04 Mai 2023
"A guerra que está crescendo no mundo. A postura belicosa deste governo. A política da Itália está deslizando cada vez mais do pacifismo tradicional de nosso país para uma subserviência às posições mais extremas e belicosas de alguns de nossos aliados. Acho que alguns grandes países estão atiçando as chamas e nos empurrando para a Terceira guerra mundial".
A entrevista com Carlo Rovelli, físico e cosmologista italiano, que atuou na Itália e nos Estados Unidos, e atualmente trabalha na Universidade de Aix-Marselha, sendo conhecido por sua interpretação relacional da mecânica quântica, é de Marco Imarisio, publicada por Corriere della Sera, 03-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Carlos Rovelli tem vários livros traduzidos para o português. Citamos 'Sete breves lições de física. A realidade não é o que aparece' (Objetiva, 2014) 'O abismo vertiginoso. Um mergulho nas ideias e nos efeitos da física quântica' (Objetiva, 2021).
Professor Rovelli, você é pró-russo?
Detesto a política do governo russo e de Putin. Acho que é uma das piores do mundo. É o oposto dos meus valores políticos. Não sou pró-Rússia.
Qual é a sua opinião sobre a invasão da Ucrânia?
Condeno a Rússia com toda a convicção possível. Invadir um país, bombardear cidades, matar soldados e civis é um crime hediondo. Acho que todas as pessoas honestas deveriam condenar sem qualquer ambiguidade. A invasão criou uma dor inimaginável, isso é imperdoável.
Então, por que discorda daqueles que criticam a invasão de um país por uma autocracia?
Porque a guerra, os bombardeios e os massacres são um mal independentemente do sistema político do país que desencadeia a guerra. Condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia dizendo que o problema é que uma autocracia invadiu uma democracia é equivalente a dizer que, ao contrário, se for um estado democrático que invade, bombardeia e mata, então está tudo bem.
E, efetivamente, muitos que condenam a invasão da Ucrânia concordaram com as invasões do Afeganistão, do Iraque, e todas as muitas outras em que participamos. Esta é a hipocrisia que eu tentei denunciar: a ideia de que nos consideramos no direito de matar e depois nos escandalizamos se quem faz isso for um sistema político do qual não gostamos.
Por que você sempre dá a impressão de colocar no mesmo plano a Rússia e as democracias ocidentais?
Obviamente não estão no mesmo plano. Talvez seja porque eu reajo ao extremo oposto: a santificação do Ocidente e a ideia de que todo o resto do mundo deva ser controlado sob o domínio de um só país. O Ocidente é minha pátria e eu a amo. Mas quero viver em paz com o resto do mundo, não detestar o resto do mundo, como muitos agora pressionam a fazer.
Você não percebe que assim está usando o principal instrumento da propaganda russa?
Os belicistas desde sempre acusam aqueles que aconselham cautela de estarem ‘do lado do inimigo’. E a lógica ‘ou de um lado ou do outro’. É a lógica que conduz à guerra, em vez da paz.
Supondo que ele realmente queira fazê-lo, por que se deveria tratar com Vladimir Putin?
Porque se trata com os inimigos, não com os amigos, é claro. O problema não é qual sistema político nos agrada ou não. O problema é parar uma carnificina em curso. Encontrar uma maneira de conviver neste planeta sem nos massacrarmos. Lutar com as ideias, com o exemplo, não com as bombas.
Mas na prática é preciso um limite mínimo. Qual poderia ser na sua opinião?
Por exemplo, um cessar-fogo imediato. E um verdadeiro referendo nas áreas em disputa, estritamente controlado pelas Nações Unidas. Isso, aliás, tinha sido assinado tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia nos acordos de Minsk, aprovados pela resolução 2202 da ONU. Mais ou menos, é isso que sugerem o Papa, os brasileiros, os chineses, os indianos. Em suma, a maior parte do mundo, a parte razoável do mundo.
Exceto o Santo Padre, não lhe sugere nada o fato de você ter citado três dos principais países que não condenaram a invasão da Ucrânia?
Esses países são metade dos habitantes e da economia do mundo. Podem se encontrar muitos compromissos. E há pessoas capazes de encontrá-los, se houver vontade política. Em vez disso os belicistas que obtêm vantagem econômica ou política com a continuação da guerra querem vencer tudo até o fim, continuar a guerra, humilhar o inimigo. Eu não estou inventando isso: é o que eles dizem.
Na minha opinião, isso é errado, tanto do ponto de vista moral, porque gera mais dor, quanto do ponto de vista racional. Porque buscar a vitória total é ir ao encontro da Terceira guerra mundial. Não sou só eu que afirmo isso, parece-me. Emmanuel Macron também disse algo semelhante, por exemplo.
Existe um caminho possível entre o pacifismo e a rendição para a Rússia?
As guerras duram muito tempo porque ninguém quer se 'render'. É a lógica do gorila. Vamos sentar em torno da uma mesa e buscar um ponto de equilíbrio sem nos matar.
É você que vai dizer isso a Putin?
Existem pessoas razoáveis na comunidade internacional que sabem como fazer e não desanimam na frente de um muro. A história também é feita por essas pessoas. Até estadunidenses e russos conseguiram no momento mais duro da guerra fria e do confronto capitalismo-comunismo.
Você ainda acha que era preciso "normalizar" o Isis e tratar com seus líderes, como disse alguns anos atrás?
Penso que se nós, e falo nós porque também a Itália participou, não tivéssemos invadido o Iraque por razões ainda mais fúteis do que aquelas pelas quais a Rússia invadiu a Ucrânia, não teríamos desencadeado o inferno que essa área se tornou agora, onde as pessoas ainda morrem pela guerra. E toda vez se mata mais alguém, pensando que matando se consertam as coisas.
Nada está resolvido naquela parte do mundo, ainda se morre por causa da guerra. E ainda existem bases estrangeiras de todos os tipos. Não acredito que existam ‘monstros’: é possível falar com todos os seres humanos. A Itália de Andreotti e Craxi fazia isso, sem medo de irritar.
Não será que por trás das suas opiniões se esconde sempre o eterno antiamericanismo?
Morei nos Estados Unidos por dez anos e assumi nacionalidade estadunidense. Apreciei muitas coisas dos EUA. Mas censuro os Estados Unidos pelas muitas guerras: eles estiveram praticamente sempre em guerra nos últimos setenta anos, ser nunca terem sido realmente atacados por um País estrangeiro.
Acima de tudo, os critico por aquelas, como o Iraque, que demoliram a belíssima ideia de respeito pela legalidade internacional. Mas o passado é o passado, não importa. O que temo agora é que os EUA busquem o confronto com a China, temendo que mais tarde esta última cresça demais para poder vencê-la militarmente.
Você estava ciente da possibilidade de que sua manifestação no primeiro de maio levantasse um alvoroço?
Eu disse o que pensava. Muitos apreciaram. Alguns não. É normal em um país democrático.
É possível que a culpa seja sempre das pessoas que não entendem?
Não há nenhuma culpa. Prefiro pensar que possa haver um debate civil saudável sobre o que fazer. Acho que a maioria dos italianos não quer ser envolvida em novas guerras e novas provocações. O que os nossos porta-aviões estão indo fazer no Mar da China, senão provocar? Não somos os donos do mundo, temos que conviver com o mundo. Eu não vi muitos porta-aviões chineses na frente de Chioggia.
A imprensa italiana publicou que essa missão também tem o objetivo de mostrar aos vários países os produtos militares italianos que poderiam ser comprados: parece-me escandaloso que a nossa Defesa, comandada por uma pessoa tão próxima às indústrias bélicas, se disponha a servir de vendedor de armas em vez de tratar da defesa da Itália da guerra.
Esperava o “esclarecimento” da apresentadora do Concerto de Primeiro de Maio?
Sim. Imagino que os organizadores tenham ficado com medo de serem repreendidos pelo governo.
Você aceitará o convite do ministro Crosetto para jantar?
Apreciei a cortesia e a elegância com que o ministro respondeu às minhas críticas. Mas não se trata de uma questão entre mim e ele. Trata-se de um problema político que eu gostaria que o país discutisse, não ele e eu durante o jantar. Fora isso, é claro que será um prazer para mim encontrá-lo, se assim desejar.
Qual é o problema político?
A guerra que está crescendo no mundo. A postura belicosa deste governo. A política da Itália está deslizando cada vez mais do pacifismo tradicional de nosso país para uma subserviência às posições mais extremas e belicosas de alguns de nossos aliados. Acho que alguns grandes países estão atiçando as chamas e nos empurrando para a Terceira guerra mundial. Por miopia, queremos nos juntar a eles. Para “sentar à mesa dos vencedores”, que foi a motivação da Itália para entrar na Segunda guerra mundial, com o conhecido desastre que resultou.
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Guerra na Ucrânia. “Buscar a vitória total é ir ao encontro da Terceira guerra mundial”. Entrevista com Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU