08 Dezembro 2022
A entrevista que o Papa Francisco concedeu esta semana à revista America, dos jesuítas estadunidenses, é uma síntese da visão de mundo pragmática do Papa Francisco. De fato, o Papa é fiel ao princípio de que as realidades são maiores do que as ideias, e olha o mundo em termos concretos, de uma forma pragmática a ponto de parecer cínica.
O comentário é do jornalista italiano Andrea Gagliarducci, publicado por Monday Vatican, 05-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Esse pragmatismo mostra também uma forma de se revelar ao mundo ou de enfrentar o mundo. O Papa Francisco nunca dá opiniões claras e, quando tem que fornecê-las, usa a história, mesmo que um pouco manipulada e imprecisamente, para explicar que não é ele quem pensa de uma maneira particular, mas que sua abordagem já levou raiz e, portanto, desse ponto de vista, não pode ser criticada.
Mas esse pragmatismo também tem contraindicações práticas, que podem ser particularmente perigosas.
Há duas passagens da entrevista à revista America que mostram essa abordagem pragmática.
A primeira diz respeito à guerra na Ucrânia. Por algum tempo, o Papa tentou ter uma abordagem moderada da questão da guerra, que visa, acima de tudo, não ofender o lado russo. O raciocínio do Papa parece ser o seguinte: se os russos se sentirem parte da história e não forem excluídos ou atacados, estarão mais inclinados a discutir o fim da guerra.
Assim, as declarações do Papa sobre as atrocidades da guerra foram atribuídas primeiro aos mercenários e depois aos chamados grupos étnicos “não-russos”, como os chechenos e os buriatas. O Papa sublinhou claramente, talvez pela primeira vez, que o agressor é a Rússia.
É uma pena que esse pragmatismo não tenha surtido os efeitos desejados. De fato, as observações sobre chechenos e buriatas despertaram a ira dos dois povos. Até o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, enfatizou que o papa havia feito “declarações não cristãs”. Se o objetivo era abrir um diálogo com a Rússia, isso não foi alcançado.
E não foi alcançado porque essas declarações careciam de substância real, não foram planejadas e redigidas em termos “claros” pelo Papa. O Papa Francisco não gosta de institucionalidade. Infelizmente, porém, algumas declarações tornam-se necessariamente institucionais.
A segunda passagem diz respeito à possibilidade de um papel mais significativo para as mulheres na Igreja. O Papa Francisco, também neste caso, tem o cuidado de não afirmar uma posição clara. Limita-se a dizer que o ministério petrino “não permite” a entrada de mulheres nas ordens religiosas, mas que, na realidade, as mulheres têm afinal um “ministério mariano”, que vale muito mais e, aliás, quando há mulheres envolvidas, as coisas funcionam melhor.
A impressão é de um Papa com uma visão clara sobre o assunto, mas essa visão não é explicitada. O objetivo parece ser não desagradar ninguém. O Papa sabe que não concederá nada à ideia de mulheres no sacerdócio, mas, ao mesmo tempo, não quer que as mulheres sejam desvalorizadas.
Também neste caso, todos ficam insatisfeitos: os que queriam dele uma posição clara para encerrar a questão e os que desejavam que a questão fosse reaberta.
No final, o pragmatismo do Papa Francisco o leva a ceder demais à opinião pública, a ponto de não defender os homens da Igreja. Daí suas posições de equilíbrio sobre os relatórios sobre pedofilia na Igreja na França e na Alemanha, relatórios contendo estatísticas questionáveis, que o Papa aceitou, chegando a pedir desculpas pelos abusos.
É um pragmatismo que levou também a aceitar a renúncia de dom Michel Aupetit, arcebispo de Paris, no altar da hipocrisia, e a pedir a suspensão por seis meses do cardeal Rainer Maria Woelki, arcebispo de Colônia, pelo que a nunciatura chamou de falha de comunicação.
E é uma abordagem pragmática que leva o papa a redefinir as regras do Vaticano a ponto de permitir que os cardeais sejam julgados por um tribunal ordinário, o que o leva a reformar a Cúria eliminando o princípio segundo o qual a autoridade deriva das ordens religiosas; ou não declarar que o feto é um ser humano para evitar polêmica, já que o assunto “ainda é debatido”.
O Papa Francisco ama a figura geométrica do poliedro e frequentemente a usa para descrever a realidade. Pode-se dizer, fazendo uma comparação, que este é um papado multifacetado porque é difícil ver todos os rostos e facetas dele.
No que há muito parece ser o último vislumbre do pontificado ou pelo menos um período em que o próprio Papa perdeu sua força motriz, a abordagem pragmática corre o risco de criar um papado a duas velocidades: uma atenta à opinião pública e outra que ao contrário, justamente por esse pragmatismo, isola-se e deixa um Papa sozinho no comando, e assim exposto a seus próprios erros.
É uma questão importante a ser definida para o futuro, ainda mais considerando que o Papa Francisco trocou o prefeito da Economia e deve encontrar substitutos para os chefes de pelo menos quatro outros dicastérios da Cúria.
Será nesse momento que o pontificado poderá ser avaliado. É apenas um pontificado prático que mudou porque era necessário mudar, mas sem uma ideia real subjacente? Será um pontificado que assumiu as provocações do mundo sem coragem de desafiá-las? Ou será um pontificado que, em sua vontade de mudar, nada fez senão permanecer o mesmo?
São questões que ficam em aberto enquanto um círculo parece se fechar: no início do pontificado havia comissões, agora há inspeções; no início do pontificado, havia ideias de abolir o IOR, agora, há julgamentos por questões financeiras. Mas em ambos os casos, há mais perguntas do que respostas. No início do pontificado houve alguns personagens que também reaparecem ciclicamente.
Mudar tudo para não mudar nada, dizia o gattopardo. Será esta, talvez, a ideia pragmática do Papa Francisco? Talvez. Mas não é a Igreja que não mudou, mas sim o pontificado, que continua a se repetir. Essa também é uma questão a ser discutida.
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Papa Francisco, o pragmatismo e as decisões a serem tomadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU