08 Abril 2022
Famoso por ter popularizado o conceito de resiliência, o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, de cujas posições nos lembramos durante a pandemia, construiu uma obra que é um convite para compreender e não ceder à tentação de simplificar a realidade. Em seu último livro, Le Laboureur et les Mangeurs de vent : Liberté intérieure et confortable servitude, Editions Odile Jacob (O lavrador e os comedores de vento. Liberdade interior e confortável servidão, em tradução livre), ele relembra sua experiência da guerra explorando os mecanismos do conformismo, que representa um perigo permanente para nossas sociedades.
A entrevista é de Simon Brunfaut, publicada por L’Echo, 02-04-2022. A tradução é do Cepat.
Seu livro começa com a evocação de sua infância durante a Segunda Guerra Mundial. Essas passagens ressoam de maneira particular com a situação atual e o conflito na Ucrânia. A história se repete?
Sim, eu revivo memórias que pensei terem sido apagadas quando eram simplesmente enterradas. O que está acontecendo na Ucrânia desperta os mesmos sons, as mesmas imagens: o êxodo, a destruição etc. É como se a história e a memória não tivessem servido para nada. Oitenta anos depois, é como se nada tivesse sido resolvido e aprendido. Tudo retorna.
Esta é uma constatação terrivelmente pessimista. Ou esquecemos o passado ou ficamos obcecados por ele em uma relação meramente nostálgica? Portanto, nossa relação com a história é doentia?
A memória patológica é aquela que é prisioneira do passado. Esta memória é fixa. Por outro lado, a memória saudável é evolutiva, portanto, cambiante. Quando o contexto muda, as memórias também mudam. Muitas pessoas têm dificuldade para entender isso, mas a memória não é o retorno do passado. Na neurologia, dizemos que a memória é intencional: procuramos imagens e palavras em nosso passado para construir uma narrativa. É um passado que se inscreve na antecipação.
Uma paz duradoura na Europa era, portanto, uma utopia? A Europa se enganou?
Sim, nos enganamos. Eu achava que a Europa era a garantia de uma paz duradoura, porque sempre era possível negociar. Para mim, o significado da Europa era o fim da guerra. Mas me enganei. A Europa foi uma grande ilusão. A Europa não consegue impedir que a guerra e os mesmos problemas reapareçam oitenta anos depois...
Mas a Europa reagiu. Ela arma a Ucrânia e constrói a sua defesa...
Durante várias décadas, vimos que nenhum exército consegue vencer uma guerra. As guerras napoleônicas ou a guerra 14-18 [Primeira Guerra Mundial] acabaram. Neste novo tipo de guerra, um punhado de mercenários pode enfrentar um exército superpoderoso. No Oriente Médio, o exército israelense foi controlado por alguns milhares de mercenários do Hezbollah. A guerra no Mali foi, ao que parece, uma obra-prima militar, mas ela termina em desastre: a população que acolheu a França de braços abertos começa a detestá-la. Mesmo que Putin vença a guerra militar, não se diz que ele vence a guerra no terreno. É o que eu espero.
Você aborda longamente os horrores do totalitarismo e da ideologia nazista. Na sua opinião, Putin encarna o retorno do totalitarismo?
Estou lendo 1984 [de George Orwell] e fico impressionado com a semelhança entre o personagem Ogilvy e Putin. Ogilvy é um homem que só conhece a força. Ele é um herói mítico, criado do zero, que se torna um modelo. Todos os regimes totalitários têm a mesma linguagem. É sempre o mesmo processo, como em 1984: o controle dos jornalistas, da televisão e da linguagem. Um regime totalitário passa pela linguagem e não pela razão. As mesmas palavras devem ser repetidas. Os slogans unificam as pessoas, unem-nas, mas impedem o pensamento. É o que está acontecendo atualmente na Rússia. Vemos a história se repetindo.
O que nos leva ao conformismo?
O conformismo é mais poderoso que a polícia ou o exército. É uma arma superpoderosa. Proporciona um sentimento de solidariedade, de força, e se constitui na base da obediência ao líder. Em seu julgamento, Eichmann repetia incessantemente que apenas obedecera. Obedecer só traz benefícios. O pensamento, ao contrário, é o prazer de fazer um esforço.
A questão identitária é um tema muito presente na campanha eleitoral francesa. Como você analisa isso?
A atual obsessão identitária é um sinal de fraqueza da identidade. Uma identidade frágil busca carapaças identitárias. É um porto seguro. Vimos isso durante a pandemia: as pessoas queriam uma verdade, mas a ciência é evolutiva. A crença é que é fixa. Quando você tem uma identidade incerta, precisa de certeza para se proteger. Encontramo-nos, portanto, nas raízes imaginárias nas quais acreditamos. A identidade é, atualmente, um problema, porque a efervescência cultural é muito forte. Antes, morríamos na cama onde nascemos, tínhamos uma religião, uma aldeia. Éramos cristãos em Creuze, por exemplo. Era muito simples e muito seguro. Todos esses grilhões explodiram hoje.
Por que estamos, como você diz, em “um deserto de sentido”?
Faltam-nos grandes narrativas. Quando eu era criança, contava-se a história de Rockefeller chegando a Nova York. Caminhando em uma calçada, vê algo brilhando. Trata-se de um pino de gravata com um diamante. Esta história é certamente falsa, mas é reveladora da América em formação. Na época de Victor Hugo, a grande narrativa eram os soldados. Na época de Balzac, eram os burgueses e os capitalistas. Hoje, nos contentamos apenas em viver no presente. No entanto, quando vivemos apenas o presente, somos incapazes de dar sentido. O sentido que damos às coisas metamorfoseia a maneira como as experimentamos.
Você está preocupado com a maneira como se faz excessivamente referência à Segunda Guerra Mundial – pensamos em particular nos manifestantes antivacina com as estrelas de Davi – para transpô-la para a nossa realidade? Esta prática é um sinal do quê?
Quem usa essas referências experimenta o prazer da profanação ao atacar pessoas e objetos honrados. Essas pessoas acham que são perseguidas, enquanto têm o direito de discordar em uma democracia. Esse processo só existe para legitimar sua própria violência, para se darem uma legítima defesa. A difamação em massa e o cyberbullying estão ridicularizando a democracia, distorcendo as palavras de infortúnio para dar a si mesmos um prazer indizível.
Estamos em uma era de vitimização?
Outrora, a vítima era o traidor. Foi a partir da Guerra do Vietnã que o significado da palavra mudou. As pessoas começaram a pensar que os jovens que foram para a guerra eram as vítimas e que o governo era culpado. Houve uma mudança epistemológica. Paramos de atacar as vítimas. Hoje vivemos em uma cultura que incentiva as carreiras de vítima. Essa concepção de vitimização é o contrário da teoria da resiliência.
“Nós dispomos das ferramentas para agir sobre o real que age sobre nós. É um grau de liberdade, portanto de responsabilidade”, você escreve. Vivemos hoje uma crise de responsabilidade?
Atualmente, observamos, em particular, um aumento da depressão perinatal e dos suicídios de mulheres jovens após o nascimento do filho. Muitas vezes encontram-se em completo isolamento sociocultural. Somos responsáveis por esta situação. Mas nosso sistema é baseado na eficiência e no dinheiro, não na relação. Sentimo-nos permanentemente desresponsabilizados em relação ao outro.
Como podemos assumir nossas responsabilidades neste contexto?
Retomemos o exemplo da Rússia. Se você quer colocar a Rússia em apuros, basta desligar os medidores de gás e vestir suéteres. Mas quem quer aceitar isso? Os valores da nossa sociedade são o bem-estar, o desempenho e o consumo. Assim, continuaremos a dar dinheiro a Putin que, por sua vez, poderá continuar a fabricar armas. Nós somos cúmplices.
A busca da felicidade e do bem-estar seria, portanto, um freio a essa tomada de consciência coletiva?
Antes, a sociedade baseava-se no sacrifício. Hoje, a realização pessoal está no topo da hierarquia de valores. Tornamo-nos como os antigos romanos que valorizavam o prazer, o conforto, a vida boa. Não sabiam mais lutar e foram esmagados pelos bárbaros. Nós somos, portanto, vulneráveis.
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“Nós somos como os antigos romanos que valorizavam o prazer, mas não sabiam mais lutar”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU