22 Junho 2023
As perguntas sobre a vida da Igreja Católica e sobre a sua relação com a sociedade são talvez a parte mais importante do Documento de Trabalho (Instrumentum laboris), orientador da assembleia do Sínodo dos Bispos em outubro próximo, e que esta terça-feira, 20, foi apresentado aos jornalistas, em Roma.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 20-06-2023.
É de fato, nessa parte final que, em torno das três prioridades que guiarão os trabalhos sinodais – a comunhão, a missão e a participação – mais se concretizam as preocupações, sonhos e propostas que saíram daquela que foi já considerada a maior auscultação alguma vez feita à escala global. Nesse sentido, o texto pode ser considerado um documento de toda a Igreja, como realçou o cardeal Grech, secretário-geral do Sínodo, na conferência de imprensa.
Essa auscultação foi realizada, numa primeira etapa, entre outubro de 2021 e agosto de 2022, no plano das dioceses, movimentos e institutos religiosos, e, numa segunda etapa, ao nível de assembleias continentais, formadas por delegações designadas pelos bispos. Das duas fases saíram sínteses que estiveram presentes na elaboração do Instrumentum laboris, um documento elaborado por um grupo de peritos, cuja constituição não foi divulgada, atitude que não prima pela sinodalidade.
O documento, de quase meia centena de páginas, estrutura-se em duas grandes seções. A primeira recorda o caminho feito desde 2021, em que se sublinha a surpresa e o sentido de novidade, manifestados pelos que nela participaram, ao viverem na prática a sinodalidade, ao tomarem consciência da “dignidade batismal comum de todos os cristãos” e, por essa razão, ao poderem expressar “o desejo de uma Igreja que também seja cada vez mais sinodal nas suas instituições, estruturas e procedimentos”.
Apresenta ainda as caraterísticas de uma Igreja que se quer sinodal, ou seja, que escuta, que é humilde, sabe pedir perdão e que tem muito a aprender; uma Igreja do encontro e do diálogo, que valoriza a diversidade, que é “aberta, acolhedora e abraça todos”, sem exceção.
Na segunda parte, é proposto um itinerário de afirmações e perguntas em torno das três prioridades (comunhão, missão e participação) que serão os eixos da assembleia de outubro, verdadeiros “desafios com os quais toda a Igreja se deve confrontar para dar um passo em frente e crescer no seu próprio ser sinodal a todos os níveis e a partir de uma pluralidade de perspetivas”.
Relativamente à comunhão, intimamente relacionada com a missão, põe-se a questão de saber se pode haver limites para a disposição dos cristãos e das comunidades de “acolher pessoas e grupos, como dialogar com culturas e religiões sem comprometer a nossa identidade e a nossa determinação de ser a voz daqueles que estão à margem e reafirmar que ninguém deve ser deixado para trás”.
Na linha de não deixar ninguém para trás, o documento é suficientemente enfático em colocar na primeira linha de preocupações (e de revisão do caminho sinodal feito até agora) da escuta, do encontro e do cuidado: os pobres, os migrantes, os portadores de deficiência, as vítimas de todo o tipo de abusos (morais, sexuais, de poder, económicos…). As perguntas são assertivas. Como esta:
“Ao longo do caminho sinodal, que esforços foram feitos para dar espaço à voz dos mais pobres e integrar a sua contribuição? Que experiência as nossas Igrejas adquiriram no apoio ao protagonismo dos pobres? O que é que precisamos de fazer para os envolver cada vez mais na nossa caminhada conjunta, deixando que a sua voz questione a nossa maneira de fazer as coisas quando esta não é suficientemente inclusiva?”
O documento, apoiado nas sínteses das etapas anteriores do Sínodo, não esquece outro tipo de excluídos e esquecidos e aponta numa pluralidade de direções, muito diferentes umas das outras: aqueles que não se sentem aceites na Igreja, como os divorciados e recasados, as pessoas em casamentos polígamos ou as pessoas LGBTQ+; os que se sentem vítimas de formas de discriminação racial, tribal, étnica, de classe ou de casta…
Também aqui, as perguntas são diretas. Um exemplo: “Como podemos criar espaços em que aqueles que se sentem feridos pela Igreja e não bem-vindos pela comunidade possam sentir-se reconhecidos, acolhidos, não julgados e livres para fazer perguntas? À luz da exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, que passos concretos são necessários para chegar às pessoas que se sentem excluídas da Igreja por causa da sua afetividade e sexualidade (por exemplo, divorciados recasados, pessoas em casamentos polígamos, pessoas LGBTQ+, etc.)?”.
O ecumenismo merece igualmente destaque, tal como acontecia em muitas sínteses nacionais e continentais. “O caminho ecumênico – diz o texto – é um intercâmbio de dons, e um dos dons que os católicos podem receber de outros cristãos é precisamente a sua experiência sinodal”, já que “a redescoberta da sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja é um fruto do diálogo ecuménico, sobretudo com os Ortodoxos”.
O ecumenismo não se manifesta, como muitas vezes se percebe, na capacidade de fazer as outras confissões aproximarem-se da Igreja Católica, mas do encontro, da oração e do trabalho entre elas. É na medida em que a Igreja Católica se reforma internamente, num processo em que “a sinodalidade desempenha um papel essencial”, que também a Igreja Católica se aproxima dos outros cristãos.
De novo uma pergunta: “Como pode o lema ecumênico do Papa Francisco «Caminhar – Rezar – Trabalhar juntos» inspirar um compromisso renovado com a unidade dos cristãos de uma forma sinodal? Como se pode promover a participação ativa de todo o Povo de Deus no movimento ecuménico? Em particular, qual pode ser o contributo da vida consagrada, dos casais e famílias interconfessionais, dos jovens, dos movimentos eclesiais e das comunidades ecuménicas?”
O tema do lugar das mulheres na Igreja recebe um destaque à altura da importância que teve nas fases anteriores do Sínodo. Surge como preocupação em vários pontos do documento, mas é sobretudo na secção B, ponto 2.3, que o Instrumentum Laboris pergunta em título: “Como pode a Igreja do nosso tempo cumprir melhor a sua missão através de um maior reconhecimento e promoção da dignidade batismal das mulheres?”
“As sínteses saudaram a fé, a participação e o testemunho de tantas mulheres em todo o mundo, leigas e consagradas, como evangelizadoras e, muitas vezes, primeiras formadoras na fé, notando especialmente a sua contribuição para a ‘margem profética’, em lugares remotos e contextos sociais problemáticos”.
Questões como a participação das mulheres, o seu reconhecimento, a relação de apoio mútuo entre homens e mulheres e a presença de mulheres em posições de responsabilidade e de governo “emergiram como elementos cruciais na procura de como viver a missão da Igreja de uma forma mais sinodal”.
Numa Igreja verdadeiramente sinodal, importa muito “a luta contra todas as formas de discriminação e exclusão de que são vítimas na comunidade eclesial e na sociedade”.
Quanto ao acesso das mulheres aos ministérios ordenados, o assunto é explicitamente tocado nesta pergunta: “A maior parte das assembleias continentais e as sínteses de numerosas conferências episcopais pedem que se volte a considerar a questão do acesso das mulheres ao Diaconado. Como se pode encarar esta questão?”.
Um outro tema a merecer atenção no documento agora publicado tem a ver com a formação. As sínteses nacionais e continentais enfatizaram que “as instituições e estruturas por si só não são suficientes para tornar a Igreja sinodal: são necessárias uma cultura e uma espiritualidade sinodais, animadas por um desejo de conversão e sustentadas por uma formação adequada”.
A necessidade de formação não pode ser apenas de conteúdos, antes deve ter um caráter “integral”, isto é, que diga respeito a “todas as capacidades e disposições da pessoa, inclusive a orientação para a missão, a capacidade de se relacionar e construir comunidades, a disponibilidade para a escuta espiritual e a familiaridade com o discernimento pessoal e comunitário, a paciência, a perseverança e a ‘parresia’”.
Além disso, considera o texto, essa formação deve ser permanente e envolvente de “todo o povo de Deus”. E “quanto mais alguém é chamado a servir a Igreja, mais deve sentir a urgência da formação: bispos, presbíteros, diáconos, consagradas e consagrados e todos aqueles que exercem um ministério precisam de formação para renovar os modos de exercer a autoridade e os processos de tomada de decisão em chave sinodal e para aprender a acompanhar o discernimento comunitário e a conversação no Espírito”.
Uma palavra especial é dirigida aos candidatos ao ministério ordenado, vulgo, seminaristas: “precisam de ser treinados num estilo e mentalidade sinodais”, adverte o documento. Sendo que “a promoção de uma cultura de sinodalidade implica a renovação do atual currículo dos seminários e a formação de formadores e professores de teologia, de modo que haja uma orientação mais clara e decisiva para a formação numa vida de comunhão, missão e participação. A formação para uma espiritualidade sinodal está no centro da renovação da Igreja”. Por outras palavras, é preciso reformar a reforma da Ratio Fundamentalis, o documento sobre a formação dos presbíteros que tem vindo a ser aprovado para cada país, incluindo Portugal.
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Sínodo dos Bispos desafiado a prosseguir com a reforma da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU