23 Agosto 2016
O que você faz quando está competindo por um país que poderá desaparecer? Você dança.
Há muitas maneiras de comemorar uma vitória nos Jogos Olímpicos: pode-se fazer o gesto ao estilo Usain Bolt: um raio. Pode-se fazer várias coisas com os dedos, como Michael Phelps. É possível se vangloriar no Twitter. Mas ninguém dançou como fez David Katoatau no Rio de Janeiro semana passada. E o que é marcante nesta sua dança é que Katoatau não ganhou nada. O levantador de peso do país insular do Pacífico chamado Quiribáti terminou em sexto na final do Grupo B de até 105 kg masculino. Ele está dançando porque ele não tem certeza sobre o que mais poderá fazer neste momento para ajudar o seu país.
A reportagem é de Uri Friedman, publicada por The Atlantic, 17-08-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Katoatau têm dançado em competições de levantamento de peso já faz alguns anos. Na cidade do Rio de Janeiro, ele contou à Reuters o porquê deste seu gesto: “A maioria das pessoas não sabe onde fica Quiribáti. Eu quero que as pessoas saibam mais sobre nós, então uso o levantamento de peso e minha dança para mostrar ao mundo. Escrevi uma carta aberta ao mundo no ano passado para informar as pessoas sobre todas as casas perdidas com a elevação do nível do mar. Eu não sei quantos anos restam até que meu país afunde por completo”.
Na carta [1] que escreveu com a ajuda de seu treinador, Paul Coffa, Katoatau mostra o desespero decorrente da ameaça das mudanças climáticas à sua terra natal e a outras ilhas de baixa altitude do Pacífico. No texto, ele pede encarecidamente pelo apoio internacional para preservar Quiribáti:
Nunca me senti tão impotente em minha vida. Como esportista, tenho dado tudo pelo meu país, mas não tenho como salvá-lo. Em nome de todas as pessoas que irão morrer pelo país que não vai mais existir e pela cultura que irá, depois de muito tempo, ser perdida, estou pedindo a ajuda de vocês.
No ano passado, construí a única casa que pude me dar ao luxo – uma “tebuia: cabana tradicional – bem em frente à casa de meus pais. Poucos meses depois, ela fora destruída pelas ondas (…)
As escolas que tenho visitado em Quiribáti e as milhares de crianças com quem me encontrei aspiram algo grandioso. Como posso mentir para elas e dizer que os seus sonhos são possíveis, quando o nosso país está desaparecendo?
Imploro aos países do mundo para que vejam o que está acontecendo a Quiribáti. A verdade é que nós não possuímos os recursos para salvar a nós mesmos. Nós seremos os primeiros a ir.
No ano passado, Katoatau, que vive e treina na Nova Caledônia, no Pacífico Sul, disse que os jovens em Quiribáti “veem no levantamento de peso um jeito de sair do país”.
Nos próximos anos, muitos dos mais de 100 mil moradores do país poderão estar à procura de uma saída. Em 2014, Quiribáti comprou por 7 milhões de dólares terras nas ilhas Fiji, com o objetivo de assegurar um espaço agrícola tendo em vista garantir o acesso ao país à alimentação e um refúgio potencial caso as pessoas precisem fugir de Quiribáti em massa.
Antes de deixar o cargo em 2016, o ex-presidente Anote Tong incentivou o povo a considerar possibilidade de uma “migração com dignidade” para países vizinhos, como a Austrália e Nova Zelândia. No ano passado, em Quiribáti um homem perdeu uma batalha judicial de quatro anos na Nova Zelândia para se tornar no primeiro refugiado do mundo legalmente reconhecido em decorrência da mudança climática. O perigo não é necessariamente que Quiribáti irá literalmente desaparecer; os cientistas acreditam que seus atóis podem mudar de forma e se adaptar à elevação do nível do mar, em vez de ser engolido pelo oceano. O perigo é que, em 30 ou 60 ou 80 anos, Quiribáti se tornará ou inabitável ou proibitivamente caro para se habitar.
Em julho, o New York Times descreveu a situação difícil de Quiribáti em vívidos detalhes:
Grande parte de Kiribati, um conjunto de 33 atóis de coral e ilhas de recifes espalhadas por uma área do oceano Pacífico com aproximadamente duas vezes o tamanho do Alasca, fica a no máximo 1,80 m acima do nível do mar. Os últimos modelos climáticos preveem que os oceanos do mundo se elevarão até 1,50 ou 1,80 até 2100. As perspectivas de elevação do mar e intensificação das tempestades “ameaçam a própria existência e a vida de grandes segmentos da população”, disse o governo à ONU em um relatório no ano passado. A metade das 6.500 pessoas da aldeia de Bikenibeu, por exemplo, poderá ser inundada até 2050 pela elevação do mar e por tempestades, segundo um estudo do Banco Mundial.
O estudo delineia o futuro de Kiribati em detalhes apocalípticos. As estradas serão levadas pela enxurrada, paralisando a economia; os recifes de coral degradados pelo aquecimento da água permitirão que ondas mais fortes atinjam a costa, aumentando a erosão, perturbando o suprimento de alimentos, que depende muito dos peixes sustentados pelo recife. As temperaturas mais altas e as mudanças nas chuvas aumentariam a prevalência de doenças como dengue e intoxicação por ciguatera [peixes contaminados].
Mesmo antes disso, cientistas e especialistas em desenvolvimento dizem que a elevação do mar provavelmente agravará a erosão, criará escassez de água doce e aumentará a invasão de água salgada nos estoques de água doce.
É isso o que faz da dança de Katoatau algo tão comovente. Ele está dançando porque está competindo por um país que poderá não existir nos Jogos de 2048, da mesma forma como os países das delegações das ilhas Marshall e Tuvalu podem não existir. (A própria organização dos jogos olímpicos poderá se tornar mais desafiadora em um mundo em aquecimento.) Katoatau está de luto tanto quanto está celebrando.
É compreensível, portanto, que os organizadores da Cerimônia de Abertura no Rio dedicaram boa parte da programação para transmitir a urgência de se resolver a questão das mudanças no clima. Quando chegou a vez de Quiribáti entrar no desfile das nações, Katoatau liderou o caminho encantando os espectadores ao dar voltas com a bandeira do país.
“Não tem a ver com medalha de ouro, porque estes meninos não têm como ganhar uma medalha olímpica assim”, disse Coffa, técnico de Katoatau, ano passado em entrevista. “Para David Katoatau, só o fato de carregar a bandeira do país na cerimônia de abertura e de saber que o mundo a estava vendo já fez valer a pena. O importante é estar aí”.
Nota:
[1] A carta está disponível aqui em inglês.
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