01 Junho 2023
Deve-se a Ignacio Ramonet (Redondela, Pontevedra, 1943) muitas das ideias-força da esquerda, na mudança de milênio. A ATTAC, que buscava taxar as transações financeiras internacionais, nasceu de um editorial do Le Monde Diplomatique, jornal mensal que ele dirigiu entre 1990 e 2008 e que se tornou um dos mais respeitados órgãos críticos do neoliberalismo.
Nas mesmas páginas, corresponde a outro de seus artigos a popularização da expressão “pensamento único” para se referir ao cenário ideológico do pós-Guerra Fria, dominado, em sua avaliação, pelos interesses do capital financeiro internacional.
Autor de livros que alimentaram o movimento alterglobalização, como A tirania da comunicação (1999), Cómo nos venden la moto (juntamente com Noam Chomsky, 1995) e Propagandas silenciosas (2001), teórico da comunicação e professor emérito da Universidade Paris VII, Ramonet proferiu uma palestra organizada pela universidade sobre um mundo em crise, no último dia 25 de maio, em Santiago de Compostela.
“Estamos em uma policrise”, adverte, com a mudança climática como condição última. Não se vê um fim próximo para a guerra na Ucrânia “e isso mudou tudo”. A extrema-direita ascende alimentada pela destruição das classes médias. A manipulação da informação entrou em uma nova dimensão, devido aos avanços tecnológicos.
Contudo, embora o panorama que esboça seja sombrio, percebe esperança: “A humanidade está se organizando. Sempre há movimentos que, ao mesmo tempo, tentam explicar o que acontece e resistem”.
A entrevista é de Daniel Salgado, publicada por El Diario, 27-05-2023. A tradução é do Cepat.
Em sua conferência na Universidade de Santiago de Compostela, fez um diagnóstico de como está o mundo, a partir de duas crises interligadas: a provocada pelo coronavírus, iniciada em 2020, e a desencadeada pelo ataque russo à Ucrânia, em 2022. No entanto, a Europa ainda não tinha saído da anterior, a iniciada em 2008. A crise é constitutiva do capitalismo?
O mundo vai de crise em crise. Há uma concatenação. A crise de 2008, do subprime, prolongou-se e na Europa se traduziu no controle de vários estados pela União Europeia, entre eles, a Grécia, mas também Irlanda e Portugal. Não foi o caso da Espanha, mas esteve muito perto. Essa foi a crise final do neoliberalismo e da globalização.
As sociedades são incapazes de ir além por essa via. Contudo, como o capitalismo não tem outro modelo, segue essa tendência. É inércia. As teses do [economista francês Thomas] Piketty demonstram como o neoliberalismo produz desigualdade de forma estrutural. Com a covid e a Ucrânia, a globalização não é possível. O mundo deixou de ser um e voltou a se dividir em vários.
Quais são os sintomas que permitem afirmar que a globalização – ou o neoliberalismo, se é que são sinônimos – acabou?
O neoliberalismo não funciona mais. Por que não funciona? Essencialmente, porque a produção da desigualdade foi tamanha que as sociedades o rejeitam. O exemplo mais chamativo é o que aconteceu no Reino Unido, no outono. Boris Johnson, o primeiro-ministro, teve que renunciar por escândalos ligados ao coronavírus. Então, o Partido Conservador elegeu uma senhora chamada Liz Truss. Essa primeira-ministra apresentou um programa ultraneoliberal para sair da crise, com mais privatizações, mais reduções nos serviços públicos, uma brutal redução de impostos.
E o que aconteceu? O Banco da Inglaterra disse que esse plano era a ruína da Inglaterra. As empresas, a própria Bolsa de Valores de Londres, disseram que esse modelo não funcionava. Ou seja, os próprios atores fundamentais da globalização, do neoliberalismo, disseram: “Não, isso não funciona mais”.
Liz Truss durou seis semanas. E o atual primeiro-ministro (também conservador, Rishi Sunak) foi eleito com um programa mais moderado. O próprio sistema, o próprio capitalismo, não quer o neoliberalismo.
O bloco dominante tem um plano para depois do neoliberalismo?
Não o vejo. O que vemos é que esse modelo não funciona mais. A outra evidência é o excesso de desigualdades. Em que se traduz? No desaparecimento das classes médias. Estão desaparecendo. Nossos filhos, que foram para a universidade, coisa que nossos pais não puderam fazer, têm um nível de vida inferior ao de nossos pais.
Então, para que serve a universidade, ou que tipo de oportunidades são oferecidas aos jovens de hoje? Há um problema com a juventude, dizem. Não há um problema com a juventude, há um problema com o modelo econômico que destruiu os serviços públicos e provocou o empobrecimento das pessoas.
As sociedades não suportam mais. E o que isso implica em termos políticos? A classe média que desaparece e que se vê desesperada, está votando na extrema-direita em toda a Europa. Não vota na extrema-direita por paixão neofascista, mas porque nenhuma outra família política responde a esse desespero.
Há uma guinada política reacionária na Europa?
Sim, claro. A interpretação que se deu à crise não é de tipo social ou econômica, é de tipo identitária. Dizem às pessoas: “Não, seus filhos não têm trabalho, porque o trabalho fica com os imigrantes”. A dimensão identitária, racista, adquire uma grande importância, como nos Estados Unidos, com Trump.
O neoliberalismo destrói as classes médias, que entram em um tobogã rumo à pobreza e se desesperam ao verem o desclassamento de que são vítimas, e esse desclassamento, interpretado por alguns como rivalidade com os imigrantes, torna-se racismo. Daí o voto na extrema-direita, que está crescendo em todos os lugares.
O cenário político francês, onde a alternativa eleitoral à Presidência da República se reduz a escolher entre o neoliberalismo de Macron e a extrema-direita de Le Pen, pode ser estendido ao resto da Europa?
A França é um pouco especial. Em primeiro lugar, por causa do sistema eleitoral: os dois turnos tornam muito complicado se impor, a menos que você tenha uma forte maioria. É o que acontece agora. A Frente Nacional, que agora se chama Reagrupamento Nacional, pode levar tudo. Já é o primeiro partido na Assembleia Nacional.
Se, por exemplo, Macron tivesse dissolvido a Assembleia por ocasião da crise das pensões, teria sido a extrema-direita que sairia ganhando. Sobretudo, após tantas greves e violência, às quais os meios de comunicação deram muita importância. O que chamamos de maioria silenciosa poderia ter reagido votando na extrema-direita como proteção contra a desordem.
Então, não considera possível que a disputa eleitoral nos Estados europeus se sintetize entre opções semelhantes a Macron e Le Pen.
Não, não acredito. Além disso, a extrema-direita francesa não é neoliberal, é antineoliberal. São a favor da intervenção do Estado, nostálgicos de um Estado forte.
A esquerda política está à altura do momento histórico?
A esquerda carece de teoria. Houve muito pouca reflexão. Qual é o grande teórico da esquerda hoje? Varoufakis? Mas, até que ponto? Tirou a lição, segundo ele, do que aconteceu na Grécia, mas... Talvez Piketty seja o único economista que contribuiu com algo em termos de denúncia das desigualdades, de reflexão sobre a política fiscal: que impostos são necessários, como corrigir as desigualdades por meio de uma política fiscal.
No entanto, não há teoria. Enquanto isso, já passamos 20 ou 30 anos com a extrema-direita subindo. Não basta dizer que as massas se comportam mal. Não se comportam mal, as massas não se comportam mal, nem bem, não se trata de moral, comportam-se em função do que acreditam que lhes permitirá sobreviver como família, como categoria social e como grupo.
Não existe uma alternativa forte como foi o socialismo, em seu momento.
Eu não a vejo. O que podemos dizer é que precisamos que o Estado seja mais redistributivo, precisamos que o Estado, sobretudo depois da covid, tenha mais capacidade de ter serviços públicos, precisamos que o Estado seja capaz de reindustrializar nossos países porque as políticas neoliberais de terceirizar a produção foi um desastre, como se viu na covid. Finalmente, o modelo Biden, um modelo timidamente neokeynesiano, é o mais à esquerda que pode haver. E veja o que é.
Das duas crises que você menciona, a do coronavírus ficou para trás, mas a guerra na Ucrânia continua. Como acabará?
Não temos a bolinha de cristal, não é? Pode acabar muito mal, com o uso de uma arma nuclear, o que seria catastrófico para a humanidade. Mas, é muito difícil adivinhar o fim da guerra na Ucrânia. Enquanto Putin estiver na Rússia, parece muito difícil que o Governo russo devolva a Crimeia ou abandone suas pretensões sobre a Crimeia como parte estrutural da Rússia eterna.
O que é uma vitória ucraniana? Parar a invasão onde está? O discurso de Zelensky não vai nessa direção de modo algum, mas em recuperar todo o território anexado pela Rússia. Isso inclui Donbass e também a Crimeia. Quando alguns Estados dizem que é necessário se sentar à mesa para negociar, tudo bem, mas sobre quais bases? Um dos dois rivais terá que fazer concessões, é assim que as guerras terminam. Mas, no momento, os espíritos não estão nessa situação.
Por quê?
Fala-se de uma contraofensiva, de que a OTAN vai entregar F-16 para Zelensky. A Rússia continua com a sua intenção de recuperar todo o Donbass, porque considera que é um território estruturalmente russo e faz parte da pátria histórica, não sei como... Não se vislumbra bem como como essa guerra pode acabar. No momento, não há dúvida de que fraciona o mundo.
Em que sentido?
O mundo hoje está dividido em pelo menos três partes. Por isso, a globalização não pode mais funcionar da mesma maneira. E menos com as sanções. De um lado estão os Estados Unidos e seus aliados da OTAN, unidos contra a Rússia. Do outro, a Rússia e seus aliados – Belarus e alguns países da ex-União Soviética. E por outro, toda uma parte do Terceiro Mundo que não está nem com um e nem com o outro.
Liderados talvez pelo Brasil?
Claro. A posição do Brasil é muito construtiva por parte de Lula, embora sem resultados concretos. Contudo, confere um papel à China em termos de capacidade diplomática. Esse reencontro entre Irã e Arábia Saudita, que estavam separados e praticamente em guerra no cenário do Iêmen, foi possível graças a Pequim. Que papel Pequim desempenhará no pós-guerra na Ucrânia?
Não resta dúvida de que o mundo mudará. O Conselho de Segurança não funciona. Será necessário redefinir a Organização das Nações Unidas, não está funcionando neste momento. Muitos países estão se posicionando para o depois da guerra na Ucrânia. Será como o pós-Segunda Guerra Mundial, não com essa dimensão, mas para o nosso tempo, até certo ponto, sim.
Afinal, em todo caso, a globalização econômica não implicou uma globalização política.
Não, o mundo está realmente fraturado, em muitos aspectos.
Você se refere ao entrelaçamento de várias e diferentes crises, mas existe alguma que se sobrepõe às outras?
Há uma que concerne a todos nós, a mudança climática. É decisivo. Não é que se sobrepõe, mas para a mudança climática pouco importa a guerra na Ucrânia ou não, segue com a sua transformação. Cada um de nós pode constatar em seu nível: esteja onde estiver no planeta, está vendo coisas do ponto de vista climático que nunca viu antes, nem as pessoas mais velhas com a sua experiência de vida.
E há preocupações muito grandes em torno disso, por exemplo, com a água. O que acontecerá com a água doce? Há países que não terão água, o que provocará grandes migrações. Se a mudança climática provoca migrações na África do Norte, elas virão para a Europa.
Esse fenômeno se somará ao desaparecimento das classes médias e a como esse desaparecimento alimenta a ascensão da extrema-direita. O que está acontecendo com Vinicius, neste momento, mostra que o racismo é um assunto atual na Espanha. E não é por acaso que aconteça no futebol.
Os avanços tecnológicos, outra das questões que está no centro de sua reflexão, afetam a qualidade da informação? A manipulação midiática existia antes das redes sociais e da inteligência artificial...
Estruturalmente, não é nada novo, de fato. A comunicação no último século e meio avançou a golpe de inovações tecnológicas: o telégrafo, a rádio, a televisão, a internet e as redes sociais e a própria fotografia mudaram a história da informação... E outras tecnologias: a linotipia, a rotativa, o microfone, o alto-falante ... A comunicação está acostumada a se ver submetida a mudanças tecnológicas brutais, violentas. O problema é que com a Internet mudou de patamar.
Por quê?
Primeiro, a Internet permitiu realizar algo que por muito tempo parecia impossível: a democratização da informação. Nos anos 1970, o Relatório McBride – de Seán MacBride, prêmio Nobel da Paz irlandês – pedia para interromper um mundo em que cinco agências de notícias dominavam a informação e a maioria dos meios de comunicação reproduzia essas notícias.
Havia grupos multimídia que eram donos da imprensa, da rádio, da televisão. Isso acabou, porque agora com um telefone cada pessoa pode fazer sua informação e divulgá-la no Twitter, no Facebook ou no Instagram. A democratização na informação está aí. O problema foi resolvido? O problema não foi resolvido, evidentemente.
Surgiram outros problemas, talvez mais complexos.
A solução de um problema levanta novos problemas. Agora, a questão não é tanto a capacidade de produzir informação, mas, sim, que o uso das novas tecnologias se tornou tão sofisticado que já ninguém sabe muito bem do que estamos falando. Que certeza tenho de que a informação que recebo é uma informação verificada? Nenhuma. A inteligência artificial acrescenta uma dimensão a mais em termos de incerteza, mas isso já existia.
Por outro lado, em que medida toda essa informação em forma de quebra-cabeça que estou recebendo me permite ter uma visão de conjunto coerente e me dá uma explicação que serve para a minha vida cotidiana como cidadão [?]. É muito complicado. E a Internet, que surgiu como uma grande solução, gratuita e sem limites, hoje, é uma armadilha para muitas pessoas, que têm a ilusão de ter informação e não estão informadas.
Ou se informam com coisas que lhes interessam – o entretenimento, o esporte e, observe, não sinto nenhum desprezo por essas coisas – e recebem muita informação sobre isso, mas nada mais. O que confirma uma coisa que venho dizendo há muito tempo: a informação oculta a informação. Enquanto isso, ninguém tem uma ideia clara do que está acontecendo na Ucrânia. Bakhmut foi completamente tomada ou não? Ninguém sabe, nem mesmo o presidente dos Estados Unidos.
Uma coisa que se aprende com seus livros é que, com toda a tecnologia da informação, também surgiram novos modos de manipulação. Um debate clássico da teoria crítica é se o cerne do problema está na própria tecnologia ou em sua propriedade.
Claro. Hoje, são as redes. Quem possui as redes, e em que medida o proprietário das redes exerce a censura quando pode.
O panorama que esboça é sombrio. Não enxerga luzes no horizonte?
Sim, claro. A primeira, nossa capacidade de compreender. Todos e todas estamos preocupados em entender esse novo mundo. O que é recente, acaba de acontecer. A guerra na Ucrânia começou há um ano. Demorou muito tempo para entender como funcionava a Guerra Fria, como funcionava a descolonização...
Por outro lado, as sociedades estão cada vez mais atentas a esses perigos. A mudança climática é um perigo, mas ainda não destruiu o planeta, nem a humanidade. A humanidade está se organizando. Para cada uma dessas crises, temos não apenas alertas, mas movimentos ao mesmo tempo de resistência e de explicação. Isto é o que mais traz esperança.
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“O mundo está realmente fraturado em muitos aspectos”. Entrevista com Ignacio Ramonet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU