Pablo Stefanoni era estudante de Economia, nos anos 1990, quando conheceu Javier Milei. Naquele momento, poucos imaginariam que, quase três décadas depois, Javier seria o deputado estrela da extrema direita na Argentina. Milei, economista sem experiência política, foi a novidade nas últimas eleições legislativas do país, após conseguir o terceiro lugar na cidade de Buenos Aires.
Já naquele tempo, Milei tinha o cabelo “penteado pela mão invisível do mercado”, conforme o deputado gosta de dizer, mas ainda não era fanático pela economia austríaca, mas um neoclássico convencional. “Se Milei construiu um personagem, fez isso cedo. Não tem a ver com o salto à política”, disse Stefanoni, jornalista e doutor em História.
Autor do livro La rebeldía se volvió de derecha?, publicado por Siglo XXI, analisa como o antiprogressismo declarado e a incorreção política, nas mãos dos novos atores políticos da extrema direita, conseguem criar um novo senso comum e empurrar o debate público um passo a mais à direita.
A entrevista é de Ayelén Oliva, publicada por El Diario, 28-11-2021. A tradução é do Cepat.
Como analisa que o candidato da extrema direita, José Antonio Kast, tenha sido o mais votado no primeiro turno das eleições presidenciais no Chile?
Os votos de Kast vieram do medo da migração, no norte, do conflito mapuche, no sul, e da insegurança em um sentido amplo, no centro. Kast é o produto de uma campanha que apelou ao discurso da ordem, mas também à transgressão. Seu slogan foi “atreva-se”. E a denominação de seus seguidores, “atrevidos”.
Isso mostra como alguém pode transformar o pinochetismo em algo transgressor, partindo da rebelião antiprogressista. Em grande medida, Kast conseguiu se desdemonizar e se posicionar bem para o segundo turno. Veremos como Gabriel Boric reagirá após o golpe que significou ficar em segundo. Será uma eleição brigada.
Como define o discurso de Kast?
Seu discurso se concentra na ideia de ordem. O que não quer dizer que conseguirá a ordem, caso vença, porque possivelmente o cenário será bastante convulsivo. Parece-me que no Chile as mudanças profundas também acarretam incertezas e essas expectativas de mudança convivem com as demandas por ordem e certeza.
Mas, ao mesmo tempo, Kast representa uma direita desconhecida que, diferente da centro-direita tradicional de Sebastián Piñera, não sabemos o que fará estando no Governo...
O paradoxo é esse, possivelmente haverá muito mais convulsão política do que ordem, caso vença. É uma demanda por ordem de uma parte da população que sente que tudo isso que em 2019 começou bem pode gerar muito caos. Ele disse que o Chile não acordou, mas vive um pesadelo.
E, além disso, um segundo elemento é a crise da centro-direita. Assim como a crise da centro-esquerda deu lugar ao candidato da esquerda, Gabriel Boric, a crise da centro-direita, que é profundíssima, faz com que Kast coma o seu eleitorado e grande parte da liderança. De algum modo, Kast é para a centro-direita o que Boric é para a centro-esquerda.
A crise do centro provocou a emergência dos extremos?
Sim, a crise da centro-direita deu lugar ao crescimento das extremas direitas. E também, de alguma forma, Gabriel Boric surge da crise da transição. Tanto Boric como Kast são expressões da crise política. Não é possível explicar a conjuntura sem a “explosão social” de 2019 e a consequente Convenção Constitucional.
A Argentina parecia a exceção ao avanço da extrema direita. No entanto, nas últimas eleições legislativas, alcançaram um bom resultado. Por quê?
O fato de que haja uma força à direita de Juntos pela Mudança, do ex-presidente Mauricio Macri, como é o caso de Javier Milei e José Luis Espert, tem a ver com o esgotamento da política tradicional por causa da complicada situação econômica vivida pelo país.
As candidaturas antissistêmicas, que questionam a política tradicional e que expressam uma inconformidade transversal, fizeram uma boa escolha porque aproveitaram esse desencanto. Assim como aconteceu na Espanha, com Vox, que contou com um espaço paralelo localizado à direita da força conservadora tradicional.
Na Argentina, também há certo espaço, não é um espaço enorme, mas existe. O próprio Macri percebeu isso e direitizou o seu discurso.
O conceito de ‘casta’ não era usual na Argentina até a chegada de Milei. Foi tomado da Espanha?
Santiago Oría, assessor de campanha de Javier Milei, disse publicamente que tomaram o discurso anticasta do Podemos. Essas novas direitas ou direitas alternativas, que podem ir de Trump a Bolsonaro, passando por Vox, nesse caso, assumiram uma forma “libertária”: Javier Milei se define como um anarcocapitalista. Por isso, Milei, com sua cultura política, não se encaixa tão bem na extrema direita, ainda que a assuma sem digerir bem parte da retórica trumpiana.
Se não é de extrema direita, como o definiria?
Penso que temos que localizá-lo naquilo que nos Estados Unidos chamam de paleolibertarismo. Esse é um tipo de libertarismo que guinou à extrema direita, que tem referência em Murray Rothbard, que é quem estabeleceu as pontes entre o libertarismo clássico e a direita reacionária. É interessante porque não deixa de ser uma tensão quando Milei diz: “eu sou anarcocapitalista”, existe aí uma raia disruptiva em relação a forças como Kast ou Vox, embora depois todos se juntem em eventos como a Carta de Madrid.
Considera que essa direita radical incomoda o progressismo?
Pode ser, porque agora não está diante do discurso neoconservador dos anos 1990, mas de algo que não estava acostumada a ter. Agora, vem alguém e diz: “sou de direita e sou contra a justiça social e a igualdade”.
Na Argentina, não existia alguém que dissesse “a justiça social é uma merda” e que defendesse o capitalismo com tons heroicos como Ayn Rand, em A revolta de Atlas. Essas direitas jogam com formas discursivas que desconcertam. E a esquerda se tornou teoricamente preguiçosa, repete fórmulas keynesianas muito genéricas ou críticas à desigualdade, mas a maioria de seus seguidores quase não leem mais, nem discutem economia.
Em consonância com o que expôs em seu livro, a rebeldia deixou de ser da esquerda?
Penso que esses setores, de certo modo, recuperam a ideia da incorreção política que, em algum momento, esteve na esquerda. E dizem que há uma espécie de ditadura da correção política progressista. Quando digo que a rebeldia se tornou de direita, é importante dizer que a rebeldia não é a melhor forma de governar.
Em certos momentos, quando essas direitas chegam ao poder, como é o caso de Bolsonaro, no Brasil, ou de Trump, nos Estados Unidos, parecem governar mais do que com políticas conservadoras, com posições bastante imprevisíveis. De fato, Trump se dedicou a erodir toda a institucionalidade de seu país, a questionar todos os pactos não escritos e até o sistema eleitoral.
O que a ultradireita tira da esquerda?
Parece-me que em uma série de tópicos, de algum modo, disputam bandeiras com a esquerda, sobretudo com a ideia de antissistema. A esquerda tradicional dirá que não são um verdadeiro antissistema, porque o sistema é outra coisa. Mas o certo é que conseguem estabelecer esse debate sobre o sistema e candidatos como esses surgem de fora dele.
Em que medida essas candidaturas são ‘antissistema’?
Jogam um pouco fora, um pouco dentro. E é o problema de todos esses candidatos que se apresentam como outsiders, mas acabam criando vínculos com a direita mais tradicional. Parece-me que existe um tipo de direita que está mudando os eixos do debate público, da forma de fazer política, e nisso, sim, acredito que as diferentes figuras que estão emergindo no mundo têm muito em comum.
Falar deles nos meios de comunicação acaba ajudando em seu crescimento?
Isso é relativo. Às vezes, existe a ideia de que somos “nós”, como progressistas, que abrimos espaço na mídia para esses candidatos, por falar deles. E na verdade muitas vezes não precisam dos meios de comunicação, seu crescimento passa por outro caminho.
Por exemplo, na América Latina, os evangélicos nunca tiveram espaço nos meios de comunicação convencionais e há 20 anos não param de crescer. Às vezes, há muita soberba na ideia de dar espaço na mídia para eles, penso que a questão está em buscar compreender como são essas direitas, quais inconformismos expressam e por que, às vezes, elas os expressam melhor do que o progressismo.
A coisa mais revolucionária que a esquerda pode fazer é garantir os direitos ou existe espaço para uma agenda que avance?
Parece mais racional defender o conquistado. Principalmente, porque a lógica de que “tudo piorará” faz com que a ideia de futuro seja claramente negativa e inclusive distópica. A esquerda hoje tem medo de ser acusada de utópica.
Sem dúvida, a crise da esquerda revolucionária e da esquerda reformista abre espaço para a extrema direita, mas às vezes se esquece que a crise da centro-direita, com a crise da globalização, também enfrenta problemas de identidade.
Como a esquerda deve responder a isso?
A esquerda precisa construir imagens não catastróficas de futuro. Rearmar-se teoricamente. Não é fácil, exige um rearmamento interpretativo teórico e político que levará seu tempo, mas é necessário para reconectar com o inconformismo do presente. O risco de defender o futuro é que há muitas pessoas que estão bastante contrariadas com o presente. E não são todas terraplanistas.