30 Junho 2023
“Precisamos nos organizar, ter empatia com aqueles que não pensam exatamente igual para sermos suficientes e provocarmos uma mudança. Mas, ao mesmo tempo, temos que assumir que vivemos na era da Grande Aceleração, e quando os desafios e os problemas se aceleram, a resposta política não pode ser a moderação, não pode ser a covardia, porque esse seria o verdadeiro e fatídico erro”, escreve Juan Bordera, ativista ambiental espanhol, em artigo publicado por El Salto, 27-06-2023. A tradução é do Cepat.
Há momentos na vida de uma pessoa ou do próprio mundo, em que parece que o tempo está acelerando. Em apenas dez dias, acontecem mudanças cujos efeitos durarão décadas, ou mesmo séculos. É nesses dias em que se sente que há mais para contar e que, no entanto, o tempo não é suficiente. Nem mesmo para compreender bem o que está acontecendo. Menos ainda para descrevê-lo. Marguerite Duras dizia que escrever é tentar saber o que escreveríamos, se escrevêssemos. Então, vamos ao menos tentar.
Eu poderia escrever sobre o robusto equilíbrio térmico que os oceanos nos proporcionam, essas maravilhas repletas de vida que armazenam mais de 90% do excesso de calor, e teria que contar como esse equilíbrio, essa antiga robustez, está se dissipando diante de nossos olhos, com uma velocidade incrível. Os recordes de temperatura na superfície dos oceanos estão sendo superados de um modo que a razão não consegue compreender. Os índices no Atlântico Norte parecem uma impossibilidade, um erro. Mas, não há erro no gráfico. O erro, como veremos, está em outro lugar.
Embora a anomalia seja mais assustadora nessa região, a média global também está praticamente descontrolada. E embora ambas vão parar em algum momento, o fato de ter ocorrido uma mudança tão exponencial é algo que precisa ser pesquisado, pois podemos estar diante da ruptura de algo muito perigoso. Uma junção de diferentes causas está interatuando ao mesmo tempo para que essas anomalias estejam ocorrendo de modo tão abrupto. É provável que ainda reste algum tempo para reagir, mas as melhores opções já estão evaporando.
Talvez eu pudesse continuar escrevendo sobre como as ondas de calor oceânicas - talvez as mais perigosas de todas -, com consequências irreversíveis para a vida marinha que literalmente sustenta o resto, estão proliferando nas costas de meio mundo: Irlanda, México, Equador, Japão, Mauritânia, Islândia e a lista, infelizmente, segue. Esses fenômenos – como quase todos os extremos – são cada vez mais frequentes e abruptos.
Eu também poderia escrever sobre como as anomalias do degelo e formação de gelo no Ártico, e especialmente na Antártida, estão deixando os cientistas atordoados, com uma expressão de terror e incompreensão em seus rostos.
O mapa termal que temos diante de nós apresenta uma situação muito mais próxima do terminal. E ninguém que compreenda bem o que está acontecendo pode entender por que se fala pouco a esse respeito nos grandes meios de comunicação. Dia sim, dia também. Com programas especiais, como os que alguns comunicadores dedicam a temas tão cruciais como a ocupação e os chemtrails.
Eu poderia escrever, e destacar, que os recordes de todos os tipos continuam sendo quebrados com uma naturalidade cada vez mais antinatural. Na Sibéria, 40 graus, no México, 50 graus. Incêndios históricos no Canadá, com seus consequentes cartões postais em um alaranjado e pós-apocalíptico Nova York. Recordes de chuvas no Japão. Mortes em massa de peixes no Texas.
Poderia continuar escrevendo sobre como o Governo francês lançou uma corajosa campanha midiática para preparar sua população para um cenário de aumento de 4 graus na temperatura em relação ao período pré-industrial: “Não podemos fugir da realidade”, disse o ministro do Meio Ambiente, Christophe Béchu.
Embora a contrapartida obscura da França seja muito sombria: no último dia 21 de junho, dia em que simbolicamente termina a primavera para dar lugar a um verão que será histórico, foi confirmado o decreto de dissolução de Les Soulèvements de la Terre (SLT), talvez o movimento organizado mais transformador do recente ambientalismo europeu.
E ao mesmo tempo, eu poderia escrever como, aqui, em um território com riscos mais óbvios, devido à desertificação e ao caos climático – coisas da latitude –, partidos que propõem colocar um vaso em cada varanda e que compactuam com negacionistas da ciência, dos direitos humanos e da realidade avassaladora obtêm maiorias absolutas.
Eu poderia talvez, para ir encerrando, escrever e apontar, sem a precisão que só o tempo nos dará, para as possíveis razões que esses eventos tão improváveis estejam coincidindo no tempo: o fenômeno El Niño – a oscilação entre águas mais quentes e frias (La Niña) no Pacífico – voltou, e como [!]. Algumas previsões bastante confiáveis deixam claro que, provavelmente, será um fenômeno muito forte, que se formou muito rápido e que, durante meses, continuará aquecendo os oceanos da Terra.
Contudo, é preciso acrescentar outras possíveis questões suspeitas que também estão gerando caos: a erupção de um vulcão submarino em Tonga, que liberou uma boa quantidade extra de vapor de água na atmosfera; a fragilidade de algumas correntes atmosféricas que, circunstancialmente, deixaram algumas áreas livres da poeira do Saara; bem como o impacto produzido por uma mudança substancial na legislação dos combustíveis dos navios, que agora são obrigados a circular provocando menos emissões de enxofre, o que aquece o planeta – e a superfície do oceano em particular – pela eliminação do efeito barreira provocado pelos aerossóis dessas emissões. Desmascara-se, assim, o aquecimento real que já provocamos.
Por fim, a cereja vem depois do bolo: podemos estar presenciando o início da interrupção de algumas correntes oceânicas imprescindíveis para o equilíbrio homeostático do planeta, e isso, sim, seria terrivelmente problemático. A Corrente do Golfo é a mais lenta em pelo menos 1.600 anos. E no sul, na Antártida, mais do mesmo, com reduções na velocidade da corrente ao redor de 30%, em apenas três décadas.
Compreendamos isso bem porque é crucial. A água do degelo das calotas é doce e fria e conforme aumenta a quantidade que entra em pontos concretos do circuito, as correntes desaceleram, vendo-se também afetadas por um aumento da temperatura oceânica geral. Sem negar que em algumas áreas, de modo pontual, aconteça o contrário, a tendência geral é a estagnação.
Com essa desaceleração da correia transportadora, o calor vai se acumulando na superfície oceânica, já que as águas não se “misturam” tanto como antes. No futuro, isso pode provocar efeitos difíceis de prever, por isso estão sendo realizados debates sobre o assunto e poucos se atrevem a se posicionar a respeito.
No fundo, o que está por trás disso tudo é algo muito fácil de compreender, chama-se aquecimento global, caos climático, emergência, chame como quiser. E a NASA certificou um detalhe que passou inadvertido para o grande público: o balanço radiativo dobrou em pouco mais de uma década.
Eu poderia escrever muito mais, e sobre coisas terrivelmente importantes, como a degradação que significa condenar à prisão cientistas como Mike Lynch-White - 27 meses por um protesto pacífico - e as grandes multas, como a que se aplicou ao professor Nikolaus Froitzheim. São valentes ativistas que protestam contra esta emergência planetária que – não duvidem – terá impacto na forma de fenômenos extremos, agravados neste ano mesmo. A questão não é mais se sim ou se não, a questão é onde cai a roleta que cada vez tem mais prêmios e mais gordos.
Talvez tenha chegado o momento de parar de escrever tanto e passar à ação. Nesta situação e diante da inércia da inação, precisamos mais do que de palavras. Precisamos nos organizar, ter empatia com aqueles que não pensam exatamente igual para sermos suficientes e provocarmos uma mudança. Mas, ao mesmo tempo, temos que assumir que vivemos na era da Grande Aceleração, e quando os desafios e os problemas se aceleram, a resposta política não pode ser a moderação, não pode ser a covardia, porque esse seria o verdadeiro e fatídico erro.
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El Niño e seu mar (em chamas) na era da Grande Aceleração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU