Sínodo sobre a sinodalidade: “Nossa Igreja precisa ser pobre com os pobres”. Entrevista especial com Silvia Kreuz e Dom Vicente de Paula Ferreira

O Instrumentum laboris da primeira Sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade reflete a escuta e a contribuição de diversas experiências das comunidades cristãs espalhadas pelo mundo

Foto: Vatican Media

04 Julho 2023

Comunhão, missão e participação são os três pilares do Instrumentum laboris [documento de trabalho] para a primeira Sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, a ser realizada em outubro de 2023, diz Silvia Kreuz, autora de Um café na fronteira: a missão de mães cristãs no acolhimento de filhos LGBTQIA+ (Metanoia, 2022). “São palavras importantes e de fácil compreensão conceitual, mas de difícil aplicação prática nas comunidades de fé. Temos o desafio de promover uma caminhada sinodal permanente, não apenas neste tempo do Sínodo”, afirma. Segundo ela, o documento aponta para “o compromisso cristão em aspectos mais amplos: a construção de uma paz justa, o cuidado da casa comum, o alerta para um sistema que gera exploração e desigualdade; há também o olhar voltado para as pessoas que sofrem exclusão, desde o papel da mulher nas tomadas de decisão na Igreja até a exclusão velada ou explícita das pessoas LGBTQIA+ das comunidades de fé e dos trabalhos pastorais”.

Dom Vicente de Paula Ferreira destaca a abrangência do texto e seu incentivo ao debate das questões abordadas. A complexidade dos temas, menciona, “parece revelar o próprio contexto poliédrico da contemporaneidade”. Entre os pontos essenciais a serem discutidos, ele assinala o protagonismo dos pobres da terra. “O documento cita várias vezes estas duas chagas de nosso tempo: o grito dos pobres e da criação. Em meu ponto de vista, na verdade, este deveria ser o eixo fundamental ao redor do qual todos deveríamos estar unidos. A vida tem pedido socorro nas chagas dos corpos de nossos irmãos descartados e na terra que sangra por conta de tantas violações de um sistema capitalista que tem se transformado numa engenharia criminosa. A Igreja necessita ser mais ágil com palavras e ações que apontem para um mundo novo”, sublinha.

A 16ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, com o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, começou em outubro de 2021, com o objetivo de ouvir, como Povo de Deus, o que o Espírito Santo diz à Igreja, e será concluída em 2024, depois da realização de duas sessões. A primeira será de 9 a 24 de outubro de 2023 e a segunda, em 2024.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Silvia Kreuz e Dom Vicente de Paula Ferreira apresentam suas impressões sobre o Instrumentum laboris e discorrem sobre os desafios da sinodalidade na Igreja.

As primeiras impressões, perspectivas e desafios do Instrumentum laboris do Sínodo serão apresentadas na próxima quarta-feira, 12-07-2023, no debate virtual promovido pelo IHU. Participarão do evento o Prof. Dr. Luís Corrêa Lima, da Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio, o Dr. Faustino Teixeira, professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, e o Pe. Edson Thomassim, de São Leopoldo/RS. O evento será realizado às 10h e transmitido na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no canal do IHU no YouTube.

No dia 20-07-2023, participarão do debate sobre o Instrumentum laboris Flavio Lazzarin, da Comissão Pastoral da Terra – CPT, Dom Joaquim Mol e a Profa. Dra. Alzirinha Souza, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas.

Confira a entrevista.

Silvia Kreuz (Foto: Arquivo Pessoal)

Silvia Kreuz tem especializações em Sexualidade Humana e em Formação Política para Leigos e Leigas. É fundadora e coordenadora do grupo Mães de Amor Incondicional – MAMI. É assessora do Grupo Católico de Acompanhamento Pastoral com Pessoas LGBTQIAP+, assessora da Campanha da Fraternidade na arquidiocese de Curitiba, articuladora do Grito dos Excluídos e das Excluídas em Curitiba e coordenadora da Escola Arquidiocesana de Formação Fé-Política Dom Ladislau Biernaski, na arquidiocese de Curitiba.

IHU – Quais suas impressões gerais do Instrumentum laboris para a primeira Sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, a ser realizada em outubro de 2023?

Silvia Kreuz – Eu tive a oportunidade de participar de uma das etapas continentais do Sínodo, a do Cone Sul. Ao ler o Instrumentum laboris para a Primeira Sessão, percebo que ele foi fiel às demandas pautadas naquele encontro. Quando se aprofunda a leitura, é possível identificar Ruah como o Sopro que nos une na diversidade, na pluralidade de dons e na missão. Há uma indicação para o compromisso cristão em aspectos mais amplos: a construção de uma paz justa, o cuidado da casa comum, o alerta para um sistema que gera exploração e desigualdade; há também o olhar voltado para as pessoas que sofrem exclusão, desde o papel da mulher nas tomadas de decisão na Igreja até a exclusão velada ou explícita das pessoas LGBTQIA+ das comunidades de fé e dos trabalhos pastorais.

Diversos temas que apareceram no processo de escuta estão contemplados no documento de trabalho, inclusive as crises geradas por abusos do clero. A escuta das diversas experiências das pequenas comunidades espalhadas por todo o mundo abre caminhos missionários e identifica por onde a Igreja Católica está caminhando. É possível reconhecer as necessidades, as debilidades e os avanços. Este é um momento propício para se admitir responsabilidades sobre posturas opressoras e rígidas, que sustentam estruturas de pecado; também se pode esperar um pedido de perdão associado ao compromisso de conversão da própria Igreja na figura de seus membros, diante de tantos gritos que foram ouvidos nas assembleias.

Então, penso que é possível afirmar que este documento tem o potencial de gerar vida, basta que os bispos estejam abertos e motivados a acolher. Há vários caminhos missionários abertos, aguardando a implementação de iniciativas eclesiais. Se os bispos buscarem formação e desejarem planejar movimentos, eles poderão consultar as experiências já existentes, ouvir os agentes de pastoral, em especial as mulheres, os jovens e as pessoas LGBTs. Sabemos que quem está vulnerabilizado ou sofrendo exclusão tem pressa, mas as mudanças são lentas e devem ser graduais para que os resultados alcançados sejam mais consistentes.

IHU – Quais os três pontos do Instrumentum laboris que destacaria como mais relevantes? Por quê?

Silvia Kreuz – O primeiro destaque seria para a afirmação de que “o protagonista do Sínodo é o Espírito Santo”. A forma de apresentação do documento evidencia tensões geradas nos processos de escuta, valoriza a linguagem que promove o entendimento e reconhece a plenitude na unidade protegendo as diversidades e particularidades das Igrejas locais. Também deve-se destacar a participação das leigas e dos leigos neste processo. Em algumas assembleias a representatividade foi bastante equilibrada entre leigas/os e clero.

O segundo aspecto importantíssimo é apontar que este documento não é apenas um relatório dos pontos mais mencionados na escuta. Ele evidencia também os frutos do discernimento dando espaço para a escuta das vozes marginais e proféticas, “reconhecendo a dignidade comum derivada do Batismo”. Se uma Igreja sinodal está aberta, acolhendo e abraçando a todas e todos, ela “não tem medo da variedade que comporta, mas a valoriza sem forçá-la à uniformidade”.

Há muitos destaques que podem ser elencados. Mas acredito que a grande esperança esteja exatamente na possibilidade de se promoverem formações para o clero sobre os temas que emergem na atualidade e sobre os quais a Igreja trabalha pouco ou nada. Entre eles, destaco alguns: (i) a participação das mulheres nos processos de decisão, talvez nos serviços diaconais; (ii) as questões de sexualidade humana, tanto no âmbito do acolhimento a pessoas LGBTs como no de prevenção de abusos; (iii) o cuidado com o clericalismo e a hierarquia demasiadamente valorizada dentro da Igreja.

IHU – Que limites e potencialidades o documento indica na realização do objetivo de aprofundar a sinodalidade na Igreja?

Silvia Kreuz – Entendo que as potencialidades estão apresentadas na forma de desafios. Não seremos capazes de abraçar estas se não estivermos dispostos a encarar os desafios. Uma potencialidade muito importante está na atuação das mulheres, mas que elas ultrapassem o patamar do serviço. A Igreja reconhece que sem o serviço das mulheres ela estaria desaparecendo, mas é necessária a inclusão das mulheres nos espaços de decisão. Sair do patriarcalismo é um movimento revolucionário, igualitário e necessário. Destaque seja dado à convocação de mulheres com direito a voto no Sínodo.

O compromisso ecumênico renovado pode gerar uma comunhão verdadeira, estimulando canais de troca de experiências e aprendizado que podem e devem evoluir para um diálogo inter-religioso. Tenho a esperança de que os bispos entendam que eles são exemplos para todo o clero na construção de estruturas que promovam respeito e comunhão.

Mas a principal potencialidade está na valorização da vida através do cuidado com a casa comum e da promoção da dignidade das pessoas. Este fato leva ao reconhecimento de todas as pessoas batizadas como sujeitos eclesiais que podem contribuir através da pluralidade de dons. Isso inclui um novo olhar para os casais que não receberam o sacramento do matrimônio, por exemplo; ou para a integração das pessoas LGBTs nas comunidades de fé. A promoção do cuidado e do acolhimento, a rejeição dos julgamentos e opressões estão dentro das expectativas de muitas leigas e leigos que participaram deste processo.

Porém, como qualquer texto escrito, a leitura será feita por diferentes olhares e entendimentos. A interpretação deste instrumento de trabalho deve ser fiel aos ensinamentos do Evangelho e não às tendências pessoais; esta já foi uma limitação que eu vivenciei na etapa continental do Cone Sul. Se não houver abertura para a ação do Espírito Santo, para a renovação da doutrina e para a valorização de boas experiências locais, de nada servirá toda a caminhada sinodal.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Silvia Kreuz – O documento apresenta três pilares que são comunhão, missão e participação. São palavras importantes e de fácil compreensão conceitual, mas de difícil aplicação prática nas comunidades de fé. Temos o desafio de promover uma caminhada sinodal permanente, não apenas neste tempo do Sínodo. Não precisamos esperar um documento final para entendermos que as mudanças já estão se instalando. Exemplo disso é o Grupo Católico de Acompanhamento Pastoral com Pessoas LGBTs, da arquidiocese de Curitiba. Inserido na dimensão sociotransformadora da arquidiocese, este grupo atua no acolhimento de pessoas que foram marginalizadas por muito tempo na Igreja Católica. Através de experiências de pastoral LGBT de igrejas irmãs, como a Igreja Episcopal Anglicana em Curitiba, foi possível fortalecer o grupo de católicos LGBTs até ele se tornar reconhecido oficialmente pela Mitra. A etapa continental permitiu a interação de membros da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBTs com o clero e os leigos presentes no encontro, dando visibilidade a um trabalho pastoral de extrema importância, hoje, no Brasil. A partir desta boa experiência será possível pensar e elaborar um projeto que atenda às demandas trazidas pelos fiéis no processo de escuta do Sínodo. Esta é uma grande esperança deste grupo.

Enfim, o Sínodo não é uma estratégia para organizar a Igreja, mas ele pode apontar um caminho de fecundidade que seja capaz de gerar vida e romper com processos de exclusão, como o próprio documento afirma: “animados por um desejo de conversão e sustentados por uma formação adequada”.

Angelus 02 de julho de 2023 Papa Francisco:

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Dom Vicente de Paula Ferreira (Foto: Diocese de Livramento)

Dom Vicente de Paula Ferreira é bispo da diocese de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia. É graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Horizonte, mestre e doutor em Ciências da Religião pela UFJF. Foi bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte, onde acompanhou pessoas e comunidades atingidas pelo crime da Vale com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.

IHU – Quais suas impressões gerais do Instrumentum laboris para a primeira Sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, a ser realizada em outubro de 2023?

Dom Vicente de Paula Ferreira – É um texto bem abrangente, com muitas e importantes constatações e questões que apontam para a necessidade de mudanças, tanto no interior da própria Igreja quanto na sua missão no mundo. Diante dessa complexidade, que parece revelar o próprio contexto poliédrico da contemporaneidade, o documento incentiva o debate. Não foi à toa que Francisco decidiu fazer essa assembleia sinodal em duas etapas (2023-2024). Creio que seja para não permanecer somente em diagnósticos, mas que se tomem alguns encaminhamentos. Nesse sentido, o texto traz esperanças.

Se há algum temor, é que ainda nos limitemos a certa autorreferencialidade, ao conjunto de doutrinas que recebemos do passado. Se, de fato, cremos que o protagonismo é do Espírito Santo, é possível aceitar que ele esteja nos iluminando para mudanças importantes. É pena que, às vezes, a palavra comunhão tenha servido para justificar a manutenção do status quo de quem está na condução dos processos. Quando surge uma voz que destoa, logo é tratada como perigosa, que causa divisões. Nesse sentido, é impossível pensar na busca da comunhão sem enfrentar, dialogicamente, conflitos. Não podemos ser omissos diante das urgências do Povo de Deus, da sociedade e da natureza que esperam de nós um testemunho evangélico mais dinâmico, capaz de responder aos desafios atuais, para que sejamos mais eficazes na construção do Reino de Deus.

IHU – Quais os três pontos do Instrumentum laboris que destacaria como mais relevantes? Por quê?

Dom Vicente de Paula Ferreira – Creio que a questão da Igreja ministerial seja fundamental. Será frustrante chegar ao fim desse caminho sinodal sobre a sinodalidade sem aprofundar temas como a ordenação de homens casados e de mulheres, o protagonismo dos leigos, sobre a questão dos abusos sexuais dentro da Igreja. Enquanto houver essa vinculação de poder-ministério ordenado, será difícil, de fato, pensar numa Igreja sinodal.

Outro ponto essencial é o protagonismo dos pobres da terra. O documento cita várias vezes estas duas chagas de nosso tempo: o grito dos pobres e da criação. Em meu ponto de vista, na verdade, este deveria ser o eixo fundamental ao redor do qual todos deveríamos estar unidos. A vida tem pedido socorro nas chagas dos corpos de nossos irmãos descartados e na terra que sangra por conta de tantas violações de um sistema capitalista que tem se transformado numa engenharia criminosa. A Igreja necessita ser mais ágil com palavras e ações que apontem para um mundo novo.

Percebo também que um terceiro ponto que aparece é a necessidade de uma nova evangelização não colonial, o que implica ecumenismo, encontro inter-religioso, consciência de uma cultura global da amizade social e da fraternidade.

IHU – Que limites e potencialidades o documento indica na realização do objetivo de aprofundar a sinodalidade na Igreja?

Dom Vicente de Paula Ferreira – De modo geral, penso que discutir a sinodalidade, por si só, já nos faz esperançar muitas coisas. Ou seja, o caminho que está sendo feito revela o desejo, o sopro do Espírito que nos anima, encoraja a pelo menos colocar os pontos para o debate. Esse processo de fala e escuta é libertador.

Imagino também que o Instrumentum laboris reflete a contribuição de muitas pessoas, culturas, com suas linguagens, costumes e crenças. E mostra a força do magistério do Papa Francisco com sua profecia muito atual, principalmente os gritos pela conversão ecológica, por uma Igreja em saída, por uma sociedade global justa e fraterna.

Sobre os limites. Em pontos como a sexualidade, a hermenêutica de nossas doutrinas, os métodos de evangelização, ainda estão presos a uma visão ocidental, branca, heteronormativa e, portanto, colonial. Por exemplo, falamos muito em protagonismo dos pobres, dos negros, das mulheres, dos povos originários, mas onde mesmo eles estão ocupando um lugar concreto nas mesas de nossas decisões? E as pautas dos LGBTQIA+ que já não aceitam uma visão cristã da sexualidade humana, onde elas entrarão em nosso debate?

IHU – Deseja acrescentar algo?

Dom Vicente de Paula Ferreira – Tem me ocorrido uma imagem da Igreja como pedagoga da sociedade. Esse processo sinodal tem que ser pensado também como um caminho de defesa da democracia, do encontro dos povos na promoção da paz, da proteção global do meio ambiente. Mas isso não fará nossa voz chegar se não dermos o exemplo, se as coisas não mudarem a partir de nós. Como defender o planeta se algumas instâncias eclesiais continuam usufruindo de parcerias com megaestruturas econômicas que estão matando a vida nessa terra? No meu entendimento, dizer que os pobres são protagonistas do processo sinodal equivale a dizer que nossa Igreja precisa ser pobre com os pobres.

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