15 Mai 2023
Os esforços do papa no campo geopolítico são admiráveis, mas ficam em segundo plano em relação ao seu papel como pastor e governador da Igreja Católica Romana.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 13-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma Roma cinzenta e chuvosa estava sob um intenso esquema de segurança no sábado, quando o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, chegou à cidade para passar o dia. O governo italiano enviou cerca de 1.500 agentes de segurança, posicionou atiradores nos telhados e impôs uma zona de exclusão aérea para a visita do presidente, cujo país continua lutando contra as tropas da vizinha Rússia que invadiram a Ucrânia há mais de um ano.
Muitos jornalistas italianos e estrangeiros residentes em Roma deram a impressão de que o propósito singular da viagem de Zelensky era encontrar o Papa Francisco. Eles opinaram que se tratava de discutir um nebuloso plano de paz de bastidores no qual o papa de 86 anos disse recentemente que a Santa Sé está trabalhando. Um encontro com o bispo de Roma estava na agenda do presidente ucraniano, de fato, mas não foi o principal motivo de sua ida à Cidade Eterna. Nem mesmo de longe.
Na verdade, ele foi a Roma para se encontrar com o presidente e a primeira-ministra da Itália. Ele tinha um objetivo particular: obter mais ajuda para o esforço de guerra a Ucrânia, especialmente em armas – mísseis de longo alcance, para ser mais exato. De acordo com o Wall Street Journal, a Itália é o 6º maior exportador de armas militares do mundo, atrás da Alemanha, China, França, Rússia – é claro - e os Estados Unidos da América (o número 1).
Mas a população italiana está dividida sobre a assistência militar de seu país à Ucrânia. É por isso que Zelensky também garantiu uma entrevista de alto nível na televisão estatal italiana (Rai) no fim da visita de um dia, com a esperança de mudar a opinião pública.
Seu encontro com o papa também foi para tentar convencer o chefe da Igreja Católica Romana de que Vladimir Putin não é alguém em quem se possa confiar em uma mesa de negociações, certamente não enquanto o presidente russo não mover cada um de seus soldados e seus tanques para fora da Ucrânia. Mas Francisco falou sobre esse plano “secreto” para parar a guerra. É aparentemente tão secreto, de fato, que as autoridades dos países vizinhos em guerra disseram que não sabem de nada.
O papa, que tem falado quase diariamente sobre a paz na Ucrânia “maltratada” ou “martirizada”, merece a nossa admiração por sua disposição a “fazer o que for preciso” para ajudar a acabar com a guerra. Mas, como já foi dito várias vezes nesta coluna, não há nenhum papel para o bispo de Roma no mundo ortodoxo russo. Isso também inclui a Ucrânia, que, na verdade, é o berço histórico dessa Igreja Ortodoxa oriental, de sua tradição e de seu ethos religiosos. Embora o papa jesuíta tenha feito esforços incríveis (que alguns chamariam de embaraçosos) para criar relações melhores entre o Vaticano e o Patriarcado de Moscou (chefe da Igreja Ortodoxa Russa), os russos ainda não confiam nos romanos.
É claro, acreditamos que milagres podem acontecer. E é isso exatamente que é preciso para que haja algum papel para o papa ou para os diplomatas da Santa Sé para pôr fim ao derramamento de sangue nessa guerra interortodoxa.
Como bispo de Roma – sim, ele é acima de tudo um bispo –, o principal papel do papa é “ensinar, santificar e governar” as pessoas que fazem parte de sua Igreja. E, sendo ele o bispo ordinário da Sé de Pedro e Paulo, ele também exerce um primado distinto sobre as Igrejas locais em comunhão com Roma. Mas o “rebanho” do papa, por assim dizer, é minúsculo na Rússia – contando com apenas 348.000 católicos em uma nação predominantemente ortodoxa oriental de 104,9 milhões de pessoas.
A população católica é um pouco maior na Ucrânia, mas os que estão em comunhão com o papa ainda são uma minoria. Dos estimados 42,9 milhões de habitantes do país, cerca de 4,8 milhões são católicos. Mas nem todos são “romanos” ou latinos. De fato, a maioria deles são católicos gregos (ou bizantinos), que são semelhantes em quase todos os aspectos aos ortodoxos orientais, exceto pelo fato de estarem em comunhão e submetidos ao papa. Os católicos romanos, que vivem principalmente no oeste da Ucrânia e são descendentes de poloneses, não chegam nem a 1% da população do país. Os católicos gregos representam apenas 8%.
A questão aqui, como os russos costumam apontar, é que essa parte do mundo não faz parte historicamente do território do bispo de Roma, nem espiritual nem juridicamente. Obviamente, a época ecumênica em que vivemos atualmente exige que as diferentes comunidades cristãs (e também as outras tradições religiosas) se esforcem para trabalhar juntas pela paz, pela harmonia e pelo bem comum em todas as partes do mundo. O Patriarca Kirill de Moscou é o interlocutor do papa sobre esse assunto. Mas eles meio que não estão se falando agora... Eles também têm opiniões opostas sobre a legitimidade da invasão de Putin.
O que está ocorrendo aqui, porém, não tem a ver com o fato de Francisco estar cumprindo seu papel como bispo ou mesmo como líder espiritual da maior e mais rica Igreja cristã do mundo. Embora ele prefira se posicionar como uma espécie de “pastor” global, neste caso ele está realmente usando suas prerrogativas de monarca, um papel que o papado romano acumulou ao longo de sua longa história.
O bispo de Roma é também o soberano do Estado da Cidade do Vaticano. Como monarca (ou ditador, se você preferir), ele “goza na Igreja de poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal” [Código de Direito Canônico, n. 331] e também sobre o remanescente (do tamanho de um selo postal) dos Estados Papais que é o Vaticano, sede territorial da Santa Sé e fiador da liberdade da Igreja Católica.
Se você não acredita nisso, considere o seguinte: Francisco emitiu no sábado uma versão atualizada da “lei fundamental” (isto é, a constituição) do Estado da Cidade do Vaticano, assim como da bandeira, do brasão e do selo oficial desse pequeno país. E, em todos os três, a tiara papal (tríplice coroa) está em grande destaque, apesar do fato de os dois últimos papas terem substituído a tiara por uma mitra de bispo em seu próprio brasão. Os bispos normalmente não gozam dos direitos e dos privilégios de reis ou chefes de Estado, como o bispo-soberano da Cidade do Vaticano. E Francisco quer garantir que ele e seus sucessores continuem desfrutando desse papel.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que o papa está absolutamente justificado em usar seu status reconhecido internacionalmente como um Estado soberano para engajar outros líderes mundiais em prol do bem da humanidade. Mas aqui está a questão – sua influência está diminuindo.
Mas isso não é culpa dele ou de seu pontificado. Esse é o estado do papado romano hoje. O mundo em que ele já desempenhou um papel diplomático e político significativo entrou em colapso ou simplesmente desapareceu. A velha Europa, feita de monarquias como a do papa, não existe mais. O papado desfrutava de poder geopolítico quando o mundo era eurocêntrico. Isso praticamente acabou agora.
Se você quer mais provas, pense na incapacidade de Francisco – um papa latino-americano – e de seus principais diplomatas papais de ajudarem a negociar soluções pacíficas para conflitos (que afetam diretamente os católicos locais!) em lugares como a Nicarágua e a Venezuela. O núncio papal foi até expulso de Manágua, e um bispo local foi jogado na prisão, enquanto pelo menos outro bispo foi forçado ao exílio.
Seria maravilhoso se o papa pudesse pôr fim à terrível guerra na Ucrânia, mas, a menos que ocorra um milagre, isso provavelmente não ocorrerá. A melhor coisa que ele pode fazer é continuar “ensinando, santificando e governando” seu povo nos caminhos da paz e da comunhão de Cristo, como ele faz tão bem.
Francisco, bispo e servo dos servos de Deus – como Paulo VI assinava os documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965) – trouxe muita luz ao nosso mundo muitas vezes sombrio e violento. Mas ele é apenas seu servo, não seu salvador.
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Francisco, acima de tudo, bispo e servo dos Servos de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU