05 Abril 2023
Aos 101 anos, Edgar Morin acaba de publicar um grande livro, que pode ser lido em poucas horas, de uma só vez, sem obstáculos lógicos ou semânticos. Ele se intitula “Di guerra in guerra” (Ed. Raffaello Cortina).
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 31-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode-se dizer que é um livro contra a nova pandemia: esse trágico contágio que nos torna todos vítimas de uma histeria extremista. Ele fala de “radicalização”, enquanto o Papa Francisco escolhe o vocábulo “polarização”: é a mesma doença alimentada pela guerra, o grande mal que vê apenas o bem e o mal, sem nada no meio.
“De guerra em guerra”, em tradução livre, novo livro de Edgar Morin
(Foto: Divulgação)
Escrever um livro desse tipo – seco e duro como uma pedra – não era fácil e só podia partir da Segunda Guerra Mundial, o exemplo mais forte do “bem absoluto”, pelo menos segundo a nossa tradição historiográfica. Pois bem, Morin nos recorda imediatamente que, se o primeiro bombardeamento aéreo na Europa, para aterrorizar as populações civis, foi o alemão que aniquilou Rotterdam em maio de 1940, depois veio o de Pforzheim, arrasada ao chão por 367 bombardeiros da Royal Air Force: 17.000 civis mortos, ou seja, um terço da população, apenas três meses antes da capitulação de um país já vencido. Morin nos conta que só ficou sabendo depois de Dresden – cidade desmilitarizada – onde 1.300 bombardeiros descarregaram 2.400 toneladas de bombas incendiárias, causando mais de 300.000 mortos.
Obviamente, o objetivo de Morin não é questionar a escolha certa de combater radicalmente o nazismo, mas sim recuperar a consciência da barbárie, mesmo quando esta se dirige contra a barbárie.
Tendo chegado a mais de 100 anos de vida e igualmente de recordações pessoais, ainda bem vivas, Edgar Morin pretendeu com este livro abrir os olhos de seus contemporâneos, para lhes permitir ver o que até hoje os impediu de ver verdadeiramente certos fatos e certas coisas. Aliás, cada um tem seus “tapa-olhos”: com grande senso crítico e autocrítico, Morin não deixa de mostrar a todos também aqueles que ele já vestiu.
O trabalho de despolarização é fundamental. Ele o desenvolve repassando todas as guerras que acompanharam sua vida, durante um século. Ele está tão convencido da importância desse trabalho que nos lembra, algumas páginas após o início fulgurante, que, quando foi introduzida a noção de “crimes de guerra” após a Segunda Guerra Mundial, ele os distinguiu em crimes ocasionais – cometidos por indivíduos ou grupos sem instruções –, estruturais – cometidos por indivíduos ou grupos por ordem dos superiores – e sistêmicos – aqueles pertencentes à estratégia bélica governamental.
Os crimes sistêmicos mais graves foram os cometidos contra judeus, ciganos e populações civis feitas reféns pelos nazistas. “Mas não se pode deixar de pensar que os bombardeios massivos de cidades alemãs e de sua população civil fora de objetivos militares específicos constituem crimes de guerra sistêmicos retrospectivamente”.
Dito isso, ele pode afirmar que o nazismo foi criminoso por natureza e denunciar “sua natureza racista e despótica”: o que não se pode dizer das democracias aliadas; embora se possa e se deva dizer que estas, “durante suas conquistas coloniais e nas repressões contra os colonizados, cometeram aquilo que, a posteriori, é preciso definir como crimes de guerra”.
Morin não esquece nem a contribuição soviética para a derrota do nazismo nem os gulags stalinistas, concordando com Vasily Grossman para quem Stalingrado foi “a maior vitória e a maior derrota da humanidade”.
Assim, ele afirma em primeira pessoa: “Travamos uma guerra contra um sistema ignóbil, mas eu estive entre aqueles que acreditavam que os crimes stalinistas pertenciam ao passado e que a URSS estava caminhando para um futuro radiante. Nós, fervorosos com as vitórias da URSS, esquecemos tudo o que significou o pacto germano-soviético de 1939, que gerou o desmembramento da Polônia e a entrega a Hitler por parte de Stalin dos comunistas alemães que haviam encontrado refúgio na URSS. Foi preciso que décadas se passassem para que ficasse claro que, por mais justa que tenha sido a resistência ao nazismo, a guerra do Bem envolve em si mesma o Mal”.
“A propaganda de guerra sempre envolve mentiras”, continua Morin, e isso, na minha opinião, deveria nos abrir os olhos não só para a guerra em si, mas também para todos os epifenômenos produzidos pela histeria da guerra, ou seja, pela radicalização ou polarização, como se quiser.
Com grande mérito, Morin nos lembra de que foi preciso Gorbachev para reconhecer que o massacre de Katyn’ – 20.000 poloneses massacrados – foi ordenado por Stalin, não pelos nazistas.
Ele lembra que ele mesmo organizou uma exposição sobre os crimes hitlerianos, em 1944, com um volumoso dossiê preparado pela embaixada soviética, que relatava os depoimentos dos camponeses locais que confirmavam – em benefício da propaganda soviética – a responsabilidade nazista: somente em 1956 alguns de seus amigos poloneses disseram a ele que não era bem assim; e ele, hoje, corajosamente, põe isso por escrito.
Essa emocionante primeira parte do volume me mostrou o vírus mortal da guerra: como a histeria bélica se transfere, de modo contagioso, para outros campos do debate, arrasando cada folha de grama debaixo dos pés de quem tenta se manter em um nível racional de leitura da realidade e, portanto, de relação entre partes adversas. O clima bélico envenena com a propaganda o debate e facilita o trabalho dos extremismos opostos, em todos os campos.
Morin mantém sua leitura rigorosa dos fatos bélicos, mergulhando nas guerras que mais o tocaram: da Argélia aos Bálcãs, passando pelo conflito na Ucrânia. Ele reconhece cada pedacinho da histeria.
Fatalmente, a meu ver, ele também às vezes cede a leituras enviesadas, por não ter visto toda a complexidade dos casos, a partir de dentro: no que diz respeito ao combate ao terrorismo internacional islamista, por exemplo. Mas seu olhar é sempre nobre: nunca vê em preto e branco, sem as cores e as nuances de cor. Isso é o que importa.
Emerge disso uma passagem escrita por um pacifista. Acho que é muito importante para o pacifismo contemporâneo transcrevê-la sobre a guerra em curso na Ucrânia: “A própria ideia de paz é condenada pela mídia ocidental como ‘putiniana’ assim como a capitulação de Munique. Ora, não é possível haver capitulação exceto com um exército irremediavelmente vencido, como ocorreu com o exército francês em 1871 e em 1940. Mas, no que concerne à guerra atual, resta um relativo equilíbrio de forças, que cria as condições objetivas para um compromisso”.
Portanto, Morin é um pacifista à maneira de Habermas: armar a Ucrânia é indispensável para a paz e deve ser feito, não na perspectiva de sabe-se lá qual “vitória”, mas sim de uma “não capitulação”, porque a capitulação impediria na raiz todo compromisso e, portanto, toda negociação.
Para chegar a esse ponto difícil, é necessário renunciar – por todas as partes – às intenções imperialistas e às propagandas ideológicas que acreditam na paz apenas mediante a opressão militar ou, inversamente, apenas com a renúncia unilateral à defesa do país agredido.
Recuperar uma visão elevada, honesta e corajosa da realidade é o grande mérito desse livro. É com a honestidade mais profunda que, em momentos como este, todos somos chamados, como gênero humano.
Quanto à ideia de negociar também com Putin, ele observa com razão: “Seu despotismo cruel herdado dos despotismos anteriores é suficiente para estigmatizá-lo. É impossível negociar com um déspota? O Ocidente negociou com Stalin e Mao, negociou com Xi Jinping”. Não é verdade, talvez?
A obra continua com propostas práticas de possíveis campos de discussão diplomática. O ponto alto é este: “Essa guerra provoca uma crise considerável que agrava e agravará todas as enormes crises do século sofridas pela humanidade, como a crise ecológica, a crise econômica, a crise das civilizações, a crise do pensamento. Em 2017, havia 80 milhões de seres humanos à beira da fome. Depois da pandemia, 276 milhões. Atualmente, 345 milhões”.
Nessas situações, olhar apenas com um olho – qualquer um dos dois – é um erro histórico: imperdoável!
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De guerra em guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU