21 Dezembro 2022
“A única solução é livrar-nos o mais rápido possível desse tipo de fé cega na tecnologia que domina nossas sociedades. E rápido. Quanto maior a fé no poder de resolver problemas com as mesmas estruturas culturais com as quais os geramos, mais crescerá também a distância sisífica do chão”. A reflexão é de Juan Bordera e Antonio Turiel, em artigo publicado por Ctxt, 20-12-2022. A tradução é do Cepat.
Com certeza você já ouviu ou leu algo sobre a mais nova promessa tecnológica que vem para ser a salvação de todos os problemas: a fusão nuclear. Um marco histórico. Energia ilimitada ao alcance em poucos anos. Energia criada do nada (toma essa, termodinâmica!). Essas são apenas algumas das sutilezas com que se adorna na maioria dos meios de comunicação o grande avanço.
Mas realmente houve um avanço tão espetacular? Resposta curta: não. Houve uma progressão nos experimentos que vêm sendo realizados há algum tempo no National Ignition Facility (NIF) dos Estados Unidos. Pela primeira vez, foi possível que a energia produzida pela fusão nuclear de um pellet (material de energia renovável de biomassa) de deutério e trítio do tamanho de uma cabeça de alfinete seja maior do que a energia transportada pelos feixes de raios laser emitidos.
Eles dispararam 192 dispositivos laser em uníssono para comprimir o material e fundir os núcleos dos dois isótopos de hidrogênio. Concretamente, na pequena explosão nuclear foi produzida uma energia de 3 megajoules (MJ), enquanto os feixes de raios laser carregavam uma energia de 2,1 MJ. Um ganho de quase 50%. Um avanço que mostra que a fusão por confinamento inercial (é assim que esse método é chamado) pode funcionar, pois se a fusão gerar um ganho líquido, uma reação em cadeia poderia ser produzida em amostra de tamanho maior e atingir quantidades maiores de energia. Os dados fornecidos por este experimento permitirão melhorar nosso conhecimento sobre esse tipo de processo e, nesse sentido, é um marco importante para a ciência. Até aqui as boas notícias. Vamos agora para as más notícias.
A primeira objeção que pode ser feita é que a quantidade de energia gerada, 3 MJ, é suficiente para ferver a água de uma panela de 9 litros, e para isso foi necessário construir uma instalação do tamanho de um estádio de futebol. Além disso, os lasers ficam tão quentes que só podem disparar um tiro por dia, razão pela qual parece difícil realizar esse processo de forma continuada.
E o mais importante: não houve realmente um ganho líquido de energia. Para carregar os dispositivos laser, foram gastos 300 MJ, ou seja, 100 vezes mais do que foi produzido na minúscula reação de fusão. Um dispositivo laser é um aparelho muito ineficiente, e é completamente normal que se perca tanta energia nele: sacrifica-se o desempenho pela precisão, algo fundamental nesse tipo de experimento. Assim, não houve nenhum ganho de energia: houve, ao contrário, perda. Agora lembrem-se novamente das manchetes.
O design do experimento também não facilita a construção de um reator. Seria necessário algum material para absorver a energia produzida a fim de aproveitá-la, mas nada pode ser interposto entre o laser e seu alvo. Além disso, para produzir energia de maneira contínua, seria necessário acender pellets como este em uma taxa contínua. Neste caso, a reação durou 0,0004 segundos. Nesse ritmo, seria necessário usar 2.500 pellets por segundo, ou seja, 150.000 por minuto. Um verdadeiro pesadelo de fabricação e logística.
Você pode se perguntar por que esse desenho tem este formato, se não ajuda a construir um reator de fusão (ao contrário do ITER [International Thermonuclear Experimental Reactor, sediado na França], que terá seus problemas técnicos não resolvidos, mas pelo menos é um projeto de um verdadeiro reator). A razão é que o NIF estadunidense é um laboratório cujo objetivo é a experimentação para melhorar o projeto de bombas atômicas. A instalação não pretende criar algo parecido com um reator, mas emular uma bomba atômica de hidrogênio em pequena escala, a fim de obter informações para melhorar o design do atual arsenal nuclear dos EUA. E a única razão pela qual a “descoberta” foi feita neste momento é que tinha sido anunciado um possível corte orçamentário. O Governo terá agora muito mais dificuldade para cortar a dotação do NIF. Uma jogada política interna dos EUA.
Sabendo de tudo isto, o que não se compreende é o excessivo entusiasmo com que esta notícia foi recebida na Espanha – ao contrário do resto da Europa, onde se deu uma cobertura muito mais marginal e com melhores explicações técnicas do que se conseguiu e em que contexto. Além do papel ridículo que não poucos meios de comunicação fizeram, este caso ilustra algo muito significativo: a obstinação no discurso público – e, portanto, e mais perigoso, nos imaginários aceitáveis – em que a única solução admissível para todos os problemas que temos é a busca por uma nova fonte de energia ilimitada/milagre tecnomágico que nos permita não apenas fazer o mesmo que fazemos agora, mas muito mais ainda do mesmo. E essa é a questão realmente interessante aqui.
Perguntemo-nos conscientemente: o que aconteceria com outra série de problemas, como os limites dos recursos, a degradação dos solos, a crise da biodiversidade, se conseguíssemos produzir o santo graal da energia ilimitada? A resposta é óbvia: eles iriam piorar. O limite dos recursos energéticos é apenas um dos limites biofísicos que a vida nos impõe nesta rocha suspensa no meio do espaço frio.
Alguns anos atrás, Tom Murphy, um astrofísico da Universidade da Califórnia, se perguntou o que aconteceria se de repente encontrássemos uma fonte mágica de energia infinita. Supondo que mantivéssemos as taxas históricas de crescimento do consumo de energia, e levando em consideração que a energia, após o uso, não desaparece, mas é convertida em calor (Primeira Lei dessa obstinada Termodinâmica), à medida que o consumo de energia pelos humanos crescesse, o calor dissipado por nossas máquinas não seria mais insignificante como é agora, e em apenas 400 anos ferveríamos a água dos oceanos! A lógica do crescimento nos levaria a nos queimar com a tocha da energia infinita, se um deus malévolo nos oferecesse esse dom maldito.
Essas e muitas outras contradições só podem ser evitadas se reconhecermos que o crescimento perpétuo é impossível e prejudicial e a principal obsessão autodestrutiva da nossa civilização. A tecnologia deveria ser nossa aliada, mas não pode ser se precisarmos crescer de maneira imperativa, já que assim seriam criadas as condições para que se necessite correr sempre um pouco mais rápido para ficar no mesmo lugar: o efeito Rainha Vermelha. E esse efeito, inevitavelmente, esgota. Os recursos essenciais finitos e o tempo para reagir, no nosso caso.
Quando ainda não faltava energia, o que ocupava as discussões sobre a Física de Altas Energias era a descoberta do Bóson de Higgs. A partícula elementar que explica as propriedades da massa em nosso universo observável. A “partícula de Deus”, como era chamada. Tenho certeza de que você se lembrará dessa descoberta recente. Além das consequências do avanço, suas implicações culturais são novamente muito mais interessantes. Esse nome tem muito subtexto. Especificamente, da relação crucial que nossa sociedade estabeleceu entre tecnologia, magia e religião.
As grandes religiões tinham essa função de coesão, de gerar expectativas de um futuro melhor, inclusive na vida após a morte. Muito do espaço que a religião perdeu a esse respeito foi conquistado pelo pensamento tecnomágico. A verdadeira religião da nossa era. Aquela que torna os homens mais ricos do planeta magnatas do setor tecnológico, e suas fantasias autodestrutivas, o pesadelo de muitos.
Paradoxalmente, nessa corrida insana para tentar superar os limites biofísicos do planeta, o número de milagres tecnológicos dos quais dependeria o "crescimento sustentado" é a única coisa que não para de crescer: reciclagem de materiais até limites que desafiam a termodinâmica; grandes porcentagens de captura e sequestro de carbono, conforme se assume em todos os modelos climáticos, embora hoje seja um fiasco energético e um golpe econômico; hidrogênio de todas as cores – mas, sobretudo, que pareça verde – e sem assumir suas limitações; energia 100% renovável, como se fosse possível fazê-lo com o atual nível de consumo, quando as fontes de captação de energia renovável ainda não produzem nem 15%, e tudo isto apoiado no mantra que mais vamos ouvir: emissões líquidas zero. Transformando cada vez mais o crescimento perpétuo e o pensamento tecno-mágico em uma questão de fé muito perigosa. Como a que Dédalo tinha naquelas asas que assassinaram Ícaro, seu filho, por querer aproximar-se demais do sol.
A única solução é livrar-nos o mais rápido possível desse tipo de fé cega na tecnologia que domina nossas sociedades. E rápido. Quanto maior a fé no poder de resolver problemas com as mesmas estruturas culturais com as quais os geramos, mais crescerá também a distância sisífica do chão. Temos que entender que muitas dessas notícias que costumamos ler nos meios de comunicação têm mais de esperança do que de experiência, mais de fé do que de razão, mais de desespero do que de prumo.
Essa situação lembra o furor pela energia nuclear (de fissão) da década de 1950, quando tudo seria alimentado por pequenos reatores e quando se dizia que a eletricidade ficaria barata demais para ser cobrada. A fissão nuclear é essa energia que acabou nos levando – depois de Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl ou Fukushima – a este inverno, em que a França, a maior potência em termos de reatores nucleares, alertou sua população para os apagões rotativos principalmente porque boa parte das suas centrais nucleares está parada. Que surpresas nos reservará a abertura – se algum dia conseguirmos – desta nova tecnocaixa de Pandora?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fusão nuclear, Ícaro e o pensamento tecnomágico. Artigo de Juan Bordera e Antonio Turiel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU