20 Outubro 2022
Ferido, de braços abertos e a aparência de seu rosto transformada em sorriso, o Coringa é aclamado pelas multidões na rua. A última imagem do filme de Todd Phillips mostra o Coringa – alguém socialmente rejeitado, que recebe assistência social do Estado – transformado em herói da rebelião dos marginalizados. O filme causou polêmica em seu lançamento, em 2019, e foi criticado por incitar a violência. Mas o perigo real, segundo o documentarista Michael Moore, era não o assistir. Nele há um espelho social, com um palhaço perturbado, “mas não está sozinho, estamos ao seu lado”.
Claro, não foi a única leitura. Nas redes da direita, o britânico Paul Joseph Watson se perguntou: “Por que o establishment tem tanto medo desse filme?” Entre outras coisas, disse: “Por causa da forma como sofremos lavagem cerebral para levar uma vida de consumismo que cria um terreno fértil para a solidão, o desespero e a doença mental. Porque nos ensinaram que as pessoas que pensam de forma diferente são um perigo para a sociedade e devem ser condenadas ao ostracismo, intimidadas e censuradas.”
Para além do verdadeiro sentido do filme, as diferentes leituras mostram “a dificuldade radical que enfrentamos, hoje, para dar conta da orientação política e cultural da rebeldia”, diz o pesquisador argentino Pablo Stefanoni.
Doutor em história, avalia que nas últimas décadas a esquerda foi se identificando com o politicamente correto, enquanto pela direita foram surgindo forças que capitalizavam a indignação social com discursos radicais. “Em outras palavras, estamos diante de direitas que disputam com a esquerda a capacidade de se indignar com a realidade e de propor caminhos para transformá-la”, escreve em seu livro ¿La rebeldía se volvió de derecha?
Publicado em 2021, o livro traz um longo subtítulo: Como o antiprogressismo e o antipoliticamente correto estão construindo um novo senso comum (e por que a esquerda deve levar isto a sério). E sua leitura parece especialmente apropriada para compreender o cenário atual, com a ascensão de forças alternativas ou radicais de direita no mundo, como na Suécia, o paraíso da social-democracia europeia, na Itália, onde Giorgia Meloni chega ao poder como primeira-ministra por Irmãos da Itália, um partido de direita radical, passando também por figuras como Marine Le Pen, na França, Viktor Orbán, na Hungria, e Jair Bolsonaro, no Brasil, sem esquecer o legado de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Com lucidez e assertividade, Pablo Stefanoni analisa a forma como a direita conservadora e liberal foi perdendo espaço para movimentos mais radicais. E a forma como essas novas direitas estão reunindo o descontentamento social, suas estratégias e sucessos de comunicação, e os desafios que representam para a esquerda política.
A entrevista é de Andrés Gómez, publicada originalmente por La Tercera e reproduzida por OPLAS, 18-10-2022. A tradução é do Cepat.
O livro tem um título paradoxal: a direita costumava ser sinônimo de conservadorismo. O que aconteceu que agora se tornou rebelde e transgressora?
O título do livro é, de fato, uma pergunta-provocação. Procura colocar o foco no fato de que, nesses anos, as novas direitas alternativas ou novas extremas direitas estão canalizando uma parte do inconformismo social.
Se faz pouco mais de uma década que o livro/manifesto Indignai-vos, do nonagenário Stéphane Hessel, foi uma referência para os movimentos de protesto que se mobilizavam contra a globalização neoliberal, hoje, esses movimentos se enfraqueceram, a indignação no Ocidente continua, mas parece estar mudando de sinal. Inclusive, dizer-se de direita para alguns jovens é cool.
Estamos em um momento de revolução da direita, restauração conservadora ou contrarrevolução?
Estamos, sem dúvida, diante de transformações no universo das direitas. Uma liberal-conservadora como Anne Applebaum, que sente nostalgia da época de Reagan e Thatcher, queixa-se amargamente, em seu livro O crepúsculo da democracia, da conversão de muitos de seus amigos às direitas iliberais. Embora existam muitas diferenças entre essas direitas, são um instrumento que muitos eleitores encontram para rejeitar o status quo.
O trumpismo expressou um tipo de rebeldia de direita que o transcende. O Ocidente vive um momento particular, em que ressurge a velha ideia de “decadência do Ocidente”. As críticas abundam nas redes sociais, inclusive virulentas, as “pessoas comuns” estão zangadas e odeiam a “casta” política, mas poucos acreditam que seja possível construir horizontes de mudança desejáveis.
Esse cancelamento do futuro como espaço de mudança social alimenta a conspiranoia, o ressentimento, as retroutopias, um terreno favorável para essas direitas. Talvez não seja nenhuma das três coisas, mas presenciamos a emergência de uma série de direitas radicais que se tornam atores mais ou menos normalizados dos sistemas políticos.
Evidentemente, há diferenças entre elas. Marine Le Pen não é igual a Bolsonaro, por exemplo. O que as unifica?
Penso que o antiprogressismo. Este é na minha opinião o grande guarda-chuva que as abriga. A ideia de que devemos resistir à nova ditadura do politicamente correto, o wokismo. O texto constitucional chileno, rejeitado no plebiscito, foi acusado de woke, um termo que vem do movimento afro-americano, que significa consciente/acordado frente às injustiças, e que hoje é usado de forma depreciativa contra qualquer expressão do progressismo.
Inclusive, apela-se à ideia de que estaríamos diante de uma nova inquisição. E se constrói a ideia do povo comum, oprimido por essas elites progressistas. Todo o discurso das novas direitas radicais pode ser lido com esta chave.
O que aconteceu com a esquerda ou centro-esquerda? Perderam sua rebeldia? Acomodaram-se?
Penso que podemos ver isso em um plano mais amplo. Há uma situação de impotência das esquerdas. A sensação de que as coisas não podem ser mudadas. Em seu livro Realismo capitalista, Mark Fisher enfatizava que não é só difícil realizar projetos transformadores, mas também imaginar esses projetos. Sem dúvida, o socialismo revolucionário não conseguiu se recuperar da queda do bloco soviético (mesmo as correntes que não concordavam com esse modelo).
E não devemos esquecer o fracasso venezuelano, o único país a se declarar socialista depois de 1991. A filósofa catalã Marina Garcés, que escreveu Nueva ilustración radical, um livro curto, mas substancial, fala de uma espécie de “paralisia da imaginação”. Isto não quer dizer que não haja potentes mobilizações feministas ou ambientalistas, mas, sem dúvida, há muitas dificuldades em oferecer projetos de futuro na esquerda e em reverter a tendência de pensar o futuro como distopia.
A esquerda parece identificada com o politicamente correto, enquanto a direita usa a provocação como arma eficiente. O ‘buenismo’ e o moralismo se alojaram na esquerda?
Há uma certa “banalidade do bem” no progressismo, segundo a formulação de Tony Judt. Mas, ao mesmo tempo, esse progressismo se tornou, em grande medida, parte do status quo. O historiador Enzo Traverso escreveu sobre como a ascensão da “memória” dos últimos anos, com incidência no mundo acadêmico e político, caminhou paralelamente a outro fenômeno: a construção dos oprimidos como meras vítimas do colonialismo, da escravidão, do nazismo...
Dessa forma, a “memória das vítimas” foi substituindo a “memória das lutas” e mudando a forma como percebemos os sujeitos sociais, que agora aparecem como vítimas passivas, inocentes, que merecem ser lembradas e, ao mesmo tempo, separadas de seus compromissos políticos e de sua subjetividade.
Em 2013, Mark Fisher escreveu um artigo sombrio intitulado Deixando o Castelo do Vampiro, no qual critica “a conversão do sofrimento de grupos específicos – quanto mais ‘marginais’ melhor – em capital acadêmico”. É verdade que foi sendo construída uma forma de sermão moralizante. O problema é que a nova onda de “incorreção política”, promovida pelas novas direitas, trafica diversas formas de xenofobia, misoginia, anti-igualitarismo e todos os tipos de posições reacionárias.
Qual tem sido a chave para o sucesso dessas novas direitas? Qual é, por exemplo, a influência da internet?
Penso que a chave para o sucesso tem sido se apresentar fora do sistema (independente do que seja considerado sistema). Essa ideia de “dizer as coisas como são” se somou a uma crescente rejeição dos políticos tradicionais. As novas direitas souberam capturar algumas das angústias do presente, como as geradas pela imigração em massa, e seus líderes operam como empresários do pânico moral.
Às vezes, o voto na extrema direita é um voto de protesto que se estabiliza. E, mais amplamente, também serve como uma forma de tentar reconstruir identidades erodidas (por exemplo, de ex-trabalhadores brancos com vidas precarizadas, mas também de brancos que sentem que a diversidade étnica é uma ameaça). Em grande medida, seu sucesso se associa ao fato de ter abordado diversos assuntos no âmbito das guerras culturais.
A Internet contribuiu para criar um ecossistema favorável, por exemplo. Certos fóruns como o 4Chan se mobilizaram muito em favor de Trump. A própria Hillary Clinton teve que lutar com Pepe the Frog, usada contra ela. Mas também é preciso dizer que no plano eleitoral as extremas direitas encontram muitos obstáculos.
Ao mesmo tempo em que a direita assume uma posição mais audaciosa, surge o discurso da sensatez e da ordem. No Chile, essas são palavras frequentemente usadas por Kast. É uma rebelião com ordem e conservadora?
No caso de Kast, penso que sim. Embora tenha sido apoiado por redes das novas direitas radicais, inscreve-se na tradição pinochetista. Seu slogan Atrévete, não obstante, conecta-se com essa ideia de enfrentar o politicamente correto (no passado não era algo “atrevido” votar em um pinochetista).
Mas se olharmos para governos como o de Trump ou Bolsonaro, por trás de discursos sobre lei e ordem, acabaram afetando a própria ordem das coisas, as instituições, a ponto de se distanciarem delas. No Brasil, grande parte do establishment votará em Lula. Em relação ao conservadorismo social, algumas colocam o acento aí mais do que outras. Giorgia Meloni mais do que Marine Le Pen. Trump fez isso de forma bastante oportunista.
É mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo, como disse Frederic Jameson?
Hoje, parece que sim. Marx disse que a revolução deve tirar sua poesia do futuro. Mas o futuro hoje não projeta nenhuma poesia. Reconstruir esse futuro é uma tarefa imprescindível para a esquerda, inclusive para a reformista.
Nesse sentido, por que a direita consegue ousar e a esquerda não?
A esquerda tem certo medo de parecer utópica, às vezes é solene demais, ou se concentra demais em temas identitários de nicho. Há também uma certa melancolia. As direitas têm a audácia de quem sente que está enfrentando certos consensos estabelecidos, alguns deles hoje associados ao progressismo. Há algo nessas direitas de retorno do reprimido. A rejeição ao feminismo, a certas perspectivas ambientalistas, ao queer, recebe apoio em certos setores da sociedade.
O resultado do plebiscito constitucional no Chile foi uma grande derrota para a esquerda. Para explicar a derrota, o presidente Boric disse que “não se pode ir mais rápido do que o povo”. Como você lê essa frase?
Penso que isso explica o fato de que a composição da Convenção respondeu a uma conjuntura muito particular, e que a correlação de forças que surgiu não era a da sociedade. E assim como aconteceu com outras Constituintes, às vezes, gera-se a ideia de que na verdade a folha está em branco, quando não está tanto.
O presidente Boric chegou ao Palácio de La Moneda com um programa de transformações econômicas e sociais. Após a derrota do plebiscito, parece difícil avançar nesse programa. Qual é a sua análise, neste contexto geral?
Penso que o projeto de Boric foi, desde o início, um projeto de justiça social de tipo social-democrata, em um país no qual, apesar dos avanços da transição, persistiram formas de desigualdade – e hierarquias étnicas e de classe – questionadas por mobilizações das últimas décadas, não apenas as do reventón.
De fato, sempre foi considerado um pouco amarelo por setores da esquerda radical. E sua vitória só foi possível com o apoio da ex-Concertación. Dito isso, é verdade que os resultados do plebiscito correm o risco de sua bacheletización no sentido de que os desejos de reforma fiquem truncados. Mas as coisas não estão escritas e o cenário está aberto.
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“Há algo nessas novas direitas de retorno do reprimido”. Entrevista com Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU