08 Março 2023
O neuropsiquiatra Boris Cyrulnik (Bordeaux, França) está a caminho de completar 86 anos, com olhos nas mudanças que marcam a era atual. O pensador francês, psicanalista experiente e formado durante o nazismo, passou por Valladolid [Espanha] para a celebração do II Fórum da Cultura na cidade, que contou com vários protagonistas para refletir sobre o estado das sociedades.
Cyrulnik atendeu o El País, no teatro Calderón, pouco depois de sua palestra. Ele demonstrou surpresa por vivenciar uma nova guerra na Europa, embora acreditasse que esse horror jamais se repetiria, e alertou sobre o ódio e os totalitarismos.
O intelectual se expressa com calma, pitadas de humor e pessimismo em relação a um futuro que considera complicado e com desafios inéditos.
A entrevista é de Juan Navarro, publicada por El País, 05-03-2023. A tradução é do Cepat.
As entrevistas servem para explicar algo tão complexo como a neurociência, o cérebro e as sociedades?
Vocês, jornalistas, são os intermediários. Se conversássemos apenas entre nós, a mensagem ficaria em um círculo fechado. Como dizem os italianos: “tradução é igual a traição”. Os jornalistas muitas vezes melhoram as entrevistas, transformam e melhoram muito o discurso.
Senti-me traído quando no furacão Katrina de Nova Orleans (que ocorreu nos Estados Unidos e causou centenas de mortes em 2005) não se informou que morreram muitos mais negros do que brancos, porque os negros eram pobres e viviam muito mais perto do rio Mississippi, que subiu muito as águas. Não disseram que os brancos eram mais ricos e viviam no alto da cidade.
Devemos nos sentir culpados por, às vezes, não entendermos a nós mesmos? Quando foi a primeira vez que não se entendeu?
Nós nos compreendemos pouco, muito pouquinho. Muitas decisões nos surpreendem porque não sabemos por que as tomamos. A decisão mais neurótica do ser humano é a do ofício, do trabalho, e a do cônjuge. Nós nos perguntamos o porquê o resto da vida.
Há muitos anos, tive um paciente, um jovem militar que teve o nariz quebrado por seus colegas de sala [gesticula e o aponta enquanto explica a história]. Tratou-o em seguida e voltou ao Exército, ao serviço militar. Se não tivesse feito o tratamento, teria ganho um ano de sua vida e meditei se tinha feito a coisa certa.
Dois anos atrás, eu estaria fazendo esta entrevista com uma máscara. Três anos atrás, por telefone. Quase nem lembramos da pandemia. Temos tanta capacidade de adaptação?
Nós nos adaptamos surpreendentemente fácil, as pessoas mais velhas se adaptam à morte iminente. A adaptação não tem por que ser um sinal de saúde, mas uma forma de patologia.
Um preso que está na cadeia, isolado, dá voltas e voltas na cela, fala sozinho porque ouve vozes ou tem alucinações. Em sua cabeça, ouve vozes, adapta-se ao espaço e tem alucinações auditivas porque se sente menos sozinho. É a patologia que lhe permite se adaptar.
Até que ponto as pessoas podem fugir da dor?
A dor tem uma parte neurológica e outra cerebral, depende da relação em que se encontra. Se estamos em um ambiente seguro, a dor será menos forte, mas se é inseguro, será mais intensa e chegará ao nosso cérebro. Quando a estimulação cerebral é muito forte, você consegue diminuir a estimulação física.
Quando uma mulher dá à luz, caso peça para que avalie a sua dor de zero a dez, exatamente após o parto, dirá sete. Se pedir quando ela já estiver com sua família, cercada pelo seu entorno, estando em um ambiente seguro, dirá três ou quatro. Essa capacidade pode ser treinada.
Em minha região, há soldados e são treinados com a dor. São superestimulados e tudo isso repercute em sua dor física e são preparados para que sintam menos dor.
Conhece algo mais complexo do que o cérebro humano?
Outro cérebro [sorri]. Mais complexo do que um cérebro são dois cérebros. É uma questão muito interessante, um cérebro é um e precisa de outro cérebro para se estimular, caso contrário, não serve para nada.
As sanguessugas têm 20.000 neurônios, o que não é nada. Nós temos milhares e milhares de neurônios. Um pássaro não tem muito córtex, um camundongo um pouco mais. Em um cachorro ou um gato há um lobo pré-frontal, em um macaco, 25% de lobo pré-frontal e em uma pessoa, 30% mais a palavra. 100% seriam vários cérebros, aí está o poder da palavra.
O que sente ao ver novamente uma guerra na Europa?
Uma grande tristeza. Eu estava convencido de que jamais aconteceria. Vivi a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Argélia e pensei que tínhamos compreendido. Os esforços sociais e de comunicação não serviram para nada. É uma enorme tristeza.
Quando vi que Putin invadia a Ucrânia, senti estupor, quando vejo os cadáveres, recordo minha época da guerra, com fardos de palha nos caminhos que me recordavam quando, na França, tentávamos cruzar as fronteiras. Foi um retorno à angústia.
É hipócrita se escandalizar com a guerra na Ucrânia e não tanto com as do Iêmen e da Síria?
Você tem razão, é uma pergunta cínica, mas real. É a empatia. Se algo acontece com as pessoas próximas a mim, isso me comove porque me toca. Caso nos digam agora que, durante esta entrevista, 10.000 chineses morreram, não nos provoca nada. Não é hipocrisia, mas a regra da empatia.
Como explicaria às novas gerações europeias que, há menos de 100 anos, milhões de pessoas foram perseguidas por sua religião ou ideologia?
É o problema do totalitarismo. Para fazer a guerra, é preciso dizer uma só verdade. Se tentamos entender o adversário, perde-se a guerra. A guerra é um excelente meio para eleger democraticamente um ditador e depois demoramos uma ou duas gerações para nos livrarmos deles.
Entende os jovens?
Tenho medo de entendê-los! Há um fenômeno de que os jovens abdicam cada vez mais. Como há uma melhora técnica e social, o trabalho não traz a melhora que antes significava. Para a juventude, o trabalho é o modo de florescer, de sua personalidade se expandir e vir à luz.
Antes, para nós, o trabalho era sobrevivência e aceitávamos qualquer tipo de trabalho. Há um abandono social e afetivo. O abandono social vem porque se não gostam do trabalho, abandonam, e se o afetivo não funciona, separam-se e pronto.
Atualmente, um jovem pensa que terá três ou quatro tipos de trabalho e três ou quatro parceiras. As crianças podem se sentir bem assim, mas não os pais, que acabam elegendo um ditador.
Os jovens nunca se desenvolveram tão bem intelectualmente como agora, são mais brilhantes na exploração do mundo, em viajar. Isto faz com que desenvolvam muito melhor a sua personalidade e que a sociedade seja cada vez mais frágil.
Antes, trabalhava-se o social por meio do sacrifício: as mulheres se sacrificavam para cuidar do marido e dos filhos, os homens se sacrificavam para a guerra e o trabalho nas minas, durante 15 horas, por exemplo. Os jovens, por estarem mais bem preparados, rejeitam isto.
Pode ser frustrante para os jovens se prepararem duramente, sem serem encaixados pelo mercado de trabalho?
O trabalho está robotizado. Daqui a alguns anos, a inteligência artificial tornará o trabalho robotizado. Estamos vendo que há jovens com muitos diplomas que voltam para a agricultura, para serem camponeses, porque o trabalho está robotizado.
A inteligência artificial e a robotização podem ser perigosas?
Resposta simples: mais do que acreditamos. Quando surgiu a Internet, lembro-me que conversei com os apoiadores, que diziam que não haveria efeitos colaterais e, hoje, vemos que são muitos, para os adultos e sobretudo para as crianças.
Na inteligência artificial, efeitos colaterais como o plágio começam a ser vistos, certamente, um deles é a desqualificação dos exames. Será necessário encontrar outro sistema para selecionar os jovens. Também para a escrita de cartas anônimas, as ameaças... [sorri].
A ficção científica de Isaac Asimov foi superada?
Chegamos muito mais longe. Somos capazes de misturar genes humanos e animais, a Internet é muito mais do que Asimov pensava, está muito ultrapassado.
Com este contexto, considera factível que sejam repetidas grandes mobilizações sociais como as que trouxeram mudanças em épocas passadas?
Os sindicatos tiveram um papel muito importante nos séculos XIX e XX porque muitos homens e mulheres tinham sido sacrificados. Hoje, vemos que representam menos pessoas e colocam em marcha movimentos sociais.
Na França, há deputados que ridicularizam a democracia. Essa arma foi muito útil nos séculos anteriores, mas não sei se será agora. Os políticos tomam decisões sem levar em conta esses movimentos.
Você tem 85 anos. Com que idade se aposenta da reflexão?
Aos 120 anos, depois, é mais complicado. Daqui a dois meses, vou completar 86, restam-me muitos ainda para me aposentar da reflexão.
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“Para fazer a guerra, é preciso dizer uma só verdade”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU