07 Novembro 2022
"Tudo como então, portanto: com Moscou querendo desucranizar a Ucrânia e Kiev querendo desrussificar a Rússia. Uma fotocópia do que aconteceu entre Belgrado e Zagreb. Duas limpezas étnicas contrapostas que produzirão mais sangue, miséria, infelicidade e migrações no coração do continente devido ao jogo hegemônico de duas superpotências e a vergonhosa preguiça da União. Como Auschwitz, Omarska também sempre pode retornar", escreve Paolo Rumiz, jornalista e escritor, em artigo publicado por La Stampa, 05-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não desvie o olhar, por favor. Aqui pede-se que leia até ao fim, sem passar por cima das partes mais escabrosas, para não voltar a dizer: “Não sabia”. Você é solicitado a tomar nota do limite onde o sadismo humano pode chegar. Não os animais: piores que os animais. Nenhum animal tortura e mata seu semelhante por prazer. Aqui em Omarska, Bósnia-Herzegovina, aconteceu. No coração da Europa, a três horas de carro da Itália.
Este livro é o relato de uma alma que escapou do extermínio e que suportou o peso solitário e bestial da memória. Alguém que fará você tocar a ferocidade que pode explodir em seu vizinho se a propaganda devastar seu cérebro, se o grito da etnia o convencer da noite para o dia de que seu sobrenome, religião e cultura são uma entidade demoníaca, e que a paz que reinou até então entre vocês foi apenas uma trégua, uma ilusão. A maioria desses torturadores está viva e impune em Omarska e arredores. Acontece que as vítimas encontrem na rua aqueles que massacraram seu filho, pai, esposa.
A vida continua, como se nada tivesse acontecido, numa paz sem justiça decidida pelo Ocidente, numa repressão geral que pode reacender o conflito a qualquer momento. Uma paz sem monumentos à memória. Sem instituições que peçam desculpas. Ah sim, dos dois supremos mandantes um - Miloševic - morreu na prisão, o outro - Karadžic - permanecerá preso para sempre, mas não se peça à justiça mais do que um bode expiatório.
Esquecimento e clorofórmio nas feridas da guerra. Ninguém quer se lembrar, seja na Republika Srpska da Bósnia nem em qualquer outro lugar. Nem mesmo as vítimas não têm mais a força. Imagine então nós, que nascemos na parte "certa" da Europa. Nós, que supomos ser diferentes ("eles bárbaros, nós civis") e ao invés disso tivemos um papel decisivo em tudo isso. Nós, que perdemos a inocência, aceitando dos beligerantes a ideia de que a separação étnica poderia trazer a paz.
Tente dividir com um corte preciso um par de mãos fraternas entrelaçadas. Fluirá sangue aos borbotões. Foi o que aconteceu nos lugares onde sérvios, croatas e bósnios estavam mais conectados entre si. Um mundo iugoslavo feito de casamentos mistos, classes médias emergentes, leigas e profundamente europeias. Desmantelá-lo, com nossas propostas de "cantonização", apenas encorajou, em vez de interromper, a barbárie da limpeza étnica. E desmantelou também a própria fundação de uma Europa plural.
Tudo começou então. A divisão da Bósnia levou o Kosovo a separar-se da Sérvia, um exemplo que autorizou a separação do Donbass, provocando a guerra na Ucrânia que, como um bumerangue, recai sobre nós, rasgando o tecido da nossa mãe terra europeia com um rasgo purulento que nos leva à beira de um terceiro conflito mundial. É por isso que hoje a União estrelada cala, caminha quase rente aos muros, num momento em que deveria ser protagonista.
Cala porque já negou a si mesma na década de 1990.
A nossa é uma comunidade que, ao renunciar aos princípios, se reduziu a proteger apenas os interesses. Mas mesmo os interesses, se não forem sustentados por princípios, perdem seu sentido e vigor. Com o resultado de que hoje o Ocidente europeu não sabe proteger nem mesmo suas próprias conveniências, se é verdade que permite que Rússia e os EUA lutem entre si em seu território, delegando ignominiosamente a iniciativa de uma possível mediação a autocracias estrangeiras como China e Turquia. Um ocaso anunciado. Uma decadência iniciada décadas atrás na Iugoslávia.
Nós, imersos em uma realidade virtual, nos descobrimos incapazes de entender que a terra da democracia, direitos, filosofia e bem-estar está sob ataque e está no final das contas se balcanizando, com a Inglaterra fora do jogo, a França dividida em duas, a Itália em queda livre como prestígio e a Alemanha apavorada por sua própria sombra. Não entendemos que, para evitar se tornar colônia de outros, este é o momento de dar o salto corajoso para uma política externa e de defesa comum. Continuamos atordoados, sonâmbulos, como na véspera da Grande Guerra. Passamos da indiferença à insônia, do aperitivo da happy hour à visão assustadora de um cogumelo nuclear.
Diante dos sinais inequívocos da crise – conflitos, aquecimento climático, inflação, epidemias globais e migração em massa – insistimos em acreditar que nossa vida possa continuar da mesma forma. África, América do Sul e Ásia há tempos compreenderam para quais horizontes de exploração da humanidade o mundo se encaminha. Nós não. A lição dos últimos desastres não serviu. Estamos achatados num pensamento único - atlântico, bipolar e maniqueísta - e renunciamos a proclamar e defender nossa milenar diversidade de Terra de meio.
Sem memória do que aconteceu ontem, e sobretudo sem lembrar o que fingimos não ver nos Balcãs, nós, europeus, deixaremos de viver a alteridade e as diferenças como recurso e nós também seremos vítimas da lógica dos antagonismos. Em suma, também nós tomaremos o atalho tribal do etnonacionalismo, que nos levará, como sempre, a definir nós mesmos em negativo, em antagonismo a alguém, não mais em relação ao sonho que nos fez nascer. Uma escolha perigosa, um prenúncio de novos conflitos em cadeia. Para nos definirmos, não basta entender contra quem somos.
Precisamos saber de onde viemos e o que queremos.
Na Iugoslávia, a dissolução violenta começou com a queima de um histórico território-tampão chamado Krajina, ou seja, "fronteira". Hoje, a história se repete com a deflagração da Ucrânia, cujo nome tem exatamente o mesmo significado. Deve significar alguma coisa. Mas a história não ensina nada de nada, nem mesmo para os gestores da segurança global. Que não refletem sobre o fato de que os EUA têm dois oceanos para se proteger. Nós, europeus, não. Do lado das estepes, temos à disposição apenas uma lacuna de espaços neutros, e justamente de tais espaços estamos nos privando, com a OTAN que agora vai "proteger" também a Suécia e a Finlândia.
Tudo como então, portanto: com Moscou querendo desucranizar a Ucrânia e Kiev querendo desrussificar a Rússia. Uma fotocópia do que aconteceu entre Belgrado e Zagreb. Duas limpezas étnicas contrapostas que produzirão mais sangue, miséria, infelicidade e migrações no coração do continente devido ao jogo hegemônico de duas superpotências e a vergonhosa preguiça da União. Como Auschwitz, Omarska também sempre pode retornar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Da Bósnia à Ucrânia, o Ocidente perdido na indiferença. Artigo de Paolo Rumiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU