja Ucraniana e outras Igrejas da Santa Rus'”.
Pela primeira vez, Kirill se dignou a responder aos apelos de seus (antigos) fiéis ucranianos com uma carta datada de 1º de agosto. Ele considera o tom do texto que lhe chegou rude e desrespeitoso, mas atribui tudo ao desequilíbrio emocional do momento. Afirma "a imensa dor e profunda aflição" pelo povo crente, mas considera injustas e infundadas as acusações recebidas. Ele recorda seus esforços para aliviar as agruras de uma guerra que começou em 2014 (segundo a opinião de Putin) e confirmou a união espiritual com as Igrejas que não adoraram a Besta (Ap 20,4), mantendo fidelidade à tradição, aos cânones e o juramento episcopal. Ele confirmou seu apoio à Igreja de Onúfrio e se entrincheirou por trás das situações atuais para não arriscar declarações públicas imprudentes.
Após o desastre de Odessa, algumas centenas de padres escreveram ao Metropolita Onúfrio para pedir uma ruptura definitiva com a Igreja Russa de Kirill: “Não queremos sofrer pela Rússia, Putin ou Kirill. A maioria de nós sente que está sendo perseguida por eles e não por supostos ataques de outros à fé em Cristo”. “O senhor está bem cientes de que, apesar das decisões tomadas no concílio (maio de 2022), todos aqueles que o desejam, continuam a comemorar na liturgia o Patriarca Kirill, que alguns hierarcas de nossa Igreja fizeram declarações inequívocas sobre a unidade com a Igreja da Rússia e o nosso clero, em geral, não se identificou por escolhas claras. Consequentemente, resta apenas afirmar a inexistência de uma verdadeira ruptura com Moscou". Não se trata de ignorar as violências administrativas e judiciais contra a nossa Igreja, mas de dar uma resposta clara a nós mesmos sobre o nosso futuro. "Nós lhes convidamos a uma convocação imediata de um concílio para sancionar uma ruptura real e não efêmera com a Igreja Ortodoxa Russa".
Os padres recordam que a Igreja “ainda não emitiu um veredicto sobre a apostasia de alguns bispos e sacerdotes”. Eles pedem um diálogo com as outras Igrejas e confissões e um "retorno à unidade de oração com o patriarca ecumênico e com as Igrejas que reconheceram a Igreja autocéfala".
Onúfrio não apreciou isso. Ele não quis se encontrar com os representantes dos signatários, delegando isso a um de seus colaboradores. A resposta veio do chanceler, o bispo Antônio: tais intervenções prejudicam a Igreja e favorecem a anulação da mesma. Não se pode abrir um diálogo com as Igrejas que não têm sucessão apostólica e canônica (Epifânio).
No dia 28 de julho, o Metropolita Onúfrio tomou a palavra em um breve discurso no qual confirmou sua posição de esperar para ver. Ele lembra sua firme condenação à agressão russa e a necessidade do consenso de toda a sociedade ucraniana na resistência ao invasor. Não faz sentido apontar a Igreja não autocéfala como uma Igreja inimiga e indicar seus padres como sacerdotes de Moscou, suspeitando deles de colaboracionismo não demonstrável. Quanto às dioceses sob ocupação, limitou-se a dizer que não há comunicações e convidou à oração.
A recente história da autocéfala Igreja Ortodoxa foi contada em uma longa entrevista com o Metropolita Epifânio à Ortodox Times (22 e 27 de junho). Segundo ele, a invasão da Ucrânia foi preparada pela ideologia da Russky Mir (mundo russo) do patriarcado de Moscou que alimenta desde o início a deslegitimação do tomo da autocefalia ucraniana por Bartolomeu de Constantinopla.
O que diria a Kirill? “Eu diria a ele que ele deve temer a Deus e não a Putin. Deus é eterno, enquanto Putin morrerá como todos os tiranos e assassinos. Eu diria a ele que, como patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, ele carrega a responsabilidade de ter as mãos cheias do sangue de dezenas de milhares de ucranianos, vítimas de suas ‘bênçãos’".
Ele resume os deveres de sua Igreja autocéfala na oração, no testemunho da verdade, nas ajudas humanitárias à população, no fornecimento de assistência espiritual às forças armadas ucranianas e na crítica cultural e teológica da ideologia do Russky Mir.
As decisões mais importantes iniciadas por sua Igreja foram o uso da língua ucraniana no culto (em comparação com o eslavo da tradição russa), a afirmação do status autocéfalo da Igreja e a sua autonomia e a modificação do calendário que passou do juliano (russo) ao gregoriano-bizantino.
O elemento mais vistoso é a mudança da data do Natal de 6 de janeiro para 25 de dezembro, depois garantida pela lei do estado. Além, é claro, da pastoral paroquial, territorial e monástica, na qual estão envolvidos 5.300 clérigos, 8.500 comunidades paroquiais, 45 dioceses, 80 mosteiros masculinos e femininos, 1.200 estudantes de teologia. Declara-se disponível para o diálogo com a Igreja de Onúfrio sem condições prévias. Condições que a Igreja não autocéfala, ao contrário, especificou várias vezes: reconhecer que o clero e os bispos autocéfalos não têm uma ordenação válida, que o tomo dos autocéfalos não é aceitável sem a aprovação de Moscou, que a transferência das comunidades paroquiais da Igreja de Onúfrio àquela de Epifânio seja anulada. Reivindicações consideradas inaceitáveis.
O concílio (bispos e padres) de sua Igreja pediu a Bartolomeu que depusesse Kirill do papel de patriarca por meio de uma assembleia dos patriarcas de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém por causa de seu apoio à guerra e à heresia expressa no Russky Mir (mundo russo). Reconhece o idoso Filarete (na origem do cisma de Moscou) como bispo e pede a regulamentação dos três bispos por ele ordenados. Ele considera oportuno pedir o patriarcado para Kiev. Terminada a guerra, o problema será o da reconstrução moral do país: “Tratar-se-á da renovação da unidade social interna, da reabilitação dos soldados que regressaram do front, do apoio àqueles que sofreram as violências da guerra. Haverá muito trabalho a fazer nos próximos anos."
"Encontrar Deus na noite de nosso próprio medo, sentir sua presença quando talvez menos pensemos nele, é a chave para a fortaleza, a chave da capacidade de uma pessoa caminhar com Cristo sobre as águas do abismo de nosso mar de vida, que está cheio dos horrores da guerra, da dor e da morte. Cristo chama-nos para si, para a sua paz, porque só ele é a chave da nossa paz, força e vitória”.
As palavras proferidas pelo arcebispo maior dos ucranianos, Sviatoslav Shevchuk, em 6 de agosto de 2023, destacam a dimensão de consolação, acompanhamento e apoio que a Igreja greco-católica privilegiou durante os meses de guerra. Fortalecida pela memória do martírio das décadas comunistas, única Igreja a ser totalmente apagada do espaço público e, portanto, livre de qualquer forma de comprometimento, e o único grupo religioso a ter apoiado sem hesitações as "revoluções coloridas" que marcaram a progressiva consciência democrática e nacional da população, agora está desfrutando uma credibilidade difícil de manter.
Impulsionada, como as outras Igrejas, por um viés nacionalista, alimentou uma boa relação com a Igreja autocéfala de Epifânio e uma relação pragmática com as comunidades de Onúfrio.
No caso da "ocupação" da lavra, pedia para si apenas um possível uso ocasional das igrejas superiores e diante da pressão administrativa para com a Igreja não autocéfala avaliou a oportunidade de não criar mártires, mas também sublinhou a pouca credibilidade do clero de Onúfrio que denuncia perseguições onde muitas vezes se trata de mau hábito de obedecer às leis. Não participa da polêmica transição das paróquias ortodoxas de uma obediência para outra.
Tudo isso não evitou a dura repreensão de Kirill de Moscou, por ocasião da assembleia episcopal de 19 de julho de 2023, de ser corresponsável pelas numerosas "apropriações ilegais" de igrejas, de identificar-se em sentido nacionalista e de ser cúmplice de intimidações administrativas contra a Igreja não autocéfala.
O maior esforço e o empenho mais criativo de Mons. Shevchuk, expressamente antirrusso, foram aqueles de tornar digeríveis, internamente, os apelos de Francisco à paz em um contexto de forte choque de "civilizações" (Oriente eslavo contra Ocidente) e, externamente, evitar a simetria entre agressor e agredido.
Permanece uma certa dificuldade em compreender a perspectiva internacional e pacífica de Roma em relação a sinais menores (como as duas mulheres, russa e ucraniana, por ocasião da Via Sacra da Sexta-Feira Santa) ou maiores (como a continuidade das relações com figuras institucionais do patriarcado como Hilarion ou, seu sucessor Antonio, no papel de responsáveis pelo serviço exterior de Moscou; ou diante da iniciativa de paz liderada pelo Card. M. Zuppi).
Um elemento de interesse é a ação empreendida com a Igreja Católica polonesa em relação à pacificação da memória, aos massacres de 100.000 poloneses e 15.000 ucranianos durante os anos de guerra (1943-1944). Um depósito ulceroso nunca tratado adequadamente.
O trabalho de pacificação de memórias poderia desencadear um salto de qualidade pouco previsível neste momento, uma capacidade de visão que transforme o lugar onde ocorreu o cisma interortodoxo, a crise do ecumenismo e o fracasso da profecia cristã da paz, no ponto de recomeço da credibilidade cristã. Um lugar onde ortodoxos e católicos, com o consenso de Constantinopla e Roma, se reconheçam em um único patriarcado com uma dupla obediência jurídica.
Para a unificação das Igrejas Ortodoxas Ucranianas aponta o documento elaborado pelo CEMES, um centro eclesiástico de estudos de Tessalônica. Num texto, publicado em 12 de abril de 2022, é levantada a hipótese de uma dupla jurisdição (Moscou e Constantinopla) com instrumentos de representação binária como já acontece na diáspora no Ocidente ou iniciando uma estrutura sinodal comum provisória que antecipe a possível unificação.
A proposta mais criativa vem da recente tradição da Igreja greco-católica, ou seja, aquela de um único patriarcado no qual convergem todas as Igrejas ortodoxas locais e a Igreja greco-católica. O único patriarca deveria estar em comunhão com Roma, distanciando-se do exercício monárquico do primado petrino, e permitir que as Igrejas ortodoxas mantenham as recíprocas referências espirituais.
Uma espécie de antecipação da unidade das Igrejas num contexto onde as diferenças não são teológicas, mas históricas e culturais. Como me dizia o card. Lubomyr Husar, arcebispo maior dos ucranianos, em 2008: “A nossa esperança, desejo e esforço é favorecer o retorno à unidade original (da Igreja em Kiev). Isso requer em primeiro lugar um único chefe, um único patriarca, como sempre foi para as Igrejas Orientais. Um chefe significaria a unidade e nós, como greco-católicos, gostaríamos que esse patriarca estivesse em plena comunhão com o sucessor de Pedro”.